No dia seguinte, acontece uma missa solene em homenagem a Nossa Senhora dos Navegantes, Senhor dos Passos e também a São Benedito, no final do dia. Os ritos são os mesmos dos festejos anteriores. Alvorada de fogos e banda de música pela manhã. A procissão terrestre (também no final do dia) conta com todos os santos que estão na igreja, cada qual em seu andor: Menino Jesus, São Benedito, São Jorge, São Roque, São Lázaro, Nossa Senhora dos Navegantes e Senhor dos Passos.
Diferente do “Acompanhamento” (procissão dos navegantes no mar), evento que geralmente acontece no fim de semana, reunindo além de de- votos locais, muitos turistas, esse segundo dia de festa em homenagem a Nossa Senhora dos Navegantes, incluindo também Senhor dos Passos e São Benedito, trata-se de um evento voltado para própria ilha9. Os moradores locais são maioria na igreja e no cortejo terrestre.
9 Durante os dias de festejo na ilha, a população local, aproximadamente 3.500 habitantes, recebe grande público que lota os poucos estabelecimentos comerciais locais como pousa- das e restaurantes. A demanda de serviços aumenta consideravelmente, números de bares, restaurantes e ambulantes. À noite, na praça da igreja, acontece uma quermesse com barra- cas de comidas, jogos e banda musical. Segundo ouvi de muitos entrevistados, grande parte desse pessoal de veraneio são parentes próximos ou distantes (ou conhecidos de familiares de pessoas que possuem parentela local) de moradores da ilha. Como o local possui apenas duas pousadas (e somente uma funciona regularmente durante o ano), a orla da ilha fica re- pleta de barracas.Tal cena lembrou-me da descrita por Perez sobre a impressão dos viajantes sobre as festas religiosas no século XIX “chama-lhes atenção à mudança na cena urbana. A cidadezinha vazia e pacata, recebe gente, que de longe vem, para a missa, ficando toda movi- mento e agitação. As gentes vestem suas melhores roupas. Depois do sagrado, o profano na praça: jogos, circo, desfile pelo passeio público etc.” (PEREZ, 2000)
No final da procissão terrestre, os santos e devotos se dirigem para o cais da ilha, onde ocorre a benção das canoas. Por se tratar de uma ilha que vive basicamente da pesca, é tradição durante a festa os pescadores levarem suas embarcações para o cais na intenção de serem benzidas pelo pároco. Esta parte da festa constitui o terceiro capítulo do vídeo, intitulado: “Benção das Canoas”. A gravação desta parte foi seriamente comprometida devido à chuva repentina que surpreendeu a todos na hora da procissão. Mesmo sob chuva forte, os santos foram às ruas e as outras três filarmônicas que foram con- vidadas para o evento daquele dia não deixaram de encantar o público. Eu, escondido embaixo de um alpendre, no intuito de proteger o equipamento, deixei apenas o movimento da procissão passar sob minha lente.10 Por sorte, quando a procissão se aproximava do cais, a chuva nos deu uma trégua. Em poucos minutos, a paisagem se transformou novamente.
Quando mostrei as poucas imagens deste penúltimo rito, sugeri que fi- zéssemos uma chamada pública na ilha para que os videomakers locais nos apresentassem seus materiais produzidos a partir de tecnologias distintas como celulares, tablets, câmeras portáteis, entre outros dispositivos. Fiz esta sugestão devido à dificuldade de realizar as cenas da subida, primeiro, pela chuva que me paralisou. Segundo, com a expansão das tecnologias digitais imagéticas, qualquer pessoa com um aparelho capaz de captar imagens, pode se tornar um videomaker e um parceiro de pesquisa em potencial. Em vá- rios ritos da festa tive que disputar um lugar com estes videomakers caseiros, querendo registrar cada lugar ou evento para divulgar em suas redes sociais e nelas se autoafirmarem e dizerem com suas imagens: “eu estava lá”.11
10 Ao longo do texto, espero ter deixado claro a importância da Filarmônica de Bom Jesus dos Passos para a realização das festividades locais. Atualmente, grande parte dos músicos são crianças e jovens. Os adultos também participam, mas são minoria dos quase 50 artistas da banda, que neste ano completou 100 anos.
11 As palavras de Hartmann (2003, p. 10) cabem perfeitamente neste contexto: “este é apenas um exemplo de que há imponderáveis que prejudicam ou impedem o registro audiovisual e por mais que se saiba que aquele momento existiu, que ele foi significativo para o desenvol- vimento da pesquisa como um todo, esse momento não constará de nenhuma imagem con- creta. Tanto as fatalidades quanto as escolhas arbitrárias demonstram que não se pode re- gistrar tudo, consequentemente, o produto final será uma soma de recortes, mais ou menos representativos, da realidade que se quer comunicar. Mas é importante lembrar que este não é um privilégio do trabalho com imagens, pois com a escrita ocorre um processo bastante semelhante, onde escolhas devem ser feitas na realização da ‘edição’ do texto, determinando o que será ou não comunicado”.
Ao contar estes imprevistos no dia anterior ao último rito da festa, e suge- rir que incorporássemos o “material caseiro” no vídeo, ouvi de Luís Henrique e de outras pessoas presentes que não se deveria misturar filmagens tão distintas, pois isto poderia interferir muito na qualidade estética do “nosso vídeo”, que tinha uma função muito importante: construir uma narrativa so- bre a história da tradicionalidade do festejo em homenagem aos padroeiros e sua importância para a cultura local.12 Compreendi este ponto de vista de Luís Henrique e chegamos a um consenso de ajustar demandas pela estética, pela representação de uma realidade cultural, com as questões antropológi- cas ligadas, sobretudo, ao processo de produção do vídeo.
subida
Na manhã do dia seguinte, a ilha acordou triste. Pela manhã, os fogos de artifício, a filarmônica e o sino produziram suas derradeiras sonoridades. O encerramento da festa, conhecido popularmente como “subida”, marca o fim
12 Em um vídeo etnográfico, entretanto, não está em questão apenas um belo produto visual, ainda que este possa ser um objetivo desejável. A transmissão de um conhecimento, a repre- sentação de uma realidade, a comunicação de determinados aspectos de uma cultura, são tarefas de um antropólogo quando se aventura a produzir vídeos etnográficos.
Figura 5. Frames do vídeo Ilha da Devoção. Benção das Canoas
dos festejos da ilha em homenagem a seus padroeiros. Ainda pela manhã acontece uma missa solene em homenagem a Senhor dos Passos. Pela tarde, a última procissão antes dos santos voltarem aos seus nichos.
A “Subida”, composta desta procissão e da colocação dos santos em seus lugares de origem, é o último capítulo do vídeo. Os personagens, nesta últi- ma parte, falam de sua devoção e do afeto que nutrem pela festa. Às 18h o sino badala pela última vez na ilha anunciando a subida. Um lamento é en- toado durante orito. O coletivo presente se entristece. Choros tomam conta da acústica do espaço. Por todo o lado que se olha, o semblante cabisbaixo de alguém assistindo um ente querido partir, predomina. Neste rito percebi cla- ramente como “os santos não eram entidades frias, distantes. Ao contrário, eram tratados com a intimidade de membros da família, ornados de joias, recebiam atributos humanos e familiares, e participavam da vida doméstica e íntima”. (PEREZ, 2000, p. 7) Por isso, para a gravação destas cenas, privilegio uma abordagem de perto e de dentro com minha câmera – trabalhando com uma objetiva macro – buscando as expressões faciais que denotavam a triste- za que os ilhéus estavam sentindo ao verem a subida de Senhor dos Passos, um santo tratado como um ente da família.
No decorrer do canto (Hino ao Senhor dos Passos), Nossa Senhora dos Navegantes, que está na entrada da igreja, se encontra com Senhor dos Passos e o leva até seu nicho, no altar principal. Uma chuva de pétalas de rosas é arremessada pelo caminho percorrido por Nossa Senhora dos Navegantes e Senhor dos Passos. Ao final da festa, é tradição levar as flores que enfeitam os
andores das imagens para casa no intuito de trazer paz e alegria para o lar. Ao tirar uma flor, tem-se a última chance de agradecer pelo ano que passou e fazer as promessas para o ano que virá! Estas foram as últimas imagens gravadas e corresponde com as cenas de encerramento do vídeo.