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O grupo cultural Paparutas é formado por cerca de 35 pessoas da Ilha do Paty. Consiste em um grupo de samba de roda que com a coreografia, música e gestualização resgata parte de uma tradição popular que os moradores co- nheciam por “comédias”.

As “comédias” eram apresentações públicas, que assemelhavam-se a uma espécie de teatro popular, realizadas anualmente nesta ilha, compostas por trechos temáticos, cantados e coreografados, que encenavam sobre eventos cotidianos, personagens estereotipados, as estações do ano, datas come- morativas, entre outros. As apresentações podiam ser dançadas, cantadas e interpretadas através de encenações de personagem por meio do humor,

manejados pelo olhar de seus emissários. Cada temática era representada numa cena ou ato. Nos relatos dos participantes não há informação do pe- ríodo de surgimento dessas “comédias”; sabe-se apenas que foram trazidas de outras localidades pelas gerações passadas5 e incorporadas pelos morado- res da ilha, que nelas congregaram modificações e novas criações, passando então a fazer parte da cultura e das tradições locais. Nesse sentido, a noção de tradição inventada, popularizada nos estudos acadêmicos principalmente a partir do trabalho de Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984), lança luz à compreensão desse processo. Hobsbawn e Ranger destacam em especial o caráter inventivo da tradição. Como os autores assinalam, essas tradições geralmente estão assentadas em elementos de um passado remoto, aos quais os indivíduos e as comunidades incorporam significados novos, passando a ser atualizadas e repetidas. Atualmente, os moradores buscam realizar, em moldes diferenciados, práticas culturais dos antepassados, no qual algumas manifestações culturais se mantiveram até o presente – mesmo que reinven- tadas – enquanto outras foram deixadas nas lembranças do passado.

Através de entrevistas realizadas durante minha pesquisa de mestrado, os moradores relembraram algumas partes da “comédia”. Há, portanto, um registro na memória destes moradores acerca deste tipo de divertimento po- pular que, juntamente com elementos tradicionais e de criatividade, foram guardados nas memórias dos mais antigos e transmitidos parcialmente para as gerações mais jovens que hoje participam do grupo.

Mais recentemente, um trecho da “comédia” foi retomado pela comunida- de com a formação de um grupo chamado Paparutas. No Paparutas, a comida é o foco central da apresentação do grupo e o momento da preparação dos alimentos é uma ação coletiva que mobiliza os participantes num ato festivo. As mulheres preparam as comidas que são utilizadas como objetos da perfor- mance de apresentação do grupo. Elas dançam com gamelas6 de comidas tí- picas – caruru, vatapá, peixe, moqueca, frango e outros congêneres – levadas ao topo da cabeça. A coreografia é feita em círculo, tendo uma personagem ao centro da roda, chamada “a dona da cozinha”. Ao longo da dança cada dançarina dirige-se ao centro apresentando a sua comida na expectativa de

5 De acordo os relatos de alguns interlocutores, os criadores teriam se inspirado em manifes- tações praticadas em outros locais, embora não saibam precisar datas e locais.

aprovação aos olhos da personagem central. O “banquete” é preparado para ser degustado pelos participantes e expectadores depois das apresentações, quando então as comidas são servidas e o samba é embalado de forma espon- tânea pelas pessoas em volta.

O historiador Mikhail Bakhtin (1993, p. 247), autor que aborda a natureza da cultura popular cômica na Idade Média e no Renascimento, investigando as obras de Rabelais e a história do riso, enfatiza a centralidade da comida nos atos comemorativos, e afirma que a comilança, o banquete, “é uma peça necessária a todo regozijo popular”. Afirma também o caráter coletivo dessa partilha dos alimentos relacionado às festas populares, já que “[...] esse comer coletivo, coroamento de um trabalho coletivo, não é um ato biológico e ani- mal, mas um acontecimento social”. (BAKHTIN, 1993, p. 246)

O Paparutas pode ser caracterizado como um tipo de samba de roda que começa mais lentamente e no final se torna um grande “sambão” no qual todos cantam e dançam juntos. A dança, especialmente o samba, é bastante apreciada e se faz presente nas diversas formas de diversões feitas na co- munidade. Quanto aos instrumentos utilizados nas apresentações, podemos perceber a introdução no grupo atual de tipos mais modernos, a exemplo do baixo, que foi acrescentado e apreciado pelos participantes que acham a apresentação mais animada quando o instrumento é tocado.

Assim como os instrumentos, roupas e indumentárias (antes improvisa- das com tecidos baratos e até mesmo lençóis, para figurar e representar os trechos da comédia) atualmente são padronizadas. A prefeitura municipal patrocina os tecidos para confecção das roupas, mas cabe aos participantes escolherem os tipos e estampas, bem como os modelos. Sobre este aspecto é interessante observar que as estampas podem ser variadas enquanto os mo- delos são sempre os mesmos: para as mulheres, blusas, saias longas e muito rodadas, torço na cabeça, utilizado também para apoiar as comidas e colares; e os homens, blusas confeccionadas de malha com o nome do grupo. De acor- do com o Dossiê do samba de roda do Recôncavo Baiano, organizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 7 (2006), essa indumentária uni- formizada é mais comum nos grupos que buscam se profissionalizar.

Atualmente, algumas mudanças podem ser observadas, mas na mesma proporção se percebem as permanências. Também alguns aspectos da teatrali- dade se mantiveram conservados e seguem como premissas do grupo, já que, por exemplo, a participação dos homens limita-se somente ao toque dos ins- trumentos e às vezes ao canto, cabendo às mulheres o desempenho da maior parte da apresentação: são elas que preparam os alimentos, cantam, tocam, dançam, e são a elas que se confere o maior destaque e visibilidade no grupo.

Durante a existência das antigas “comédias”, as apresentações aconte- ciam exclusivamente na comunidade; na formação atual, elas acontecem tanto dentro da ilha, como em outros lugares, desde que haja disponibilidade e interesse dos membros. Eventualmente, são feitas visitas de grupos de ex- cursão ao Recôncavo, em geral um “turismo popular” de pessoas de Salvador e região, que vão até a ilha a passeio e para assistir à apresentação do grupo. Nesse processo, a parceria com a prefeitura parece ser significativa, já que como explanado anteriormente, oferece eventualmente apoio financeiro para compra de roupas e outros recursos, além de estabelecer contatos com

Figura 3. Grupo Paparutas em apresentação local

agências de turismos, mídia e outras formas de divulgação. O grupo tam- bém recebe incentivos da Casa do Samba,8 através de projetos de valorização do samba de roda, que auxilia os grupos com a doação de instrumentos, a capacitação dos sambadores, sambadeiras e organizadores dos grupos asso- ciados, entre outros. Além disso, as apresentações atualmente podem ser agendadas de acordo com um calendário festivo e turístico do município. Pudemos observar por meio das entrevistas que os participantes gostam de ressaltar o fato de o grupo já ter se apresentado em diversas localidades e eventos, demonstrando a satisfação em conhecer novos lugares, aquisição de novas experiências e o reconhecimento externo. O samba Paparutas ser- viu, inclusive, de inspiração para um espetáculo infanto-juvenil, de mesmo nome, produzido pelo ator Lázaro Ramos,9 exibido no Teatro Vila Velha em Salvador, em 2013, levado para São Paulo também em 2013 em apresentações no Teatro Arena Eugênio Kusnet e, em 2014, no Teatro SESC Bom Retiro, no Rio de Janeiro.

Com isso, percebemos que todos esses elementos apresentados acima, a exemplo da introdução de instrumentos modernos no samba do grupo, uti- lização de indumentárias produzidas externamente, a inserção em novas re- des de contato, da expectativa em relação ao turismo, entre outros, mostram as formas de flexibilidade e novas adesões que foram sendo incorporadas ao espetáculo. Por outro lado, evidenciam-se também alguns elementos que permaneceram e que apesar das mudanças e inovações continuam presentes no grupo.

8 A Casa do Samba em Santo Amaro, um espaço cultural instalado no solar Subaé, um casa- rão do século XIX. O local aloja a Associação de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (ASSEBA). Surgiu em 17 de abril de 2005, a partir desse movimento deflagrado pelos grupos de samba de roda do Recôncavo Baiano. Hoje conta com quase 100 grupos de samba associados e envolve aproximadamente 3 mil pessoas em suas atividades. O movimento ga- nhou corpo, estimulado por uma série de pesquisas realizadas pelo Instituto do Patrimônio Historio Artístico Nacional (IPHAN) para constituição do dossiê sobre o samba de roda. (Fonte: asseba.com.br)

9 Lázaro Ramos é um ator baiano de repercussão nacional que participou de diversas novelas e filmes brasileiros. Seus avós moraram em Ilha do Paty e ainda criança ele ouvia relatos e presenciava apresentações das “comédias” e Paparutas na comunidade.