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situando o lugar: povoamento e transformações no século

Não se sabe precisamente quando os primeiros moradores chegaram ao lu- gar, porém na memória local há amplo reconhecimento de que a população atual descende dos primeiros moradores, sem, no entanto, excluir a presença de índios Tupinambás na região. A presença indígena é uma referência mui- to viva, personificada na figura de “Diba”, o mito do índio morto que teria dado nome à vila. Além da ocupação lusitana e negra, a presença indígena pode ser visivelmente percebida na vida cotidiana da população, seja nas técnicas de pesca, seja nos sambaquis contemporâneos. Como especula Dona Amorzinho, uma antiga moradora de 80 anos, “Dizem que aqui morava índio, quer dizer os meus avós, os antigos falava isso, mas não sei se é verdade ou não”.

A história de Matarandiba pode ser melhor entendida a partir de três marcos históricos:

a) o início do processo de povoamento; b) a chegada da empresa mineradora e; c) o início da rede de economia solidária local.

Segundo histórias contadas pelos moradores, só nas primeiras décadas do século XX é que se observa um crescimento da população da vila, em conse- quência do processo de migração. Até então, poucas famílias habitavam esse território. Essa ocupação foi concomitante às localidades vizinhas, a exemplo de Cações, Mutá e Pirajuía, no município de Jaguaripe, e foi dessa região que veio a maioria das famílias (além do distrito de São Roque, no município de Maragogipe, dentre outros). O processo de ocupação da vila teve lugar duran- te o período em que Matarandiba fazia parte da rota de navegação do navio da Companhia de Navegação Bahiana,1 que saia do município de Jaguaripe em direção à Cidade da Bahia.

1 A “Bahiana”, como era popularmente conhecida, fazia também linhas internas para Nazaré, Cachoeira, Mar Grande e Maragogipe. Os navios seguiam por rotas diversas. A partir de 1962, o governo federal começou a estimular o transporte rodoviário. Em 1964, o transporte marítimo entrou em colapso. As linhas internas não rendiam nada, porque eram numerosas e tinham pouco fluxo de pessoas. A solução encontrada para a crise foi a concentração de todas as linhas em um único ponto: no sistema de ferry-boat, ainda encontrado nos dias

Além dos navios, os saveiros tiveram um papel importante na histó- ria econômica e cultural da cidade da Bahia, suas ilhas e seu Recôncavo. Matarandiba fazia parte desse roteiro, sendo local de fabricação de embar- cações. As idas e vindas dos saveiros na Baía de Todos os Santos levavam não apenas mercadorias, mas também pessoas, costumes, ou seja, culturas. (RISÉRIO, 2004)

“A gente não precisa nascer e morrer no mesmo lugar”, comentou Seu Zequinha do Matange,2 quando perguntado sobre a sua mudança para a vila de Matarandiba. Enquanto respondia e emendava uma gaiola de siri, con- tava sobre sua vida marcada por movimentos migratórios: já tinha morado em outras localidades e estava sempre na busca de uma “vida melhor”. Seu Zequinha é um exemplo vivo de um processo que ocorrera há alguns anos atrás. Os moradores atuais foram chegando aos poucos de lugares distantes em busca de trabalho e melhores condições de vida. Foi também o que acon- teceu com a família de Dona Nenzinha: ela, o marido e dois filhos pequenos saíram em busca de trabalho e quando chegaram a Matarandiba arrendaram uma pequena faixa de terra e lá montaram um barraco de palha. Eles planta- vam mandioca e fabricavam farinha. Outras famílias também recomeçaram a vida dessa maneira, porém em outras atividades produtivas.

Não só os relatos dos moradores antigos afirmam o povoamento da vila nas primeiras décadas do século XX, como também o Livro de Batistério en- contrado na Cúria da Freguesia de Santo Amaro do Catú (atual Jiribatuba). Em 1918, pela primeira vez, o padre responsável pelos batismos faz referên- cia à existência de uma Casa de Oração na localidade, confirmando o início do processo de povoamento com o surgimento das primeiras instituições.

atuais. O sistema foi inaugurado na década de 1970. Para mais informações, ver: http:// www.gamba.org.br/wp-content/uploads/2011/06/A-implantacao-do-sistema-ferry-boat-res- gate-hist%C3%B3rico1.pdf.

2 Seu Zequinha reside com a família em uma localidade um pouco mais afastada da Vila. O lugar é referido por alguns interlocutores como sendo o antigo local de plantio e feitura da farinha de mandioca. Ele mora com a mulher e as filhas em um barraco de lona, apesar de ter uma casa dentro da vila. Ao perguntar se havia cogitado a possibilidade de construir uma casa, ele responde: “mas como posso construir, se aqui não é meu”. O Matange tem saída para o mar e é um terreno de propriedade da empresa mineradora (Zequinha, 60 anos, 15 de outubro de 2012).

As pessoas que chegavam vinham também de regiões pesqueiras e aca- bavam permanecendo nas mesmas atividades; outros vinham trabalhar em construções de alvenaria (as antigas casas de palha estavam sendo substitu- ídas por casas de alvenaria e na vila não haviam trabalhadores nessa área). O plantio nas roças e o corte de lenha também eram atividades bem procu- radas pelos novos moradores: a obtenção de lenha para o vapor da Bahiana foi uma importante atividade por um longo período.3 Havia um pequeno estaleiro de propriedade de Martinho dos Santos que necessitava de mão de obra externa. Além disso, vale destacar a produção de cal a partir das cascas de ostras e outros mariscos. “Os sambaquis ameríndios se convertiam em material para engenharia lusitana: os carbonatos de cálcio das conchas, depois de queimados, serviam para fabricação de cal e foram utilizados nas primeiras construções portuguesas”. (RISÉRIO, 2004, p. 22) Por muito tempo se produziu cal na vila, provavelmente até metade do século XX. Além da pro- dução de cal, também existia um navio que retirava manganês dessa região próxima à Ilha da Cal.

Em 1960, uma empresa mineradora inicia atividades na Ilha de de Matarandiba com estudos para a exploração das jazidas de salgema. Nesse período, a Companhia construiu uma estrada ligando a Ilha de Matarandiba à Ilha de Itaparica, realizando um grande aterro marítimo que alterou pro- fundamente o curso natural da água do mar na localidade. Os impactos am- bientais oriundos desse aterramento até hoje não foram apropriadamente avaliados, no entanto, é comum ouvir dos pescadores que algumas espécies marinhas deixaram de ser encontradas na região. Logo após a construção da estrada, o acesso à vila passou a ser controlado por meio de um portão e guarita guarnecida para controle da estrada. A Companhia adquiriu extensas faixa de terra da ilha, incluindo também grande parte da vila. “A ilha hoje pertence à ela, comprou tudo, e quem é dono manda”, como afirma um morador de 72 anos. Apesar da expectativa econômica em torno da chegada da empresa na região no que se refere à criação de postos de trabalho, estes até hoje são temporários e em atividades que demandam trabalhadores com menor qualificação e baixa remuneração.

3 Atualmente é proibida a retirada de madeira, seja para lenha a ser usada pelas marisqueiras no cozimento de marisco, seja para artesanato.

O processo de transformação acelerada da Cidade da Bahia (atual Salvador) e o Recôncavo é iniciado com a chegada da Petrobras4 e culmina com a im- plantação do Complexo Petroquímico de Camaçari.5 Essa nova configuração incide diretamente sobre uma região do Recôncavo que até então era isola- da: a porção norte passa a centralizar as operações industriais e tecer novos laços com Salvador. Forma-se então a Região Metropolitana de Salvador e, consequentemente, o crescimento ao norte da Capital. O Recôncavo sul, tra- dicionalmente reconhecido por sua arquitetura barroca e pela produção do açúcar e do fumo, foi aos poucos abandonado à sua própria sorte.6 (RISÉRIO, 2004)

Esse processo de esvaziamento econômico da porção sul do Recôncavo também atingiu a Ilha de Itaparica, já que esta dependia intensamente de ou- tras cidades do Recôncavo. Conforme destaca uma moradora de Matarandiba, “Aqui vinha muito embarcadiço, esse porto ficava cheio de saveiro, esses bar- co que vinha de Nazaré, vinha tudo carregado, muito rapaz daqui quando não achava barco daqui pra andar ia nos barcos de fora” (Dona Armozinho, 80 anos, 22 de dezembro de 2012). Em 31 de julho de 1962, uma grande região da Ilha de Itaparica emancipa-se do município de mesmo nome, formando o município de Vera Cruz, do qual Matarandiba faz parte.

4 Apesar de Risério (2004) utilizar Petrobras, a exploração de petróleo na região é anterior à criação da Estatal. Em 1941, o governo federal por meio do Conselho Nacional de Petróleo (CNP), começar explorar petróleo no Recôncavo. Ver: http://static.scielo.org/scielobooks/ jpst2/pdf/brito-9788523209216.pdf.

5 O Polo Petroquímico de Camaçari iniciou suas operações em 1978.

6 As delimitações do Recôncavo variam do ponto de vista histórico-geográfico. Pesquisadores como Maria Brandão (2007) e Milton Santos (1998), por exemplo, indicam delimitações diferenciadas. Conforme esclarece Brandão (2007), desde meados de 1970 o interesse do governo federal foi crescentemente dirigido à Região Metropolitana de Salvador (RMS), pro- vocando uma redefinição do termo “recôncavo”, que passa a excluir a própria RMS e os municípios ao norte e oeste dessa região, ficando restrito à região sul e mais 14 municípios de regiões próximas. Poderíamos afirmar, então, que os Recôncavos são muitos e, principal- mente, que são “moventes”, tendo os seus limites administrativos, econômicos e culturais se modificando ao longo do século passado. Para uma discussão aprofundada sobre essa região. (CAROSO; TAVARES; PEREIRA, 2011)