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“a vida é uma festa, eu nasci em festa, é tudo

que a gente tem. Quando eu morrer, se não tiver uma festa lá em cima, eu invento”.1

O povo da Ilha é de maré!

As águas envolvem e sustentam o estilo de vida, os rituais e os princípios organizativos da vida dos habitantes da Ilha de Itaparica. A reverência às divindades, a relação com a construção e o uso das embarcações (de pesca, transporte de pessoas, animais, víveres e materiais diversos) compõem uma parte desta interação com o mar, os rios, os córregos que integram a paisa- gem geográfica insular.

Nesse contexto de mistérios e caminhos, o mar tece os fios de relações essenciais aos habitantes da ilha. Engendra uma forma de pensar e se situar no mundo que perpassa as práticas cotidianas, as manifestações religiosas e tantas outras expressões dos nativos.

1 Odete dos Santos Castro, moradora da localidade de Conceição, Vera Cruz – Ilha de Itaparica. Depoimento concedido à autora em 2002.

Neste capítulo pretendo homenagear os mestres saveiristas da Ilha de Itaparica, marcando algumas concepções sobre as festas, que fazem parte de um estudo mais amplo sobre o tema. Os saveiristas são homens do mar, que com suas embarcações a vela transportavam, em tempos idos, a história da Baía de Todos os Santos por mares e rios. Atualmente, as embarcações que foram preservadas persistem na sua missão de levar as práticas culturais e o imaginário do povo das regiões onde eles vivem.

Minha admiração e respeito às mulheres, que são o elo entre o material e o imaterial, parceiras dos homens na labuta cotidiana, na resistência e cultivo aos valores humanos e à festa. Tradicionalmente elas se empenham na busca da alegria e do prazer, acreditando que esse estado de espírito traz benefícios às pessoas no dia a dia e na vida futura, quiçá até em outras vidas.

Em situações extremas, especialmente aquelas relativas às questões de saúde, quando a viagem para Salvador era de emergência, de dia ou à noite embarcava-se o doente sempre com os homens mais fortes do local, porque se faltasse vento eles conduziam a embarcação a remo. Os saveiros a vela tinham seus códigos de comunicação próprios do lugar: habitualmente usa- vam bandeiras sinalizadoras para avisar às embarcações que passavam ou aos que estavam em terra sobre o desfecho dos acontecimentos. Por exemplo, quando a mulher paria no saveiro; em caso de morte, a sinalização indicava que outra embarcação deveria sair para providenciar a compra do caixão.

Essas teorias nativas são difundidas no contato com os veranistas, com pessoas que estão adotando a ilha como espaço de moradia (alguns tentando escapar do estresse das grandes cidades) ou simplesmente outros que estão aí se fixando por motivo de trabalho (a exemplo dos técnicos do Distrito Industrial de São Roque do Paraguaçu); estes últimos residem principalmen- te nos condomínios fechados.

a travessia

A festa que desejo retratar é a de Santo Amaro de Cacha Pregos, que mobiliza os saveiristas de Itaparica em direção à Jaguaripe. O cenário da travessia em louvor a Santo Amaro tem a Baía de Todos os Santos como espaço basilar; o trajeto acontece na interseção entre o Atlântico, pela Ilha de Itaparica (Cacha

Pregos) e o rio Jaguaripe navegando rio acima, em direção ao município de mesmo nome.

Jaguaripe um dos municípios banhados pelas águas da Baía de Todos os Santos (antiga Freguesia de Nossa Senhora d’Ajuda de Jaguaripe) foi a primei- ra vila fundada no Recôncavo baiano, em 1697. A fundação dessa vila bem como de outras nos séculos XVII e XVIII está relacionada a uma política da Coroa portuguesa para manter sob controle redes urbanas que permitiam o acesso ao sertão.

Naquela época estava-se descobrindo ouro em Minas Gerais e no sertão da Bahia. Segundo Azevedo (2011, p. 219), “[...] a transformação de portos em vilas tinha como objetivo controlar o contrabando, a evasão de impos- tos e os conflitos sociais nessas áreas [...]”. Nas primeiras décadas do século XVIII Jaguaripe produzia tradicionalmente farinha de mandioca e materiais de construção num período em que o Recôncavo era uma região de prospe- ridade e riqueza.

Azevedo (2011) realiza uma descrição minuciosa da arquitetura da antiga vila e uma delas me interessa por referir-se a circunstâncias concernentes ao imaginário dos ilhéus de Itaparica. Assinalando as características dos edifí- cios públicos do Recôncavo baiano, o autor destaca a importância da Casa de Câmara e Cadeia que abrigava no pavimento superior o legislativo, o execu- tivo e o judiciário e no andar de baixo a cadeia pública. Prossegue o autor:

[...] trata-se de um casarão recoberto por telhado de quatro águas, que [...] pouco difere de uma casa nobre civil. Mas possui duas particularidades. As enxovias ficavam em um subsolo aberto para o mar, que eram inundadas nas maiores marés e ao seu lado ficava um portal, onde se realizava o merca- do com produtos trazidos de barco [...]. (AZEVEDO, 2011, p. 248)

Os nativos mais antigos da Ilha de Itaparica contam que os presos da Casa de Câmara e Cadeia de Jaguaripe eram submetidos à tortura, porque quando a maré enchia e as celas eram inundadas muitos morriam afogados. É interessante notar que essa história é recorrente sempre que eles citam o município de Jaguaripe.

Na festa de Santo Amaro de Cacha Pregos essas memórias parecem emer- gir, e o que foi sofrimento, privação da liberdade, morte, converte-se em outros atributos como a troça, a alegria, os excessos de comida e bebida,

a carnavalização da vida.2 O cultivo desses repertórios coletivos desvela o entrelaçamento de mundos que interagem caracterizando a festa como um acontecimento plural.

A Baía de Todos os Santos foi testemunha de embates e pelejas singu- lares entre os europeus pela exploração e posse das terras de Santa Cruz, entre os indígenas que guerreavam entre si pela conquista de novos sítios, entre indígenas, europeus e africanos e seus descendentes nas lutas pela Independência do Brasil na Bahia. Desde o começo da ocupação portuguesa, as relações entre esses povos não foram unânimes alternando-se entre as negociações e as hostilidades e enfrentamentos.

Como esclarece Schwartz (2011, p. 17), “o uso das populações indígenas como forças militares na periferia do império, como ‘soldados étnicos’, era [...] comum nas Américas [...]”. Os portugueses encabeçaram o emprego des- sa estratégia estimulando as divisões “tribais”; conformavam as populações indígenas que se aliassem aos colonos para o “controle e policiamento” dos africanos escravizados nas colônias. Os indígenas que não aderiram a esse es- tratagema lutaram com vigor para não se submeterem à autoridade lusitana. Nesse contexto, ocorreu a “Santidade de Jaguaripe”, movimento de rebeldia social e cultural ao colonialismo. Seus adeptos zombavam dos padres e do catolicismo, rejeitando suas crenças e mitos oficiais.

Analisando a Santidade de Jaguaripe, Risério (2004, p. 99) define o movi- mento de Jaguaripe como “[...] a santidade mais importante de nossa história quinhentista, autêntica seita herética que, comandada por um caraíba já marcado pela catequese jesuítica, desafiou o colonialismo, a escravidão e a obra missionária dos inacianos [...]”. Esse movimento data da década de 1580 e seu líder foi um índio caraíba de nome Antonio. Risério (2004) aponta o jogo de contradições da Santidade, destacando dois aspectos. Um dos pontos discutidos pelo autor marca o fato que o caraíba rejeitava os ritos católicos, mas incorporava signos cristãos à seita que liderava apresentando-se como feiticeiro tupi e o “[...] verdadeiro papa chefe da verdadeira Igreja que levaria

2 A propósito dessa carnavalização, discutida na obra de Bakhtin (2013), esta pode ser carac- terizada por “um mundo às avessas”, “[...] a reversibilidade entre a morte e a vida – a perma- nente vitória da vida, constantemente recriada – é a razão nuclear da alegria característica do carnavalesco”. (MOURA, 2011, p. 90)

os índios para o céu [...]”. Desta forma, a Santidade engendrou “[...] uma espé- cie de catolicismo tupinambá [...]”. (RISÉRIO, 2004, p. 99-100)

Outro aspecto que caracterizou a Santidade foi a atitude de um impor- tante senhor de engenho da região, Fernão Cabral, amigo do governador Teles Barreto, que atraiu e acolheu os índios para suas propriedades, fingin- do ter-se agregado à Santidade, mas o intuito do poderoso era escravizá-los. Uma parte da seita de Antonio deslocou-se para suas terras; como o culto não era de pouca monta, os indígenas se fortaleceram e assumiram o po- der. Irromperam rebeliões de outros senhores de engenho, fazendo com que Fernão Cabral perdesse o controle da situação e culminando com a invasão e destruição da Santidade por tropas enviadas pelo governador.

O intercâmbio de modelos civilizatórios, herança da Santidade de Jaguaripe, contribuiu para a diversidade de histórias, práticas cotidianas, formas de expressões poéticas, apropriadas às circunstâncias da vida dos nativos de Jaguaripe. Eles souberam aproveitar fragmentos de suas matrizes para gerar outras concepções de existência. Como bem caracteriza Olivieri- Godet (2011, p. 579),

Além da ilha de Itaparica e a região do Recôncavo baiano serem lugares em que ocorreram acontecimentos marcantes da história do país, sua dimensão simbólica está reforçada pelo fato de estarem na origem das primeiras ins- crições poéticas da natureza brasileira.

As práticas culturais constituem-se como referências para o desenvol- vimento de relações que são o pano de fundo para fluir o jogo da vida... Remetem a uma reinvenção do fazer cotidiano, expandindo as perspectivas de identificação e pertencimento. Existe uma intencionalidade no viver o momento, fazendo do lúdico uma referência para enfrentar as pressões da vida ordinária. Entrelaçar os fios da festa significa romper com a ordem pre- vista, invertendo-a para inaugurar outras formas de pensar e agir. Esse pa- rece ser o espírito da festa de Santo Amaro de Cacha Pregos entre os ilhéus.

a festa

A Ilha de Itaparica é constituída de dois municípios, Vera Cruz e Itaparica. Cada um com suas próprias vocações se irmanam para festejar o Senhor Santo Amaro de Cacha Pregos no trânsito festivo para Jaguaripe. Santo Amaro, o padroeiro de Cacha Pregos, é também o patrono da Paróquia de Santo Amaro de Jiribatuba.

Cacha Pregos, um distrito de Vera Cruz, acha-se encravado em um dos pontos extremos da costa da Ilha de Itaparica. Começa no rio das Aratubas e seus limites são: ao norte – Itaparica; ao sul – Barra dos Garcez; a leste – Oceano Atlântico e a oeste – o município de Jaguaripe.

O mar calmo, mas com fortes correntezas, requer atenção dos banhistas. O pôr do sol revela-se deslumbrante especialmente quando acompanhado de deliciosa moqueca de baiacu, por exemplo: é uma saudável forma de encer- rar um dia de trabalho!

Entretanto, esta aparente mansidão do mar, para quem conhece a barra de Cacha Pregos, é motivo para cautela e “malícia”, na entrada e saída das embarcações. Como nota Cosme Azevedo, morador local:

A barra falsa, essa de Cacha Pregos, não tem lugar certo dela ficar, não é pedra, é areia. Se uma embarcação encalhar e o sujeito não souber trabalhar a areia enterra, a força d’água carrega a areia; tem a força de maré que a barra pode mudar de um dia para outro. A saída da barra nem todo mundo tem coragem de sair porque é coroa e rasga direto; a saída é muito lá fora, se a maré tiver vazia ainda pior.3

No plano oposto ao mar, o porto e o extenso manguezal emolduram a pai- sagem pontilhada por amendoeiras e árvores como o centenário tamarineiro com sua copa densa e folhagem frondosa verde-escura. Aí se encontra a Praça do Pau Mole, lugar para reflexões e deleite ou simplesmente para deixar o tempo passar. O cenário é bucólico principalmente nas noites de lua com o prateado refletindo no espelho d’água.

Durante o dia as partidas de dominó reúnem os homens que vão rela- xar após a labuta do dia a dia da pesca, da construção e manutenção das

3 Cosme Lima Azevedo, 81 anos, pescador. Morador da localidade de Barra Grande, Vera Cruz – Ilha de Itaparica. Depoimento concedido à autora em abril, 2014.

embarcações. Nesta oportunidade, enquanto se desenrolam as partidas, re- lembram antigas histórias e casos pitorescos do local; fazem bom uso desses encontros para atualizar as novidades da terra.

A travessia Jaguaripe-Cacha Pregos celebrada há várias décadas pelos na- tivos da Ilha de Itaparica destaca o que é próprio dos ilhéus: uma maneira especial de ver e viver o mundo. Faz alusão à produção de repertórios que articulam a oralidade, a ancestralidade e o imaginário dos participantes. O momento é de socialização; o pretexto é a brincadeira, o ritual, o encontro.

Os saberes ancestrais, transmitidos oralmente às novas gerações qual uma teia, vão oferecendo suporte a essas manifestações culturais. A travessia entre a vida e a morte é encarada como processo contínuo, possibilitando a busca de soluções conjuntas para situações de vida.

Fazendo alusão à oralidade e sua importância no contexto das civilizações negro-africanas, Ki-Zerbo (apud SODRÉ 2006, p. 32): “[...] a tradição oral apare- ce como repositório e o vetor do capital de criações socioculturais acumula- das pelos povos ditos sem escrita: um verdadeiro museu vivo [...]”. A ancestra- lidade, um princípio norteador da cosmovisão das culturas negro-africanas que aportaram no Brasil, contribui para a compreensão desse tecido cultural do qual os festejos emergem como possível forma de representação social.

No mês de janeiro os habitantes de Cacha Pregos, no município de Vera Cruz, Ilha de Itaparica, homenageiam seu padroeiro, o glorioso Senhor Santo Amaro. A população local, os veranistas, os habitantes de distintas localida- des reúnem-se para as missas, novenas, procissões (marítimas e terrestres), a tradicional lavagem da igreja, corrida de saveiros a vela, serestas e shows com bandas locais e outras.

Cruzar os mares da vida nas alternâncias da maré é uma forma de com- preender e se situar no mundo. A brincadeira, com sua pluralidade de ex- pressões e propósitos, instaura vias de acesso para apreender essa dinâmica. A corrida de saveiros a vela Jaguaripe-Cacha Pregos ocorre sempre terça- -feira (uma terça-feira gorda!), durante o ciclo festivo. É o último dia da festa. A data é escolhida de acordo com a maré: os barcos se deslocam de Cacha Pregos na maré de vazante e retornam de Jaguaripe para Cacha Pregos, quan- do acontece a competição, na maré de enchente.

Os mestres de saveiros detêm a técnica e a habilidade para o corte do pano da vela específica para as características de cada embarcação. Deslizar

com suavidade e atender às demandas necessárias durante a competição de- pendem da aptidão desses mestres. Geralmente são aqueles que têm muita prática e experiência com o mar e que conhecem essas técnicas porque her- daram dos mais antigos.

Os deslocamentos marítimos na ilha apresentam aspectos locais bem dis- tintos, uma vez que remetem à condição de excelência em navegabilidade. Nos tempos mais antigos, a habilidade para entrar e sair das barras, o conhe- cimento de ventos e marés e dos pontos de referência em terra possibilita- vam a chegada mais rápida para a venda do pescado, portanto, a obtenção de melhor preço. Atualmente, os mestres saveiristas encontram dificuldade para difundir essas práticas, em virtude de existirem poucos interlocutores para dialogar sobre esses saberes e experiências.

Os altos e baixos da travessia assemelham-se às características que dina- mizam a festa que, de acordo com as circunstâncias do momento, apresenta maior ou menor vitalidade. Acontecimentos que antecedem o dia dos feste- jos alteram a presença do público e as formas de participação.

A brincadeira tem início nas primeiras horas da manhã da terça-feira, quando as pessoas que chegam para acompanhar a corrida se encontram na praia de Cacha Pregos, concluindo tarefas como pegar gelo para as bebidas e arrumar os petiscos (peixe frito, empanada de sardinha, pititinga frita, gali- nha assada, farofa de dendê...). Essas providências são necessárias para entrar nas embarcações e adentrar rio acima para Jaguaripe.

A maioria dos participantes combina com antecedência com os donos das embarcações, geralmente pescadores, a disponibilidade de lugares para fazer a travessia de louvor a Santo Amaro. Se por algum motivo as pessoas não fazem esse acerto antecipado (contribuindo com o combustível do barco e outros acordos discutidos com o proprietário), todos os argumentos são usados para não perder a viagem no horário de saída dos barcos (afinal, missa e maré se espera ao pé!). O fato é que ninguém fica sem lugar para compartilhar a folia.

Como parte dos festejos de Santo Amaro de Cacha Pregos, em 2014 foi realizada a 38ª Regata de Saveiro a Vela de Jaguaripe-Cacha Pregos; as corri- das integram um programa anual de regatas da Ilha de Itaparica. Em tempos idos, segundo o nativo Cosme Azevedo:

A festa sempre teve muita gente porque dentro da procissão tinha a regata, sempre teve a regata, mas era só com canoas [a maioria] de Cacha Pregos, Catu, Jiribatuba e Baiacu; eram canoas a vela, com quatro ou cinco pessoa dependurado nas cordas pra fazer beira; uma canoa daquela era um aviã.

Entre as localidades que participam da corrida encontram-se Itaparica, Baiacu, Amoreiras, Manguinhos, Gameleira, Mar Grande, Gamboa, barra a dentro da Baía de Todos os Santos. Coroa, Barra do Pote, Conceição, Barra Grande, Aratuba, barra afora na costa oceânica e Caixa Pregos, extremo sul da Ilha de Itaparica. Os saveiros a vela de um ou dois mastros deslizam e se agitam no vaivém das ondas: Frenesy, Tiganá, Lua de Yemanjá, Brinco da Costa, Encantado, Filhos de Yemanjá, Spartak, Barra Grande I, Barra Grande II, Tigamar, O Zé, Ago, Raízes de L’Arcansar, Ciclone, Bambolê, O Tal, Noroeste, Aurora, Cacha Pregos, Brotinho Legal e outros.

O elemento essencial da festa é o cortejo pelo mar. A movimentação ini- cia-se no dia anterior à festa, quando os barcos de apoio e os saveiros de cor- rida saem de suas localidades e seguem para Cacha Pregos, principalmente aqueles mais precavidos, para que não ocorram atrasos nem imprevistos na entrada da barra falsa no dia seguinte.

No primeiro deslocamento, de Cacha Pregos para Jaguaripe, as embarca- ções seguem enfeitadas com bandeirolas e palmas de dendê, com as pessoas tocando instrumentos, cantando e sambando dentro dos barcos. É costume dos participantes passarem latas de cerveja ou refrigerantes para os compa- nheiros de outros barcos, como forma de agrado durante a viagem.

Desta maneira, os circunstantes vão desfrutando a viagem comendo, be- bendo, fazendo baticum na palma da mão e com instrumentos de percussão até a chegada. Ao chegar a Jaguaripe, o movimento de gente subindo e des- cendo a ladeira do porto é intenso; é gente se atolando na lama do mangue- zal ao sair dos barcos, foguetório, samba de roda, a procissão e a Filarmônica de Jiribatuba, o som do jazz na sede comunitária.

A balbúrdia remete a uma prévia do carnaval. As pessoas organizam ou improvisam grupos de samba compostos de instrumentos de sopro e per- cussão, pandeiros, cavaquinhos e violões que arrastam os foliões pelas ruas. A multidão espalha-se pela cidade, seguindo o samba e a procissão que retorna

à igreja matriz, sempre acompanhada pela Filarmônica de Jiribatuba.4 Os co- merciantes dos bares locais disponibilizam chuveiros para o povo se refres- car do calor muito forte.

Cenas inusitadas podem acontecer nesse contexto de liberdade dos cir- cunstantes: um dos participantes das corridas, um profissional liberal, um doutor, num jogo lúdico tomou o lugar da baiana de acarajé e pôs-se a bater a massa, rememorando o tempo em que sua avó vendedora dos quitutes preparava-os para comercializar no tabuleiro da baiana.5

Na festa, o corpo se prepara para ser visto por outro, num jogo de papéis que o complementa e transforma. Essa interação é compreendida por Bião,6 no campo da etnocenologia7 como teatralidade: “todo comportamento de troca humana em que a pessoa se organiza para ser visto; é uma forma de ligação com a comunidade”. Há uma preocupação de oferecer-se em espetáculo sendo afeta- do pelo olhar do outro. O corpo é presença viva na brincadeira. As formas de apropriar-se do espaço, de cantar, de sambar, coreografar sua performance promovem essa troca com o coletivo, exprimindo a ludicidade da brincadeira.

O segundo deslocamento, no retorno de Jaguaripe para Cacha Pregos, é a corrida de saveiros, momento de entusiasmo e tensão, no qual a ges- tualidade ganha contornos distintos e representativos dos papéis que cada um desempenha naquela circunstância, dependendo da função exercida na equipe. O “cueiro”, por exemplo, tem como tarefa principal esgotar a água do