• Nenhum resultado encontrado

A Ilha de Bom Jesus, situada ao fundo da Baía de Todos os Santos, Bahia, é palco da experiência que será narrada no presente texto que trata da pro- dução compartilhada de um vídeo etnográfico a respeito do festejo religioso que qualquer ilhéu considera como o mais importante da região. Antes de enveredar numa descrição de perto e de dentro acerca deste processo, é im- portante fornecer um cenário epistemológico, dentro da antropologia, no qual a festa vem sendo pensada por autores clássicos e contemporâneos.

O tema mobiliza as Ciências Humanas de modo geral. Em Durkheim (1996), a ideia de festa associa-se à força criadora exercida pela efervescência

1 Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelos re- cursos financeiros para a realização desta pesquisa no âmbito do Programa Nacional de Pós- Doutorado (PNPD/Capes). Agradeço também ao Núcleo de Pesquisa ObservaBaía/UFBA, pela estrutura disponibilizada.

coletiva sobre a própria consciência humana. Em Bataille (1967), o excesso e a transgressão, vistos como eclosões do que é ordinariamente suprimido na sociedade, revelariam o potencial revolucionário da festa; em Callois (1950), a festa liga-se ao sacrifício e ao efeito catártico da violência acumulada pela sociedade que nelase libera.

Nessa ótica, alguns pressupostos básicos conformam um fecundo ponto de partida na abordagem das festas e têm sido experimentados de modo criativo na antropologia. São eles: a ideia de que os rituais são portas de entrada privilegiadas para a compreensão das sociedades humanas e de que o mundo festivo e o mundo cotidiano se complementam de modo múltiplo nas festas (DAMATTA, 1979); a natureza cultural pública e coletiva das fes- tas (GEERTZ, 1989); sua forte relação com formas de organização do tempo (HUBERT; MAUSS, 1905); sua sobreposição com os domínios do lúdico e do estético e sua intensa afetividade e materialidade. (CAVALCANTI, 2009, 2010; GONÇALVES, 2009, 2010) Como rituais, isto é, agregados de comportamentos simbólicos, festas, realizam, com a linguagem dos símbolos, o trabalho dos

Figura 1. Ilha de Bom Jesus

ritos. (VALERI, 1994) Articulam, desarticulam e rearticulam aspectos do cotidi- ano, de experiências históricas e operam de forma múltipla e involuntária na experiência social. Ao final, é sempre a pesquisa e a análise etnográfica que irão nos propor chaves de sua compreensão. As festas podem estimular o trabalho reflexivo, produzir reinterpretações, críticas, reformulações, reit- erações; propiciar aprendizagem de códigos sociais; estimular a produção de novas perspectivas. Atraem, encantam e integram participantes. Envolvem ricos e pobres; distintas origens étnicas; sagrado e profano. Não resolvem os conflitos e as desigualdades sociais. No entanto, podem expressar uma face das coletividades que se superpõe a essas diferenças ou mesmo reafirmá-las por meios violentos.

Mesmo diante da imensa atenção que já foi devotada à questão da festa nos estudos antropológicos, Perez (2012, p. 21, 23, 40, 41 ) nos diz que o termo ainda “[...] performa um campo ennunciativo que padece de uma polissemia aguda, seus limites são de tal modo fluidos que seu potencial pode ser e, frequentemente o é, desgastado pelo esgaçamento de seu alcance heurístico”. De acordo com a autora, “[...] falamos todos de festa, mas não possuímos uma teoria da festa”. Na antropologia, “suas tentativas de definição care- cem igualmente da abragência e capacidade generalizante necessárias para tornar festa um conceito”. A própria autora não se propõe a formular uma teoria geral sobre festas, pois sabe o risco desta empreitada e prefere apostar que “[...] festa resiste tanto à formalização execessiva quanto a teorização rí- gida, por isso, é vão querer atribuir essência, substância, função, sgnificado, mesmo que colocados no plural”, pois “[...] ela não é um mero produto da vida social ou fator de reprodução da ordem estabelecida. Festa para além de festa é a epifanização de um mundo, um mundo outro, o do real do imaginário”. Ainda continuando com o argumento da autora, festa é um:

[...] campo do possível e do desafio, a festa inventa/cria/gesta/imagina outras relações do homem com o mundo, sobretudo, outras relações consigo próprio, outras formas de ligar, pois coloca em ação o execesso e a transgressão, seus operadores de distinção relativamente ao mundo das coisas, da duração e dos determinismos, abrindo outras vias para abordagens correntes. (PEREZ, 2012, p. 40)

Por isso, aqui festa refere-se a uma categoria cine-etnográfica e não um constructo dado a priori. Mais do que isso, para além de ser trabalhada como fato ou como teoria, a tomamos como recorte, no intuito de estabelcer limi- tes investigativos que nortearam a construção de uma pesquisa comparti- lhada sobre a festa que resultou na produção de um vídeo. Arrisco dizer que tratou-se da festa como questão cinematográfica, isto é, entende-la como perspectiva. (PEREZ, 2012) Ou melhor, festa como cenário “cine-etnográfico” para engendrar uma narrativa sobre sua tradicionalidade e sua importância para a memória e a cultura local. Cine-etnografia, no contexto desta pesqui- sa, significou a possibilidade de transformação do olhar, trasmutando-o em algo mais póetico; eu diria numa mise-en-scène etnográfica a ser filmada.

A proposta de tomar este recorte – festa como questão cinematográfica – como tema investigativo para a produção de um vídeo, partiu de um ilhéu. Quando o conheci e expliquei algumas de minhas expectativas de pesquisa na ilha (em especial, a ideia de produzir um vídeo), Luís Henrique, mestre de cultura de sua localidade, me propôs uma parceria para realizarmos juntos um vídeo sobre a festa em homenagem ao padroeiro e a padroeira local: Senhor dos Passos e Nossa Senhora dos Navegantes. Prontamente, aceitei a parceria.

No entanto, antes de iniciar os trabalhos de captação imagética e sonora, passei um tempo no local para conhecer os moradores e juntos (Luís Henrique e eu), nos meses que antecedem a festa, construímos uma mise-en-scène, sele- cionamos os atores-chaves e elaboramos um argumento para o vídeo: uma narrativa histórica sobre a tradicionalidade dos festejos em questão, bem como sua importância para a memória e a cultura local.2 Quando iniciei os trabalhos de captação audiovisual, entre o dia 27 de dezembro de 2013 a 14 janeiro de 2014, ao final de cada dia de filmagem (tanto o trabalho de registro de narrativas sobre a festa quanto o trabalho de captação de imagens de ritos que a compõe), sentava com meus parceiros de campo e projetava o material

2 Nesses primeiros meses também pude acompanhar os preparativos para a festa que dura o ano todo. A festa, organizada pela Irmandade de Bom Jesus, é minuciosamente preparada meses antes de sua realização. As bandeiras de Senhor dos Passos e Nossa Senhora dos Navegantes percorrem toda a ilha em busca de fundos para a festa. É notório como, especial- mente, os mais velhos, aguardavam com impaciência a visita das bandeiras, para beijá-las e darem sua contribuição à festa. (PEREZ, 2000)

produzido. Meu objetivo nessa hora era compartilhar impressões e recolher sugestões, críticas, sobre o material gravado.

Portanto, existe um processo compartilhado de filmagem (ou melhor do que e quem é filmado) e de socialização das imagens, no qual os atores- -sujeitos filmados contam suas histórias acerca do que foi filmado, dizem o que e como veem as imagens captadas pelo pesquisador. Tal posicionamento inspira-se nas trilhas deixadas por Jean Rouch em filmes como Eu um negro (1958), Crônica de um verão (1960), Jaguar (1967) e Pouco a pouco (1971),3 para ci- tar apenas alguns dos mais de 100 filmes produzidos por ele (durante mais de meio século de trabalho no continente africano). Os filmes citados são parte do corpus da chamada “antropologia compartilhada” que, do meu ponto de vista, pode ser entendida como uma série de ensinamentos, dos quais desta- co: o contato preliminar com o grupo a ser filmado, estabelecer relações de proximidade com os sujeitos de uma pesquisa, criação de uma mise-en-scène, participação de membros do grupo como colaboradores e/ou coautores dos filmes, conhecimento das técnicas de montagem e filmagem e o feedback (projeção e devolução do material para o grupo filmado).

No caso da produção do vídeo sobre os festejos religiosos da ilha, partin- do desta perspectiva, coloquei-me como um parceiro capaz de auxiliar na condução do projeto de gravar imagens. E, neste contexto, “parceria” signi- ficou mais do que um compartilhamento de dados no produto final de uma pesquisa: significou compartilhar o próprio processo de elaboração de uma pesquisa visual. Das cenas registradas, passando pela montagem dos pla- nos, a eleição das entrevistas e do que é mais significativo no conteúdo das mesmas, existe um processo coletivo de produção. O mesmo aconteceu com a trilha sonora cuidadosamente composta pela Filarmônica de Bom Jesus e gravada por mim. Luís Henrique, além de ter se tornando um grande amigo, é coautor do vídeo que intitulamos Ilha da Devoção, referenciando o apelido da ilha na localidade. Além do mais, foi ele quem indicou as pessoas a se- rem entrevistadas, ajudou-me na elaboração do argumento, na realização de grande parte das entrevistas e na montagem final do vídeo com seus precisos comentários. Antes mesmo de ser filmado, elegemos que nosso vídeo teria

3 Deixo claro que os filmes citados no texto, no ano original de sua publicação, foram remaste- rizados em 2006/2007 pela Vídeofilmes. Utilizo estes filmes remasterizados e legendados.

uma introdução e quatro capítulos, que correspondem aos ritos mais impor- tantes da festa: Lavagem, Acompanhamento, Benção das Canoas e Subida.