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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.4 O ENCONTRO ENTRE O DARK SIDE DAS ORGANIZAÇÕES E A ÉTICA

3.4.2 As contribuições da Ética Animal para desvelar o Dark Side das organizações

3.4.2.3 Aspectos ideológicos do tratamento dos animais

3.4.2.3.2 Eufemismo e linguagem distorcida

O eufemismo é um recurso linguístico usado para atenuar o impacto que o significado de uma palavra tenderia a causar no interpretante. Dessa forma, o eufemismo é a substituição de determinadas palavras ou expressões com o objetivo de tornar o discurso menos agressivo àquele que o interpreta. O oposto, ou seja, quando se tem a intenção de exacerbar a força ou agressividade do significado, é chamada de disfemismo. “Portanto, o uso do enunciado é feito com a intenção ou finalidade de produzir no interpretante uma situação de conforto (no caso

do eufemismo) ou uma situação de desconforto (no caso do disfemismo) ” (MOURA, 2009 p. 149-150).

A estratégia de conforto é adota para indústria da carne, leite, mas também pelos profissionais que atuam nela, como os médicos veterinários, zootecnistas, biólogos, etc. A mídia costuma também utilizar os termos consagrados por esses atores sociais. De outro lado, muitas vezes os ativistas dos direitos animais se utilizam do discurso disfêmico, com o objetivo de causar desconforto, conforme situação a seguir.

A linguagem eufemística serve como um amaciamento semântico, que substitui certos termos por outras palavras eticamente neutras, suavizando assim a realidade nua e crua (NACONECY, 2015). A carne de frango são os retalhos e vísceras do cadáver de um frango, o filé-mignon são os músculos amputados das costas de um boi morto, os frutos do mar são peixes que foram arrancados da água, se debatendo em convulsões, para morrer lentamente por asfixia sobre o convés de um barco de pesca. “Bois porcos e galinhas não são enviados aos matadouros para morrer, mas, sim, para frigoríficos. Aliás, lá eles não são mortos, mas processados” (NACONECY, 2015 p. 25). O objetivo dessa terminologia que maquia a realidade é driblar todo o mal-estar moral e conflito de consciência que possa brotar na mente dos consumidores. “Mas palavras tranquilizadoras não são capazes de mudar a realidade” (NACONECY, 2015 p. 25).

Moura (2009) considera importante a análise dos padrões eufemísticos, pois entende que o “sentido literal” (aquele que é mais facilmente reconhecido como um significado descritivo, em determinado momento numa comunidade linguística) muda ao longo do tempo, e essas “novas expressões ou enunciados podem significar novos conceitos ou podem ser novos eufemismos cujo uso pretende trazer novo conforto a antigos significados e realidades” (MOURA, 2009 p. 150).

As organizações que praticam ações de violência e morte contra os animais, deliberadamente elas escondem as “partes do processo” onde isso ocorre (separação do bezerro da vaca, abate dos animais de “consumo”, etc). Além disso, muitas vezes elas utilizam de um discurso distorcido, com termos que seu significado não condiz com a prática (ex: abate humanitário, bem-estar animal, vacas felizes, livre de crueldade). Existe então, uma disputa para se apossar do significado da palavra, pois é através de seu significado que melhor se revela o seu caráter ideológico, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência (BAKTHIN, 2002). Segundo o autor (p. 31 e 32),

Tudo que é ideológico possui uma significação e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem

signos não existe ideologia. [...]Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico.

Regan (2006 p. 95) faz algumas observações quanto a utilização de palavras pelos porta-vozes da indústria, comparando com Humpty Dumpty em Alice através do espelho, de Lewis Carroll, onde o mesmo afirma: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quiser que ela signifique – nem mais, nem menos”. Quando os representantes da indústria usam palavras como bem-estar animal, tratamento humanitário e guarda responsável, eles devem pensar que podem fazer essas palavras significarem qualquer coisa que quiserem. Na verdade, eles não podem.

Utilizando o termo abate, por exemplo, essa palavra pode significar muitas coisas, o sentido mais literal seria matar, mas pode ser utilizado de maneira tão ampla que significa também: “(a)baixar, derrubar, desanimar, abalar, enfraquecer, queda, corte” (FERREIRA, 2004). Quando ela é utilizada para substituir matar ela serve para suavizar este ato, mais ainda, de maneira a ocultar o ato de matar. No termo abate em inglês, slaughter significa também massacre e pode ser utilizada para situações de morte de humanos e não humanos. Nesse caso não existiria um processo de ocultamento, como ocorre em nossa língua.

A palavra humanitário significa: “marcado pela compaixão, empatia ou consideração por outros seres humanos ou animais”, “caracterizado por bondade, misericórdia ou compaixão” (REGAN, 2006 p. 95), “que ama seus semelhantes; bondoso, benfeitor, humano” (FERREIRA, 2004). Quando as grandes indústrias de exploração animal nos dizem que tratam seus animais humanitariamente, deveríamos esperar práticas que demonstrassem compaixão, empatia, consideração, bondade e misericórdia, pois afinal, é isto que humanitário significa (REGAN, 2006).

Bem-estar significa: “boa fortuna, saúde, felicidade”, “conforto, satisfação, situação agradável do corpo ou do espírito” (REGAN, 2006 p. 95), “Estado de perfeita satisfação física ou moral” (FERREIRA, 2004). Aplicando essa ideia aos animais, espera-se que sejam asseguradas as necessidades básicas (comida, água, abrigo e exercício) e não realizar nada que os posso infringir algum dano, isso que significa bem-estar animal (REGAN, 2006).

Os porta-vozes das indústrias descrevem as condições e tratamento como humanitários e afirmam seu compromisso com o bem-estar animal. Temos em mente o que se esperar desses comportamentos, mas geralmente o que eles fazem não condiz com o que eles dizem, é

o dito desconexo (REGAN, 2006), já apresentado anteriormente. Quando eles utilizam essa linguagem “estão usando as palavras, só da boca para fora, que o governo mandou usar” (REGAN, 2006 p. 99).

Nos Estados Unidos as grandes empresas do setor raramente são pegas violando a legislação de bem-estar animal. O tipo de proteção legal que os animais recebem é parte do problema, não parte da solução. As poucas violações demonstram que os padrões legais de tratamento humanitário estão abaixo do mínimo, e que o trabalho de assegurar que pelo menos esses padrões sejam cumpridos é deplorável. Geralmente os tratamentos considerados por pessoas comuns como reprováveis ou cruéis, são inteiramente legais, portanto humanitários (REGAN, 2006). Regan (2006) afirma que os veterinários têm um papel importante na legitimação das práticas padrão das indústrias, e que o público espera que os veterinários tratem bem, por que eles os amam.

Evitar sofrimento desnecessário é outra palavra comumente utilizada pela indústria se referindo a posição de reduzir o sofrimento do animal. Desnecessário significa: “Inútil, dispensável” (FERREIRA, 2004), já o termo necessário: “que não se pode dispensar, essencial, indispensável” (FERREIRA, 2004). Como pressuposto do discurso das empresas é que é necessário matar animais, mesmo assim, devemos evitar o sofrimento desnecessário dos mesmos. Hoje em dia, a ciência médica-nutricional já afirma que a maioria da população pode viver sem se alimentar de produtos de origem animal (ver ADA, 2009; DIETITIANS OF CANADA, 2014; CRN-3, 2015). Atualmente podemos ainda utilizar a palavra necessário para qualificar mortes de animais para nosso uso? Talvez palavras como costume, tradição ou prazer possam ser mais adequadas.

Ideologias violentas, como o Carnismo, tem a mesma mentalidade: uma lógica de domínio e subjugação, do privilégio e da opressão, que nos leva a considerar o outro como uma coisa, reduzir uma vida a uma unidade de produção. Essa mentalidade do “poder faz a razão” nos faz sentir no direito de exercer controle absoluto sobre a vida e morte dos menos poderosos. Só porque podemos. As ações são justificadas porque os outros são apenas selvagens, mulheres, animais. É a mentalidade da carne (JOY, 2014).

Se pensarmos como Joy (2014), Patterson (2002), Adams (2012) e muitos outros teóricos, e interligarmos as relações de opressão entre gêneros, etnias, espécies, podemos identificar em empresas que exploram animais outras práticas que podem ser do Dark Side, mesmo sem estar relacionadas diretamente com os animais não-humanos. Além dos aspectos que envolvem diretamente os funcionários dessas organizações, a seguir apresento alguns aspectos das relações de poder perante indivíduos, políticos e órgãos públicos.