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Para dar início ao calendário festivo da vila, entre 31 de dezembro e 1 de ja- neiro, através do Aruê, a comunidade diz adeus ao ano velho e as boas vindas ao ano novo, comemoração que remonta há mais de 100 anos. O responsável pelo preparo da jangada foi “Senhorzinho” que, ao falecer, passou para seu genro Mauro a responsabilidade pela realização do Aruê, assim como do Boi Estrela, outra festividade do lugar. Atualmente, Mauro encontra-se muito do- ente e quem promove essas duas manifestações culturais é seu filho, Naná. Na festa do Aruê é preparada uma jangada de bambu com folhas de ba- naneiras que formam um arco para receber uma figura: no meio do andor é colocado um mamão com olhos, nariz e boca entalhados no formato de uma caveira, ornamentação que representa o enterro ou o despacho do ano velho. O cortejo sai do Alto do Cruzeiro, na área mais elevada de Matarandiba, an- tes da meia-noite, percorrendo todas as ruas e becos da vila. Quatro homens seguram a jangada, seguidos por uma multidão que canta: “Aruê, aruê, Aruê, Aruá, enterra o ano velho que o novo vai chegar”. Em volta da jangada as mulheres seguem o cortejo e lamentam com gritos o enterro de mais um ano. Depois que o ano é “despachado”16 na maré, começa o samba de roda na “restinga”.17

É possível encontrar similaridades dessa festa com outras manifestações culturais que ocorrem nas localidades vizinhas da Baía de Todos os Santos. Essa festa foi lembrada em conversas com moradores de regiões mais dis- tantes de Matarandiba, como a Ilha de Maria Guarda, em Madre de Deus

rios do sistema concha aderem livremente ao sistema e só podem utilizar as conchas dentro da própria vila. É possível adquirir empréstimos para novos empreendimentos a juros quase irrisórios (esses empréstimos costumam ser na moeda oficial). No caso de um empréstimo pessoal efetuado em concha, o valor solicitado não poderá passar do custo de mercado de uma cesta básica, sendo o empréstimo pago em até um mês sem cobrança de juros. 16 Expressão nativa para o ato de jogar ao mar a jangada de bambu.

(porção norte da Baía) e em localidades mais próximas, como a Festa da Barquinha que acontece em Mutá, município de Jaguaripe. Assim como o Aruê, a Barquinha sai percorrendo as ruas de Mutá, onde carrega-se um bar- quinho feito de gravetos, todo enfeitado, que representa o ano velho. Como no relato de um morador:

A gente sai percorrendo Mutá inteiro pra meia noite tá no porto, chama-se “Enterro do Ano”. E tem as músicas: “Boa noite, meus senhores/Boas festas vamos ter/Já está chegando a hora do ano velho morrer”. Aí temos outra barquinha de espera, que é o Ano Novo. Aí a gente saí de retorno, pra sede, ou pra praça cantando: “Vamos, vamos, vamos pelos boxes passeando/Acabou-se o ano velho, o Ano Novo está brilhando”.18

No mês de janeiro, o Boi Estrela de Matarandiba percorre as ruas do lu- gar, festejo que representa a farsa da morte e ressurreição do boi. A porta estandarte traz a bandeira com a seguinte inscrição: “Viva o Boi Estrela de Matarandiba”. Seguindo o cortejo, as pastoras entoam os cânticos e a popu- lação se reúne para assistir a apresentação. Dentro da roda dançam o boi, o vaqueiro e a porta estandarte que anima a multidão. Com a chamada pelo vaqueiro de “Eh, boi! Eh, boi!”, o boi investe contínuas tentativas de chifradas no vaqueiro que, caindo de um lado a outro, consegue sempre se livrar, até atingi-lo com o ferrão. O boi fingeestar morto. O vaqueiro não para de dan- çar ao redor do boi, fazendo graça. O animal permanece imóvel. De repente, o vaqueiro percebe que o boi se movimenta, estica o rabo, segura os chifres. O boi está vivo! Com um cântico: “Levanta meu Boi pra comer capim, pro dono da casa não falar de mim, ô pro dono da casa não falar de mim, ô levanta meu boi pra comer capim”, entoado pelas pastoras, o boi levanta e dança, para a alegria geral, e continua perseguindo o vaqueiro que segue em direção às demais casas da vila. Enquanto isso, todos cantam: “Clareia a Lua / Clareia Bem / Clareia o caminho / Que o boi estrela já vem / O boi estrela já vem. (Anônimo)”.

18 Informações obtidas através de entrevista realizada por Carlos Henrique Cardoso, que cons- titui o banco de entrevistas do ObservaBaía – Observatório de Riscos e Vulnerabilidades Socioambientais da Baía de Todos os Santos.

O mês de janeiro é o ponto alto das manifestações culturais e encerra-se com o Terno das Flores. Diferente dos Ternos tradicionais de outras localida- des, que ocorrem no dia 6 de janeiro, em Matarandiba é somente entre 24 e 25 de janeiro que o Terno sai pelas ruas. Cantando e dançando de casa em casa, o cortejo recria o trajeto dos Reis Magos em sua visita à Belém.

Outro evento que merece destaque é a tradicional corrida de canoas, que geralmente ocorre no período do carnaval, organizada pelos pescadores lo- cais. Nelson Freitas, morador local e um dos participantes, orgulha-se dos troféus que coleciona na sala de casa.

Em dezembro ocorre mais um festejo importante, o “São Gonçalo”, com mais de 100 anos de existência e sua origem muito bem conhecida pelos mo- radores. Dona Xandú, que segundo relatos, morreu aos 112 anos, foi quem iniciou os festejos do São Gonçalo na vila. Muito devota do santo e após uma promessa, decidiu percorrer as casas do lugar no intuito de abençoar as pes- soas. Carregando o Santo e um guarda-chuva para se proteger do sol, vestida

Figura 2. Boi Estrela

Figura 3. Terno das Flores

Fonte: Acervo Ponto de Memória.

Figura 4. Corrida de Canoa

de branco, ela visitava todas as casas e, após os louvores, cantava hinos a São Gonçalo. Atualmente esse festejo conta com cerca de 80 participantes, ho- mens e mulheres usando chapéus de palha com fitas coloridas, camisas lisas, roupas estampadas, cantando e dançando as cantigas, ao som de bandolins, pandeirose tambores: é o samba que dita o ritmo da festa. Os moradores aguardam ansiosamente pelo cortejo de São Gonçalo com a ceia de Natal já posta na mesa: ao chegar à porta de uma das residências, o Santo é entregue ao dono da casa, gesto que concede sua benção aos moradores. Em seguida, entram as sambadeiras e os músicos e o samba é tocado na sala de casa. A manifestação segue esse mesmo ritual em todas as casas por onde passa.19

O Reisado Zé de Vale, que ocorre durante a festa do padroeiro da vila, sr. Santo Amaro, no segundo final de semana de cada ano. O Zé do Vale é uma das mais ricas manifestações da cultura popular da vila, pois se faz presen- te não só a dança e a música, mas principalmente o teatro popular de rua. Nesse Reisado a população dá vida aos mais variados personagens. A história gira em torno do personagem central que leva o nome de Zé de Vale, filho de uma senhora rica da localidade que é preso devido ao seu comportamento “arruaceiro”. Preocupada com a situação do filho, sua mãe vai à procura das autoridades locais, o delegado, no intuito de soltá-lo. Em troca da liberdade de Zé de Vale, sua mãe oferece dinheiro, cavalo, uma barquinha, mas este só é solto quando o pedido é feito em nome da bandeira do Divino Espírito Santo. Toda a encenação dessa história é cantada a partir de pequenos versos.

Durante o ano, festejos menores acontecem na vila de maneira muito pontual, não seguindo um calendário fixo como nas principais festas. São festejos como a Santa Mazorra (doações coletivas para o preparo do feijão após alguma festa) e a festa do cajueiro (comemoração da colheita do caju), dentre outras comemorações. Na vila, também há um grupo de samba só de crianças, conhecido por Os Filhos de Maria. Esse grupo é composto por crianças de três a 12 anos e foi criado por iniciativa das próprias que são influenciadas pela maneira como os adultos sambam, mas produzem sua própria forma de dançar. Nesse sentido, podemos pensar em conhecimentos

19 É importante destacar que Dona Xandú conheceu a festa de São Gonçalo na localidade de Baiacu (também situado em Vera Cruz), tomando “de empréstimo” elementos culturais e adequando à realidade local.

e experiências que se alojam nos corpos, conhecimentos “encorporados” ou “memória encorporada” (TAYLOR, 2012), ou seja, corpos onde se manifesta uma experiência coletiva.