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É uma história muito bonita e muito complicada pra gente falar. Porque no colégio nós não aprendemos. Falamos o que nossos antepassados falavam. O entusiasmo nosso é tanto que temos tanto amor, que não nos ligamos muito na história. Fazemos tudo aquilo que o coração pede pra fazer. Por exemplo, manter Os Guaranys vivos, não deixar se acabar nunca. É uma tradição, é um amor. Pela nossa Itaparica, pelo nosso município. A Independência da Bahia ou do Brasil começou em Itaparica.4

O dia 7 de janeiro é a data local mais importante, em que se celebra a resistência aos lusos, que na mesma data, em 1823, foram impedidos de desembarcar na praia em torno do Forte de São Lourenço.5 Naquele instan- te, a resistência itaparicana alcançou importância na guerra, pois impediu uma das últimas tentativas das tropas aquarteladas na capital de estabelecer linhas de suprimento, além de algum controle sobre esta parte da Bahia. As batalhas motivaram intensa ebulição política e social manifesta em grande participação da população pobre, notadamente negros e mestiços, que se comprometeram com ideias de emancipação. (REIS, 1989) Havia clara cliva- gem social na maneira como se concebia o processo de encerramento do controle colonial, com a expressão de formas distintas de política por parte das elites e das camadas subalternizadas, o que se reverteu, posteriormente, em grande medida, em apropriações diferentes da história.

Selada a independência política, desde 1824 realizam-se comemorações em diversos pontos do Recôncavo,6 além da própria cidade de Itaparica, nas quais se manifestam narrativas fundantes permeadas por várias histórias

4 Depoimento concedido por Angélica Pitta ao autor em 27 de junho de 2010.

5 Localizado na Ponta das Baleias, extremo norte da ilha de Itaparica, foi importante fortifi- cação para estratégias de controle militar na Baía de Todos os Santos desde o século XVIII. 6 Existem festejos semelhantes em Salvador, Cachoeira, Itacaré, Jaguaripe, Salinas da

Margarida, Santo Amaro da Purificação, Saubara e Valença, todos no 2 de julho, exceto Cachoeira (25 de junho).

entrecruzadas7 e que comumente justificam os festejos locais como legíti- mos em virtude da existência de uma “verdadeira luta” em oposição ao 7 de setembro, marco nacional associado a “simples palavras”. As representações presentes nos festejos corroboram a importância itaparicana para sedimen- tação da emancipação do jugo colonial, demonstrando formulações alterna- tivas e contra hegemônicas em relação aos dispositivos discursivos nacionais mais poderosos e reverberados. A ação do nativo de Itaparica transfigura-se num componente fundamental, como uma força que de fato propiciou a vitória na batalha. A tradição oral que se estabelece acerca da Independência afirma reiteradamente os feitos lendários da comunidade, solucionando fan- tasticamente tensões, conflitos e contradições.

Em Itaparica, comemoram-se as comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008) do Brasil e da Bahia em festejos que gestaram um patriotismo atraves- sado pelas práticas populares, num universo rico em que o Caboclo sempre foi figura de maior proeminência, apropriada diferentemente nas lutas de re- presentações entre indivíduos e grupos no campo da festa. Efetivamente, não há precisão no que se refere à inclusão da imagem na festa itaparicana, no entanto, já no ano de 1824, existem registros dos festejos da Independência em Salvador, com a inserção do Caboclo enquanto uma representação que abarca aspectos ligados ao sentimento de pertença a uma comunidade polí- tica e étnica comum. (SANTOS, 1995) É provável que também em Itaparica, como na capital, a inserção tenha se dado nos primeiros anos após a Independência. A indicação mais antiga é de 1856 (OSÓRIO, 1979) e impres- siona pela similaridade com a festa atual.

O Caboclo presente no cortejo cívico de Itaparica – conhecido como Tupinambá – é representado por uma escultura com cerca de 1,20 metros na cor marrom-avermelhada. Empunha na mão direita uma lança com a qual ataca um dragão,8 símbolo da tirania colonial; na mão esquerda, segura firmemente a bandeira do Brasil. Traz diversos colares de contas no pescoço,

7 Histórias narrando a bravura dos heróis locais como Barros Galvão, que teria lutado mesmo tendo uma das mãos decepadas por força do disparo de canhões inimigos, Maria Felipa, mulher negra que lutou com poucas armas. Existem narrativas expressas nas obra de Xavier Marques, Ensaio histórico sobre a Independência (1824) e O sargento Pedro (1910), e João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro (1984).

típicos das religiões de matriz africana, e tem na cabeça um vasto cocar, feito quase sempre com as mesmas penas que compõem os braceletes, as pulseiras, as joelheiras e as perneiras. Sua imagem percorre as ruas do centro histórico nos dias 7 e 9 de janeiro num pequeno carro de guerra à antiga, pintado com as cores verde e amarela, enfeitado com a bandeira brasileira e plantas emblemáticas da entidade respectiva nas religiões afro-brasileiras, quando é cercado por pequenas multidões compostas por indivíduos de di- versas extrações sociais no fluxo pelo espaço festivo.

O Caboclo como emblema é capaz de legitimar instituições ao mesmo tempo em que representa a superposição de sentidos e formas. É um outro genérico que permite aportar um conjunto de elementos de narrativa, dis- cursos e imagens para uma identidade no Recôncavo a partir de uma reela- boração do que se considerava o índio e sua vida original. (SANTOS, 1995) O Caboclo na festa de Independência de Itaparica, em suas múltiplas dimen- sões, extrapola simplesmente a história de contatos étnicos entre negros e indígenas, possuindo pelo menos três dimensões destacadas. A patriótica, em que representa o povo que lutou e fundou a pátria com vigor e bravura. A religiosa, a partir da apropriação pela tradição dos candomblés em que ressurge como uma entidade brasileira que figura em meio a Orixás, Voduns e Inquices como o dono da terra. E, por fim, uma dimensão étnica, em que simboliza o índio positivamente integrado a nacionalidade brasileira, po- dendo ser compreendido também como referência da miscigenação. Os três modos assumidos pelo Caboclo fundem-se e manifestam suas características

Figura 1. Cabocla sobre o

Carro Emblemático Fonte: Baldaia (2011, p. 155).

distintivas, a depender do momento apropriado, sem, no entanto, em mo- mento alguma das três nuances apagarem-se totalmente.

A singularidade da inserção da figura do Caboclo enquanto ícone da emancipação política e das lutas populares pela sua liberdade mostra-se um referencial na cultura popular (CHARTIER, 1995), um ícone aberto para sus- tentar uma constante ressignificação dos festejos, uma obra aberta que se prestou a um sem número de realocações funcionais. Pôde manter-se como referência de ancestralidade indígena, bravo baiano e herói mítico fundador que se manifesta em sua multiplicidade. Estas nuances estão presentes na apresentação dos brincantes de Os Guaranys, que reconfiguraram uma tra- dição. Assim, o complexo simbólico configurado no Caboclo fornece mode- los para a ação performativa de Os Guaranys, numa apropriação de compo- nentes que se associam numa diversidade combinatória. Deste modo, neste ponto da discussão cabe indagar de que forma elementos das tradições e memórias são utilizados para a elaboração de novas tradições, performances e agenciamentos por parte da agremiação.