• Nenhum resultado encontrado

BERNADETE E O DESEJO DE UMA ORDEM SOCIAL DIFERENTE

Bernadete é uma mulher de estatura pequena, cabelos curtos e escuros, com algumas mechas. Ela me recebeu em sua sala, uma sala grande, ornada com tapetes e quadros nas paredes, no gabinete da reitoria, da instituição em que é reitora desde 1998. Sentamo-nos a uma mesa de reuniões muito grande, que se estende ao longo da janela de sua sala. Dali, enquanto nos acomodávamos, podíamos ver as dependências da instituição que ela dirigia.

Conversamos sobre a pesquisa. Entreguei-lhe o termo de consentimento. Bernadete se desculpou por ter agendado nosso encontro entre dois outros compromissos, o que provavelmente nos impediria de encerrar nossa conversa naquele dia. Essa primeira entrevista com Bernadete durou cerca de quarenta minutos, mas seu conteúdo despertou em mim grande interesse e apreciação por uma mulher cuja vida foi marcada não tanto pelas regras sociais de sua época, mas pelo pensamento insurgente de toda uma geração.

Bernadete viveu ativamente um período que ela mesma chama de “fértil”, de contestação e de crítica ao status quo, de desejo por uma ordem social diferente. Ela sonhou com a grande mudança, com o “estado da utopia da igualdade da liberdade”, em um momento em que as mulheres, especialmente, eram orientadas a manter a ordem social dominante, dentro de um modelo de educação que servia à preservação dos “bons costumes”.

Bernadete, uma moça tímida, descendente de uma família de comerciantes do interior, foi fortemente influenciada “por aqueles ideais democráticos da revolução francesa”, que prevaleciam entre o grupo daqueles com quem conviveu durante os anos da universidade. Esses ideais se fixaram de uma maneira forte no imaginário dos jovens de sua época. Eles foram muito importantes para Bernadete e ela sempre os conservou dentro de si. Esses ideais foram decisivos para sua trajetória, embora ela tenha sido obrigada a mantê-los em stand by por um bom tempo, devido aos diversos caminhos que uma vida toma.

4.2.1 Infância e juventude

De início, me pareceu que Bernadete era uma pessoa bastante tímida. Ela logo me confirmou essa impressão dizendo ser “dona de uma timidez que aparentemente não se demonstra”. Acrescentou que falar a seu respeito é uma coisa muito difícil. Referiu-se a si própria como uma pessoa altamente introspectiva, mas, ao mesmo tempo, muito pronta, incisiva e firme em suas posições, fruto das convicções que estabeleceu ao longo da vida. Assim, ela sabe que às vezes dá “ao interlocutor uma idéia de autoritarismo.” Porém, ela se sente “democrática na essência”.

Bernadete se entrega muito à auto-reflexão e, por conta disso, se pergunta: “como é que eu não sou anglicana?”. Ela acredita que essa característica é muito própria das pessoas que têm essa ascendência cultural histórica e de formação individual. Ela se criou não apenas em uma família, mas em uma cidade cujas origens históricas e culturais se fundamentam no catolicismo. Por ter vivenciado a religião e a cultura pregadas pelo catolicismo, ela acredita que os evangélicos, e os anglicanos em particular, têm uma postura muito mais firme e exigente em termos de comportamento, características com as quais ela se identifica.

Percebi que ela se expressa de uma forma muito clara e calma e transmite ser alguém muito culta, de notória sabedoria. Ela aprecia as artes cênicas, notadamente teatro e cinema, assim como as artes plásticas. Da literatura, aprecia sempre mais as obras que pendem para a reflexão filosófica. Talvez seja esse gosto que a leve, de vez em quando, a buscar um isolamento que lhe permita a reflexão: “Eu diria, assim, que é uma coisa que eu curto e sinto necessidade, de vez em quando, de estar, assim, um pouco à parte e buscar momentos de isolamento, para poder refletir e me auto-centrar”.

Bernadete nasceu e se criou em uma pequena cidade do interior de Santa Catarina. Seu pai era um importante comerciante e sua mãe sempre se dedicou a cuidar da casa e dos filhos. Do lado materno, tem origem espanhola, portuguesa e italiana; do paterno, italiana e brasileira.

Bernadete guarda infinitas e prazerosas lembranças dessa cidade onde nasceu e onde aprendeu a apreciar as representações que construiu naquela época “a partir daquelas pessoas mais velhas”. Este foi um tempo muito rico para ela, que foi “uma criança muito ativa, gostava de todo tipo de brincadeira, inclusive as masculinas, né. Joguei muito futebol, cacei muito, à época se caçava... ao tempo em que brinquei muito de casinha. Lá iniciei minha formação no, então, grupo de formação, o Grupo Escolar Princesa Isabel.” (Bernadete).

As histórias da educação de Bernadete nos contam algo muito comum daquela época: apenas algumas meninas e meninos tinham o privilégio de freqüentar a escola. Eram escolas de congregações religiosas, reservadas a uma minoria normalmente branca e rica. Dessa forma, o modelo de sua educação encaixou-se bem nos moldes do ensino confessional, muito comum na época. É o que contou Bernadete:

Depois da escola eu fui para o internato. Na época, década de 50, início de 60, não havia nas pequenas cidades catarinenses nada além da quarta-série. O antigo ginasial não havia lá; então, na minha família, nós éramos encaminhadas a Florianópolis, para o Colégio das freiras, e os meninos iam a Blumenau, ao colégio dos padres. Então, eu fiz, a partir da 4ª série, esta escola em Florianópolis. (Bernadete).

Quando terminou o ginásio, Bernadete voltou para sua cidade no interior. Como o curso normal já havia chegado à sua cidade nessa época, sua família entendeu que ela deveria continuar os estudos. Fez, então, o curso normal. Mesmo que não lhe interessassem as disciplinas, era ainda uma das poucas opções oferecidas às moças de sua época. Tendo o privilégio de terminar o antigo ginasial, coisa que pouquíssimos conseguiam em sua época, e também o curso normal, ela obteve um novo status: o de normalista ou professora.

O padre João Maria foi o apoio que Bernadete precisava durante o curso normal. Como havia saído de uma escola muito forte na capital, ela achava aquele curso fraquíssimo e pouco interessante do ponto de vista teórico. O padre foi para ela uma espécie de mentor, um amigo, que lhe sugeria leituras na área da filosofia, da sociologia e da educação. Foi o que a salvou naqueles dias de sofrimento em que era obrigada a ir para o curso normal. A convivência com o Padre em sala de aula levou Bernadete a escolher a filosofia como profissão. Também foi ele que a convidou, depois de formada, a ser professora na faculdade que ela veio a dirigir, muitos anos depois.

4.2.2 A escolha da profissão

“...você vai e toma contato real com uma realidade da qual você

houve falar...” (Bernadete)

Depois do curso normal, não se sentindo preparada para enfrentar um vestibular na área em que realmente gostaria – Engenharia ou Matemática – Bernadete decidiu fazer Filosofia, que considerava uma disciplina muito próxima à Matemática, pela lógica que engendra.

Porém, era desejo de seu pai que ela se casasse e, no máximo, lecionasse para crianças em seu pequeno Município. Assim, em 1963, antes de entrar para a universidade, ela prestou concurso para professora do Estado. Em seu íntimo, como algo secreto e redentor, ela sabia que depois de um tempo poderia pedir afastamento das atividades e ir para Florianópolis, para estudar e ao mesmo tempo trabalhar como professora na Secretaria de Educação. Assim, paralelamente ao concurso público, ela se inscreveu no vestibular de Filosofia.

A curta experiência de um mês como professora do Estado em uma cidade ainda menor do que a que ela morava com a família, foi fundamental na vida de Bernadete. Foi a primeira vez que ela pôde ver e sentir a dura realidade da qual ouvia falar, mas que lhe era distante. O Município onde fora lecionar era muito pobre e não havia professoras no local,

[…] porque as pessoas não estudavam, eram quase todas analfabetas, quase todos os agricultores, num Município agrícola, vinham sempre professores de fora para lecionar e que depois iam embora. Fiquei na casa de uma senhora, muito velhinha, (...) e aquilo me marcou bastante, porque era uma casa de madeira. A gente saía do bem estar da casa da gente e tinha umas frestas muito grandes tanto nas paredes, quanto no assoalho da casa... a tal ponto que a gente via a rua e a rua via a gente... era um fogão muito pequeno e panelas de barro. Quer dizer... você vai e toma contato real com uma realidade da qual você houve falar, não é? (Bernadete).

Depois de um mês cumprindo sua função como professora na rede estadual ela solicitou seu afastamento para ir estudar na Universidade Federal de Santa Catarina. Fez tudo contra a vontade de seu pai. A universidade foi para ela uma época de grandes descobertas, de dedicação aos estudos, de crescimento pessoal, de resistência à repressão, de leitura e discussão dos grandes pensadores. Uma época difícil porque não pôde contar com o apoio financeiro do pai, já que havia se insurgido contra ele para ir estudar na faculdade.

Muitas foram às vezes em que preferiu comprar um livro a comer. Os dias difíceis eram partilhados com os colegas que, como ela, também moravam em pensões ou em casas de família no centro de Florianópolis. Passou por apertos, foi à pé para a faculdade, mas não deixou de ler:

[...] às vezes, comprava uns livros e ficava só com o café da manhã, aí vinha pra universidade, morava ali na Mauro Ramos... eram casas de família que se abriam para receber estudantes do interior. Então, eu ia à pé muitas vezes. [...] mas a gente saia de casa, normalmente, de ônibus. Nós éramos mais do que o ônibus podia comportar... Havia só um ônibus que ia pra universidade, com passes mais baratos para nós. (Bernadete)

Como aluna, sempre se destacou, mas nunca pensou em fazer da Educação uma profissão. Isso não fazia parte de seus planos, os quais foram apagados, pois a Engenharia não lhe seria uma opção possível. Mas encontrou-se na Filosofia. Junto com os colegas, descobriu autores que mudaram sua vida:

Não era incomum, assim, um grupo menor [...] se reunir na casa de um ou de outro, ou então no Cristal Lanches, que era um barzinho e ficava... onde havia, lá na nossa época, o RU. Então, a gente saia do RU e ia pra lá e discutia os filósofos que estivéssemos debatendo nas aulas ou outros que se houvessem tomado interesse a partir das aulas. A gente lia, debatia, tocava violão e tomava batidinha de maracujá! Era por aí, até porque nós só tínhamos recursos pra ir até aí... era muito interessante.... às vezes fechava o barzinho, mas, como éramos um grupo habitual, eles deixavam a porta aberta pra nós e ficávamos por horas... então iam além da hora conosco. (Bernadete).

Bernadete se lembra de como era “comum a gente se reunir à noite pra questões da universidade mesmo, dos estudos”. Sartre, Simone de Beauvoir, o existencialismo... era o que estava “em alta” naqueles dias. Ela se lembra de como era difícil o acesso a esses autores, de como freqüentavam clandestinamente a biblioteca dos avós de uma colega que viajavam muito à Europa e de lá traziam “verdadeiras relíquias”, tesouros, para aqueles jovens.

Essas experiências foram, sem dúvida, centrais para Bernadete, para a construção e reconstrução de seus valores, de sua identidade e auto-estima, que havia sido estilhaçada quando ela se insurgiu contra a vontade do pai. Não foi fácil, para ela, abandonar o que sua família queria para ela.

Ela tinha medo e se sentia inferiorizada, por saber que tudo que esperavam dela era o casamento. A universidade foi para esta moça um recomeço, uma oportunidade ímpar para afirmar-se como pessoa, ser aceita por suas capacidades e por todos os dons que certamente não sabia possuir. Foi nessa época que ela iniciou um processo que certamente nunca mais

pararia – o do auto-conhecimento – e, como bem aprendeu, passou a se expor e a se abrir ao mundo público e a participar ativamente dos acontecimentos de sua época. Enfim, permitiu que os outros a conhecessem e reconhecessem seu potencial.

Bernadete participou dos movimentos estudantis característicos de sua época, não como uma líder, mas sempre no apoio, na retaguarda, na organização. Protestou em praça pública e teve a sorte de ter apoio da comunidade quando fugia da polícia. Coisa que nem todos os seus amigos tiveram. Ela perdeu uma amiga, que até hoje ninguém sabe onde está. E perdeu professores, na luta contra a ditadura:

[...] Foram momentos, assim, momentos bem marcantes, que acenderam essa indignação contra qualquer tipo de prepotência e arbitrariedade, essa vontade de democracia, de respeito às pessoas, de que não importa cor de pele, credo religioso, não importa... as pessoas têm que ser maximamente respeitadas, mas também respeitar. (Bernadete).

A formação universitária foi de extrema importância para a redefinição da identidade dessa mulher, que afirma que sua formação universitária foi moldada

(...) por aqueles ideais democráticos da revolução francesa que nos ficaram como uma coisa muito forte do imaginário da representação coletiva, né, nos jovens daquela época. Essa é uma coisa que eu considero muito importante e que eu conservo dentro de mim. Essa foi uma coisa decisiva na minha formação e no encaminhamento que a minha vida teve. (Bernadete).

Contudo, essas memórias trouxeram a Bernadete uma sensação de nostalgia, de um momento de reflexão sobre os rumos que sua vida e a de seus colegas tomou. Ela sabe bem que depois da universidade, daquela época de contestação, ela “voltou às boas”, assim como a maioria de seus amigos que tanto sonharam com mudanças no contexto social e político nacional:

[…] nós voltamos às boas! Eu voltei pra cá [pra minha cidade] pra trabalhar, né. Trabalhei num colégio estadual que havia sido transformado. Não era mais grupo escolar [em que eu havia estudado]. Vim trabalhar com sociologia e com psicologia e também aqui [na antiga faculdade] com psicologia... e dali foi indo. (Bernadete)

Na verdade, ela voltou para sua cidade porque não podia mais adiar um compromisso - “não tinha força mesmo” [notas de campo] - que havia sido determinado para ela: o casamento. Assim, voltou para casar-se. Ela conta que chegou a pensar, nessa época de fim de faculdade, em insurgir-se, como alguns de seu grupo faziam, indo para São Paulo para estudar

e trabalhar contra o regime político vigente. Contudo, isso não aconteceu. Ela se casou, teve filhos e tornou-se professora em sua cidade.

4.2.3 O magistério

“[...] aí tomei gosto por essa coisa de fazer educação mesmo como forma de promoção de pessoas.” (Bernadete).

Em 1973 foi criada, na cidade de Bernadete, uma Fundação que seria a mantenedora da Escola Superior de Estudos Sociais, cujo único curso seria, por anos, o curso de Ciências Sociais. Bernadete contou que, como essa escola fora criada dentro de um colégio confessional, servia basicamente aos padres e aos seminaristas da congregação. Era, na verdade, um “curso de Filosofia meio camuflado de Sociologia, por causa da repressão”. Foi aí que ela começou sua atividade como professora no ensino superior, “meio que levada pelos acontecimentos”.

Ela foi convidada, na verdade quase que tragada para a instituição, pelo padre João Maria, que havia fundado a escola. Ela entrou na faculdade para lecionar Psicologia, disciplina para a qual não se achava preparada. Porém, pela insistência e confiança do padre João, ela aceitou o convite e passou os dias que antecederam sua primeira aula debruçada sobre os livros que o padre lhe dera para ler. Por conta disso, acabou indo fazer, mais tarde, uma pós-graduação Latu Senso em Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica mineira. Logo mais, viria a fazer o mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, também em Psicologia da Educação.

Mas o que mais marcou a trajetória de Bernadete dentro dessa Escola, foi sua visão crítica e muito humanizada da realidade, muito influenciada pelo padre João, seu antigo professor. Foi com ele que ela aprendeu a perceber como é difícil superar o preconceito – muito forte ainda em sua época – de pensar que algumas pessoas não servem para estudar e que por isso

[…] eles têm mesmo que continuar no campo ajudando, porque são limitados. Isso era um argumento forte da época com o qual a gente conviveu, aprendeu a perceber como profundamente injusto e cruel. Tudo isso, no percurso da profissionalização, e

aí tomei gosto por essa coisa de fazer educação mesmo como forma de promoção de pessoas. (Bernadete).

Essa visão foi fundamental para a trajetória dessa professora, pois no momento em que isso começou a fazer parte dela, que isso a contagiou, esses valores ficaram claros e a sua motivação passou a ser outra. Essa visão foi um marco em sua vida e a fez atuar em todos os espaços – na sala de aula, nos conselhos da instituição, na coordenação de curso – sempre nessa perspectiva de dar ênfase à “garantia de acesso e permanência [nos estudos], sobretudo, para os segmentos mais excluídos”. E essa foi sempre a luta de Bernadete.