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O baile pastoril queimada da palhinha é a derradeira festa devocional do ci- clo natalino em diferentes localidades do Brasil. Na comunidade de Palmares, município de Simões Filho, Bahia, ainda é festejado e compõe o inventário das manifestações religiosas da cultura popular tradicional de Salvador e da sua Região Metropolitana.

Pinto de Aguiar escreveu no prefácio do livro Bailes Pastoris na Bahia que essa celebração constitui uma das nossas mais antigas e ricas manifestações, reunindo expressões de literatura oral, de composição musical e de arte dra- mática. (MORAIS FILHO et al., 1957) Nos seus estudos, Morais Filho e colabo- radores (1957) registra a existência de uma Queimada da Palhinha em São Sebastião do Passé, localidade próxima a Salvador. Luís da Câmara Cascudo (1984) define o termo “queima” como bailes pastoris dançados em frente à la- pinhas em homenagem ao Senhor Deus Menino que, à meia-noite, queimam as palhas que enfeitavam o altar, e afirma que ela acontece na mesma noite da festa dos Reis. Cita Rodrigues de Carvalho (apud CASCUDO, 1984, p. 650):

A nota final das representações pastoris é a queima; a latada, que forma a gruta e a bíblica Belém, é desmanchada; e as pastoras levam feixinhos de gravetos, fazendo uma fogueira, que logo arde. A jornada da queima é sau- dosa, e aos corações das raparigas inspira muitas apreensões [...].

Câmara Cascudo (1984, p. 650) cita ainda Ascenso Ferreira que afirma que a “queima das palhinhas”, ou “queima da lapinha”, é um cerimonial quase desaparecido e raramente ressuscitado, “quando uma lapinha desperta do sono velho e canta as loas velhas”. Zilda Paim (1999) também faz referência à Queimada da Palhinha de Passé.

A partir de pesquisa bibliográfica foi possível registrar a existência atual deste baile pastoril nas seguintes cidades, a maior parte delas no Nordeste brasileiro: Recife e Região Metropolitana, Olinda, Maceió, São Luís, João Pessoa, Vila Velha. Na Bahia, tive notícias desta manifestação nas seguintes municípios pertencentes ao Recôncavo baiano e à Região Metropolitana de Salvador (RMS): Salvador, Camaçari, São Sebastião do Passé, São Francisco do Conde, São Félix, Saubara, Feira de Santana, Madre de Deus e Itaparica.

Em Portugal, segundo Ernesto Veiga de Oliveira (1995), é costume nos festejos de Natal na Vila do Conde, no Mindelo e na Póvoa do Varzim home- nagear o nascimento de Deus Menino espalhando palhas no chão ao redor do fogo e cantando versos. Oliveira diz ainda que na Suécia e na Dinamarca as palhas são usadas para anunciar a chegada do Natal. Recolhi informações de que existiriam ainda hoje grupos de pastores e agricultores, no sul da França, na região da Provence, que homenageiam o nascimento de Deus Menino e ainda realizam a Pastorale, dramatização do nascimento de Enfant Jésus. Estes registros de festas camponesas e autos litúrgicos europeus não estão sendo utilizados aqui como um “encontro de origens”, entretanto permitem contex- tualizar a festa de Simões Filho num universo bem mais amplo.

As interfaces religiosas existentes na Queimada da Palhinha entre elemen- tos do catolicismo popular e práticas religiosas de matriz africana, a maneira de vivenciar a um só tempo a brincadeira e a obrigação, a devoção festiva dis- tante dos parâmetros da igreja oficial, caracterizam o fenômeno religioso bra- sileiro. Estas características tornam a Queimada da Palhinha de Palmares uma manifestação portadora de referências à identidade e à memória do Brasil.

Trata-se de um baile pastoril (ou baile de pastorinhas) transmitido oral- mente através de gerações que permanece sendo cultivado nesta região. É ao

mesmo tempo um rito religioso e uma festa popular, promoveu suas brin- cadeiras e obrigações na antiga Fazenda Coqueiro, depois transformada em Chácara Palmares, localidade próxima à Água Comprida, antes distrito da capital, atualmente município de Simões Filho. Esta foi uma das primeiras regiões ocupadas pela colonização portuguesa no século XVI, quando se deu o embate entre processos civilizatórios profundamente diferentes. Com o de- clínio da cana-de-açúcar e as inadequações do processo de abolição da escra- vatura no final do século XIX e início do século XX, aprofundaram-se as con- tradições sociais e culturais, restando aos negros recém-libertos a exclusão social. Na Simões Filho contemporânea, como em toda a RMS, destaca-se a presença marcante dos descendentes destas comunidades negras e mestiças. Pode-se dividir a história econômica da RMS em dois momentos: o pri- meiro, comercial-agrícola, compreendido entre a implantação da cidade de Salvador e meados do século XX, e o segundo, a partir de então, com o pe- ríodo da industrialização – instalação do Centro Industrial de Aratu (CIA) em 1966 e do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), nos anos 1970. Essas transformações provocaram uma brusca ruptura em todo o contexto que definia e caracterizava tradicionalmente o Recôncavo baiano, colocando dois cenários em contato: o contexto tradicional, rural, agrícola passou a re- lacionar-se com o contexto moderno, industrial, urbano, com a presença de fábricas, estradas pavimentadas, comércio e serviços. Para as comunidades rurais da região, a industrialização trouxe como consequências o crescimen- to inadequado dos povoados, o sonho do emprego e o afastamento de mui- tas pessoas da terra. As práticas culturais tradicionaislocais foram, pouco a pouco, substituídas pela cultura hegemônica, capitalista, urbana, televisiva.

No atual povoado de Palmares, encontramos hoje uma população já apar- tada da terra como principal referência existencial e ainda não totalmente introduzida na realidade e valores urbanos. Os moradores mais antigos com- põem um grupo camponês liminar nas franjas entre o rural e o urbano. A Queimada da Palhinha é na região uma festa centenária com registros em diferentes localidades, e que permanece sendo cultivada em Palmares. Esta prática religiosa, cultivadanuma fazenda do entorno de Salvador e protago- nizada por camponeses negros, nos ajuda a compreender aspectos da histó- ria cultural desta população herdeira de escravos e homens livres pobres nas cercanias da capital baiana.

Vários elementos contemporâneos nos fazem refletir sobre a reprodução desta equipe festiva e a possível tendência à sua extinção: o avanço da lógi- ca urbano-capitalista na região; a venda da Fazenda Coqueiro e o posterior loteamento da Chácara Palmares pelos novos proprietários; a exigência da compra do lote para cada família que já habitava nestas terras, a maioria dos moradores desde que nasceram; a partida dos que não conseguiram comprar o lote.

Figura 1. Lapinha do Senhor Deus Menino

Estou considerando o momento da venda da Fazenda Coqueiro – pro- vavelmente entre 1960 e 1970 – e o consequente loteamento da Chácara Palmares, o ponto de inflexão, de ruptura, da cosmovisão e do modus vivendi da população camponesa que ocupava aquelas terras como trabalhadores rurais. A partir destas transformações, a terra ganha outros significados e as relações sociais modificam-se qualitativamente.

A terra, referência material, simbólica e existencial do camponês, pre- cisou ser ressignificada. A partir de então, precisaria ser comprada, o que configura o estabelecimento da lógica da propriedade individual; na trans- formação das relações de reciprocidade e solidariedade dos seres humanos com a terra, modificam-se todas as outras relações. Os seus ritmos industria- lizam-se com a transformação da terra em mercadoria, e as festas mudam de significados.