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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 A ÉTICA ANIMAL E SUA INFLUÊNCIA SOBRE AS ORGANIZAÇÕES

3.3.2 O dark side das organizações no trato com os animais

3.3.2.1 A cadeia produtiva do leite

“A vaca leiteira, outrora vista tranquilamente, mesmo idilicamente, a vaguear pelos montes, é agora uma máquina de produção de leite cuidadosamente vigiada e afinada” (SINGER, 2008 p. 129). O quadro bucólico da vaca brincando com a cria na pastagem não faz parte da produção comercial de leite, pois a maior parte dessas vacas são criadas em confinamento intensivo durante a maior parte do tempo, em pequenas celas com espaço apenas para que elas permaneçam de pé e se deitem e passando algumas horas por dia em máquinas de ordenha industrial (SINGER, 2008; CARVALHO, 2015). O ambiente é totalmente controlado: quantidade de ração, temperatura e iluminação ajustados de forma a maximizar a produção (SINGER, 2008).

A realidade brasileira se aproxima da americana e europeia. Dados da Milkpoint (2015a) informam que dos 100 maiores produtores brasileiros em 2014, apenas 16 utilizam o sistema de produção de pastejo (aquele apresentado pela Nestlé em seu comercial). Entre os dez maiores, esse percentual se reduz a apenas 1 deles. 61 propriedades utilizam o sistema de confinamento, e o restante de semiconfinamento.

Na situação mais comum dentro dessa indústria, após ter sido retirada a primeira cria, dá-se o início do ciclo produtivo do animal, onde a vaca é ordenhada duas a três vezes ao dia, durante 10 meses, e após o terceiro mês é de novo emprenhada, será ordenhada até pouco antes do nascimento do bezerro e voltará a sê-lo logo que a cria lhe seja retirada (SINGER, 2008). Tais dados são corroborados pela EMBRAPA (2002). O bezerro costuma ser separado da mãe, à força, geralmente dentro das primeiras 24 horas, ignorando o auge do cuidado

maternal daquela vaca e gerando desespero e frustração extrema. Durante dias as vacas continuam emitindo sons em busca do filho roubado (CARVALHO, 2015).

Vacas leiteiras saudáveis, em um ambiente favorável, podem viver entre 20 e 25 anos. É uma situação bem diferente da encontrada na indústria leiteira: as vacas ficam prenhes uma vez por ano durante três a seis anos, depois disso, muitas delas são vendidas para serem transformadas em produtos de carne baratos (REGAN, 2006; SINGER, 2008; FELIPE, 2012; CARVALHO, 2015). Regan (2006) informa que no contexto americano, o principal destino é virar hambúrguer - 40% do que é vendido nos mercados e restaurantes vem da carne de vacas leiteiras descartadas. Felipe (2012) também confirma esse fim para as vacas brasileiras.

Desde a década de 1950, criadores e empresas de biotecnologia fizeram uma rigorosa seleção genética das linhagens de vacas com o intuito de maximizar a produção de leite (CARVALHO, 2015). A manipulação genética e o cruzamento seletivo, através de inseminação artificial, chegam a aumentar em até 10 vezes a capacidade produtiva normal da vaca, que atingem até 44 litros de leite por dia (REGAN, 2006). Quando empresários e zootécnicos concluem que a produtividade está baixa, seu próximo passo é criar novas formas de alimentar as vacas para que suas glândulas mamárias sejam estimuladas ao máximo (FELIPE, 2012). Como resultado disso, existe uma série de complicações para o animal, incluindo excesso de peso, que tenciona o úbere e agrava os danos aos joelhos e ancas, de 20% a 40% desses animais sofrem de mastite, uma inflamação do úbere (REGAN, 2006; SINGER, 2008; CARVALHO, 2015), além de claudicação, uma afecção do casco bovino bastante comum, mas pouco diagnosticada e controlada pelos produtores, que provoca dor e desequilíbrio locomotor (BOND et al, 2012).

Mastite, laminite, depressão pós-parto recorrentes, gases formando borbulhas no interior do abdômen todos os dias, são apenas algumas das consequências para as vacas leiteiras (FELIPE, 2012). Conforme a autora (p. 246) “toda vaca usada para a extração do leite é morta, depois de sofrer durante anos as intervenções humanas voltadas para arrancar dela o maior volume possível desse líquido ao menor custo financeiro para o empresário”. Muitos autores também relatam que a seleção genética para alta produção reduz a fertilidade e longevidade dos animais, além de elevar os índices de doenças (BOND et al, 2012).

Além de infligir sofrimento às vacas, a produção de leite também afeta os bezerros, que quando não podem ser utilizados pelo próprio produtor de leite, são vendidos para a indústria de carne de vitela ou criados para o abate, para a indústria do couro (ANDA, 2015). A carne de vitela, especialmente a “rosada”, de bezerros “alimentados com leite” é famosa pela sua maciez - sem músculo e cartilagem, que possibilitam ser cortada com o garfo - e

destaque entre os pratos que algumas pessoas consideram entre os mais refinados, preparados pelos melhores chefs, principalmente franceses e italianos (REGAN, 2006). Mas para que os bons apreciadores da comida tenham essa experiência “especial” existe toda uma implicação a vida desses bezerros.

Para Singer (2008), de todas as formas de agricultura intensiva atualmente praticadas, a indústria de vitelas é a mais repugnante em termos morais. Milhares de bezerros excedentes de rebanhos leiteiros são retirados das suas mães e vendidos horas ou poucos dias após o nascimento - é recomendado pela indústria menos de 7 dias (REGAN, 2006). A separação precoce da vaca e do bezerro é um ponto crítico de bem-estar, devido ao alto nível de estresse que provoca (GREGORY, 1998 apud BOND et al, 2012). Algumas informações sobre a criação e abate de vitelos também são fornecidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA, 2015):

Vitelos (“veal” ou “veau de boucherie”) podem ser obtidos de bezerros abatidos até as 20 semanas de idade. Geralmente, esses bezerros são de origem leiteira, a maioria deles holandeses, alimentados exclusivamente com leite e/ou sucedâneos do leite. Há diferentes tipos de vitelos, podendo-se classificá-los de acordo com a idade de abate [menos de 4 semanas, entre 4 e 12 semanas, entre 12 e 20 semanas].

Fato curioso é o que o documento não traz informações detalhadas sobre as instalações onde ficam os vitelos, apenas menciona exemplos de outras unidades produtivas que usam o confinamento total ou o manejo dos vitelos em grupos sociais. O documento, sem especificação de autoria, aponta que é importante possuir mais de uma unidade de instalação, pois permite a limpeza, desinfecção e repouso da baía já utilizada. Por fim, coloca que “o ambiente escuro mantém os bezerros quietos, aumentando a performance” (EMBRAPA, 2015, p. 10). Para Bond et al (2012), essa escassez na literatura a respeito do bem-estar dos bezerros machos é crítica e, ao mesmo tempo, confortável, já que os animais são tratados como um subproduto do sistema, tendo como destino mais comum o abate precoce, a criação de vitelo (que no molde tradicional oferece restrições severas) ou o consumo na própria fazenda. A dinâmica da indústria do leite também foi descrita por Irvênia Prada, médica veterinária, professora e orientadora do curso de pós-graduação em Anatomia dos Animais Domésticos e Silvestres, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, em entrevista à rádio EBC (2014). Ela afirma que o setor não tem nenhum interesse legítimo pelo bem-estar dos animais e narra sobre situações de estresse, desconforto e sofrimento que fazem parte do cotidiano da grande maioria dos estabelecimentos que compõem a indústria leiteira no Brasil.