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Por fim, gostaria de propor uma aproximação entre festa e cinema. Em am- bos os casos, estamos diante de realidades socialmente construídas, que ope- ram em busca de uma verdade. No cinema etnográfico, há muito, Jean Rouch construiu e desconstriuu a ideia de “cinema-verdade”. No caso da festa, a verdade sobre a tradicionalidade que ela traduz deve ser pensada como uma verdade relativa, que ano a ano é construída por sobre os ambros de seus an- tecessores. A festa, e porque não o cinema, retratam um “[...] momento onde máscaras e teatralidade de papéis sociais adquirem uma outra dimensão, a do movimento, da alegria e, sobretudo, da mistura dos códigos e das pessoas, criando um mundo virtual, de júbilo e êxtase [...]”. Festa e cinema são a “[...] encenação da imaginação [...]”(PEREZ, 2000, p. 27), trata-se do mundo do real imaginado. (GONÇALVES, 2008)

E aqui me lembro das reflexões de Edgar Morin (1997), um dos primeiros a realizar uma reflexão sobre a imagem mobilizando a esfera do “realmente imaginado”. Pois, acredito que produzir um vídeo é “[...] um momento de re-imaginar o real, materializando sonhos, apontando possíveis”. (FERRAZ, 2010, p. 199) Cinema e festa são “a arte do duplo, transições entre o mundo real e o imaginário”. (FULCHIGNONI, ROUCH; 1989, p. 146) Em entrevista pu- blicada em Ribeiro (2007, p. 33), Jean Rouch assim se expressa: “[...] para mim a ficção é tão verdade como a realidade [...]”.

Partindo destas perspectivas, as aproximações entre festa e cinema po- dem fazer mais sentido. A análise sobre festa da antropóloga Lea Perez (2000, p. 1) embasa ainda mais meu argumento, pois, de acordo com ela a festa é:

[...] um fecundo campo para se pensar a vida humana em coletividade sob sua dupla modulação, a de agregação (estar-junto) e a de imaginário (fabula- ção, desejo, campo do possível), pois em seus diferentes regimes de empirici-

dade, opera ligações as mais variadas e inusitadas, possibilitando para quem dela participe a vivência (desdobrada em experimentação) de uma existência outra que a do real socializado, uma existência que é própria da festa. Como diz Roberto DaMatta, ‘os cerimoniais expressam a área onde, entre outros, se coloca a liberdade de responder ou morrer, e da esperança: a resposta que abre espaço para outras respostas’ (1983, p. 31). Ou nos termos de Jean Duvignaud, na festa ‘o homem muda a si mesmo porque ele se inventa’ (1994, p. 117).

É nesse sentido, de (re)invenção de personagens, de imaginário, que a festa mais se aproxima do cinema. E Jean Rouch (1997) havia se dado conta de que o problema principal no filme etnográfico é a sinceridade dos per- sonagens quando diante da câmera. Todos nós sabemos que em situações de entrevista, a tendência dominante é o entrevistado dizer o que o entre- vistador quer ouvir. Por isso, Rouch (1978) dizia que filmava a ficção en- gendrada por seus personagens como se filmasse a realidade, sem dirigi-la como faz o entrevistador e como ele próprio vai fazer em Crônica de um verão, 1960. Além disso, Rouch (2003) reconhece o caráter contraditório do termo “cinema-verdade”, na medida em que filmar e, sobretudo, montar um filme, significa realizar algumas trucagens. Por exemplo, acelerar ou ralentar as imagens e, subsequentemente, distorcer, pelo menos factualmente, a ver- dade (GERVAISEAU, 2009).13 E assim o fiz ao condensar uma festa que dura quatro dias em 30 minutos.14

Como vimos, se transitoriedade e efemeridade correspondem à estrutura profunda e atemporal da festa, ela só se realiza numa sociedade determi- nada, num tempo particular, portanto, atravessada pela história concreta. (PEREZ, 2000) Hoje sabemos que no filme documentário ou etnográfico, o que importa é a verdade no cinema, pois o cinema-verdade, mesmo se uti- lizando de longos planos de sequência como o fez Mead e Bateson, não irá

13 Rouch (1971) ressalta que ao tentar resgatar o sentido do uso que fez do termo “cinema- -verdade” em parceria com Edgar Morin, este não significa a pura verdade, mas a verdade peculiar dos sons e imagens registradas, uma verdade própria ao cinema.

14 Rouch (1978) cita um exemplo em que ele trapaceia com o tempo buscando acelerá-lo. Em

Os mestres loucos, (2007), há uma condensação temporal: a cerimônia que dura o dia inteiro

é condensada em 45 minutos. Tal exemplo é utilizado pelo autor para defender uma singula- ridade da verdade no cinema que não é de natureza meramente factual.

alcançar o real, ou uma verdade incontestável de seus personagens, irá cap- tar apenas um fragmento dessa almejada realidade, que será captada assim como a festa, em tempos e espaços que são concretos e históricos. Assim, em ambos os casos, “[...] não se trata de desaparecimento da realidade, da realidade enquanto mundo, mas de dissolução de ligações que organizam o mundo segundo uma ordem determinada que se dá o nome de realidade”. (GRISONI apud PEREZ, 2012, p. 34)

conclusão

O trabalho empreendido na produção deste vídeo compartilhado revela um campo frutífero no que tange à abordagem da festa como questão cinema- tográfica. Não se trata de uma novidade, já que desde os clássicos da antro- pologia, festas e rituais têm sido tema e objeto de estudo dos antropólogos, especialmente, da chamada antropologia visual. E o retomei justamente com o olhar sobre tais manifestações, pensadas não unicamente de um ponto de vista antropológico. A diferença reside então, numa visão compartilhada na qual buscamos fazer pesquisa não sobre um grupo, mas junto/com os sujei- tos que nos recebem em campo. Portanto, a antropologia compartilhada que pratico reside no fato de realizar uma pesquisa levando em consideração não apenas minhas questões epistemológicas ou teóricas, mas de valorizar os projetos locais, e estabelecer um diálogo intelectual com o sujeito que me sugeriu a realização desta pesquisa.

Partindo deste ponto de vista local, os festejos religiosos de Bom Jesus, narrados aqui em quatro atos, propiciam o reencontro das pessoas com a ilha. Os ritos apresentados são espaços de socialização dos saberes. Logo per- cebi que o objetivo do mestre de cultura que me propôs a realização da pes- quisa compartilhada é, atualmente, o de esquadrinhar elementos do passado para afirmar uma identidade que atenda à realidade onde estão inseridos, promover a tradução de uma tradição cultural dos seus antepassados e lutar por espaços que possibilitem a multiplicação dessa identidade entre os mais jovens. Aqui é interessante retomar as palavras de Hubert e Mauss (1905, p. 12) nos dizendo que festas “não são coletivas apenas porque uma pluralidade de indivíduos reunidos delas participa, mas porque são atividades do grupo

e porque é o grupo que elas exprimem”. Parafraseando Perez (2000, p. 30), “[...] festa é presentificação da tradição enquanto experiência de vida em sua efemeridade e em sua fugacidade [...]”.

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Festas, tradição e invenção em