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A principal festa popular da comunidade é o festejo católico em comemora- ção a São Roque, no qual acontece a festa religiosa e a profana, celebradas no

1 A definição de Recôncavo Baiano apresenta modificações ao longo do tempo, excluindo ou incluindo localidades a depender dos aspectos considerados, quais sejam, econômicos, geo- gráficos ou identitários.

mês de setembro, momento de intensa socialização na comunidade. Todos os anos, alguns moradores são escolhidos, entre aqueles que geralmente fre- quentam regularmente a igreja, para organizar a festa, sendo um deles esco- lhido como o(a) representante da festa. São feitas as novenas2 nas noites que antecedem a celebração da missa principal em homenagem ao santo. Um dia antes desta celebração, sempre um sábado, ocorre a apresentação de bandas musicais, que atualmente são patrocinadas pela prefeitura, que também arca como a montagem da estrutura para a festa. Algumas destas bandas que se apresentam são compostas por artistas da própria comunidade. No domingo em que ocorre a missa também é organizada a procissão, que consiste na exi- bição da imagem do santo, carregado num andor por homens, percorrendo as ruas do lugarejo. Encerrados os rituais religiosos, novamente as pessoas se reúnem na praça local para apresentações culturais e outras formas de interação que perduram até boa parte da noite. Tanto a cerimônia ritual religiosa como os divertimentos festivos atraem muitas pessoas das redonde- zas, especialmente parentes e amigos de moradores que residem em outras localidades e na capital, e que são recebidos e acomodados na comunidade.

Mesmo com o envolvimento da prefeitura através do auxílio financeiro para ornamentação e contratação de atrações musicais, a comunidade não deixa de se mobilizar internamente para conseguir recursos para realizar os festejos. Alguns dias antes da festa acontece a “esmola cantada”, uma ma- nifestação cultural e religiosa de influência afrodescendente que percorre as casas a fim de angariar recursos para a festa de São Roque. Na “esmola cantada” canta-se e dança-se sambas de roda típicos da região. Assim, como Martha Campos Abreu (1996, p. 10) assinala, estão entre os traços da herança colonial religiosa “[...] a mistura do sagrado com o profano nas festas religio- sas, a importância do culto dos santos e a teatralização da religião, sinais já consagrados pela historiografia de uma cultura popular em oposição à uma religiosidade oficial e erudita”.

Tais manifestações promovem o sentimento de pertença que, principal- mente durante as festividades populares, tende a se reafirmar. Por outro lado, são também ocasiões que potencializam desavenças e discussões, às

2 Celebrações de missas católicas que ocorrem durante um período de nove dias antes dos festejos em homenagem ao santo padroeiro.

vezes desencadeadas por brincadeiras, piadas, por excesso de bebidas alcoóli- cas ou encontro entre pessoas ou parentes com algum grau de inimizade, já que as festas proporcionam o encontro em um mesmo espaço coletivo. Não é raro o fato de também haver reconciliações pelo “espírito de confraterniza- ção” que estas comemorações propiciam.

A única igreja existente na localidade foi construída em 1949 pelos mo- radores, pois antes dela as missas eram realizadas num antigo casarão que pertenceu à família tida como proprietária das terras onde historicamente esta comunidade se estabeleceu. Segundo os relatos orais, a igreja foi cons- truída em homenagem a São Roque devido uma promessa coletiva feita em virtude da ocorrência de uma epidemia na localidade.

Aqui é São Roque porque aqui, eu era menina não lembrava, mas minha mãe e o pes- soal antigo tudo fala que teve uma epidemia de sarampo, assim, antigamente bexiga que chama varíola né, então o pessoal tudo ficou acamado. Meu pai mesmo largou o couro todo dessa doença, então aí fez promessa, ia a pé lá pro Engenho de Baixo pra missa, depois botou aqui num sobrado grande que tem lá em cima, que hoje já tá destruído até o pessoal reunir e construir a igreja e aí estamos aí, todo setembro é a procissão e a missa.3

No catolicismo, São Roque é o santo geralmente associado à proteção contra as pestes e está relacionado às enfermidades. Foi a este santo que, no passado, segundo os relatos de alguns entrevistados mais velhos, seus familiares e parentes haviam depositado orações e esperança de cura para as pessoas atingidas pela moléstia. As promessas representam uma forma de comunicação religiosa e de trocas entre o mundo sagrado e o terreno, por meio de milagres pedidos pela intercessão dos santos e garantidos pelo “pagamento” prometido quando a graça é alcançada. O culto ao santo, e sua homenagem pela comunidade, demonstram a relação existente entre even- tos e fatos cotidianos e a prática religiosa pelos sujeitos desta coletividade.

É principalmente nos períodos de festa, especialmente as comemorações da festa de São Roque realizada no mês de setembro, que parentes residen- tes em outras localidades, amigos e pessoas de cidades e vilarejos próximos

3 Entrevista realizada no Paty em janeiro de 2010 com D. Zuleide Assunção, 76 anos, aposen- tada e marisqueira.

visitam a ilha. Os festejos proporcionam, ainda, a demanda de trabalhos tem- porários que também geram renda para algumas famílias: apresentação de grupos musicais locais que recebem cachês da prefeitura para tocarem nos dias da festa, vendedores ambulantes e o aumento da demanda por pescados e mariscos provenientes dos manguezais que rodeiam a ilha.

Figura 1. Igreja de São Roque – Ilha do Paty

Fonte: Elaborada pela autora.

Em outras comemorações como Semana Santa, São João e Natal, é co- mum os moradores festejarem coletivamente com a preparação de comidas, que são compartilhadas entre as famílias. O Natal é precedido com a prepa- ração do presépio na sede4 da comunidade, quando é realizada a tradição da “queima das palhinhas”, praticada também em outras comunidades rurais desta região e que está relacionada aos festejos dos Santos Reis. Estudos de

4 Salão que é utilizado como espaço coletivo para a realização de eventos diversos de interesse da comunidade.

folcloristas, como Cascudo (1984), atentaram para a prática da queima das palhas dos presépios em comunidades rurais e interioranas, relacionando- -a a práticas do catolicismo popular de origem portuguesa que, no Brasil, especialmente na Bahia, se mescla com formas culturais de influência afri- cana. Esse ritual envolve desde a montagem de um presépio até a queima das folhas de pitangueira, usadas na ornamentação, queimadas na praça pública anunciando o encerramento do período natalino, num ritual festivo- -religioso, embalado ao som de cânticos religiosos, seguido de sambas de roda. Esta prática é feita entre os membros do próprio lugar, praticamente sem presença de pessoas de fora.

Cabe ressaltar que embora o catolicismo seja atualmente a religião que a maior parte dos moradores se autoidentificam como praticantes, durante a pesquisa percebemos que o candomblé foi uma religião de importância significativa na comunidade no passado, e que foi aos poucos perdendo sua potencialidade de atualização como sistema religioso, o que não equivale à sua obsolescência como conjunto simbólico de crenças, muitas vezes perpe- tuado por meio de formas sincréticas.

Esse arsenal de eventos culturais relacionados às comemorações coletivas da comunidade deixa perceptível o processo de reinvenção celebrativa que se processa nas mudanças que a própria sociedade moderna coloca perante as possibilidades de autonomia do grupo e as interferências de instituições como o poder público e a indústria cultural.