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Eu busca da bonita 11 linha de origeu: debates/confrontos (h•kenore) entre os velhos conhecedores eu torno das entoações (wederige hire)

II Os Tuyuka vesteu seus noues couo ornauentos Apreciações conteuporâneas sobre a circulaçmo dos

1. Eu busca da bonita 11 linha de origeu: debates/confrontos (h•kenore) entre os velhos conhecedores eu torno das entoações (wederige hire)

Proponho aqui uma leitura aos saberes/valores maiores (niromakañe) através das orientações do velho conhecedor Manoel Lima no curso de nossas conversas. No âmbito das redes contemporâneas de saberes, interessam-me suas percepções, como permutações possíveis e não como percepções sistêmicas, em torno desses saberes/valores.

Dizem os índios na região que é comum um benzedor procurar outros, para saber mais (basekeno).12 Certo dia, os velhos Manoel e Pedro Lima conversavam na varanda de

nossa casa em São Gabriel da Cachoeira, a respeito das entoações cerimonais (wederige hire). Travava-se um debate entre velhos conhecedores em torno da trajetória da Gente da Transformação. Após surgimento dos primeiros demiurgos (Gente do Aparecimento, os que viriam a ser os ancestrais), já diferenciando-se como Gente da Transformação (Pam¡ri Basoka),13 inicia-se desde o Lago de Leite, para alguns,14 a lenta

11 Pode ser traduzido também como boa, direita, acertada.

12 Basekeno também tem o sentido de reorganizar, através do benzimento, a alma de uma pessoa, que se desorganiza. Muitas vezes isso acontece simplesmente porque a pessoa se estraga por si mesma (antes de tudo por ela não seguir as devidas regras de conduta, comportamentos prescritos por um benzedor em intervenções de proteção anteriores). Não respeitou as regras prescritas num certo resguardo e adoeceu, então chama o benzedor para recompor sua alma. Em outros casos um benzedor reza uma pessoa doente, mas ela não sara. Então se procura outro benzedor que talvez faça o procedimento mais completo (basekeno) e alcance a cura.

13 Enquanto manifestações dos que viriam a ser os ancestrais da humanidade atual.

14 Em certas versões a transformação se dá no bojo da Cobra Canoa, em outras por via aérea no âmago de uma zarabatana; em outras como fermentação dentro de uma cuia de caxiri. Em certas versões ocorrem concomitantemente, de uma forma ou outra, ou como etapas subseqüentes (Andrello, 2004: 318, 325, 352).

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trajetória de transformação, conforme registrado em fartas versões da mitologia de origem regional. Processo de diferenciação que redundará na origem da verdadeira humanidade, que emergirá da água para a terra, em diferentes localidades pelas cabeceiras do Rio de Transformação.15

No debate, Mandu comentava com Pedro sobre as Casas de Transformação que cita em suas entoações:

Eu queria uma só linha, bonita,

desde o Rio de Janeiro até a Cachoeira de Caju16

(sikada añurida borotia).

Vamos debater escutando entre os conhecedores (masirã sesaro). - O que cada um ouviu?

- O que nós [exclusivo] escutamos (¡sã)?

- Será que cada um está dizendo o que o próprio avô contou? - O que viu durante o seu jejum?

- O que é contado por cada um, Makuna, Barasana?

Mandu propunha que se distinguisse o que escutaram de seus próprios avós na iniciação; que se distinguisse entre o que teriam escutado entre eles mesmos, do que escutaram de outros. Que houvesse discernimento entre o que eles, ou outros, contaram: Makuna, Barasana (Paneroa) etc. E que, consideradas suas interfaces, se buscasse entre eles, a bonita linha (de origem/transformação) através das Casas por onde eles, os Filhos da Cobra de Pedra, seguiram, diferenciando-se dos que seguiram outras trajetórias. Assim debatia (h• keno), Mandu com seu irmão menor, com relação a suas entoações:

Seria bom trabalharmos juntos,

cada um dizendo seu pensamento sem sovinar segundo o jeito que escutou.

Quando um termina o outro diz, e ajeitamos assim. - Nossa fala é assim...

- Eu não digo isso assim...

Quem sabe debatemos/confrontamos o jeito de entoar (h•keno)...

É importante falar por baixo do que ouviu (y¡ t¡ohidoka), segundo o que ouviu; falar a partir do que ouviu.

Se não é o que escutou, é à toa que fala. Se vier do que escutou, é importante, já que estão perguntando seu próprio conhecimento.

- Quando eu chego nessa Casa, o que eu digo, é porque assim me disseram... - Nessa Casa não paramos, foram outros...

15 Seguindo C. Hugh-Jones nesse aspecto, evito entrar mais a fundo nessa complexa discussão da relação entre mito e história (1979: 41), procurando apenas indicar alguns paralelos entre o que os índios entendem por tempo da origem e o que entendemos por tempo histórico (após a emergência da água para este mundo). Vários outros autores desenvolvem essa discussão.

16 Ver Cabalzar (2008: 124). Os Tuyuka consideram seu território de origem a cachoeira de Jurupari, no alto Uaupés.

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Falando Casas de origem de outros, Casas de Transformação da Cobra de Água,17 seria como brincadeira, falar à toa.

Os Desana, por exemplo, desceram do céu já com seus paricás.

Quando dizem que vieram se transformando com a Canoa de Transformação, estão falando à toa.18

Nossos netos vão estudar com esse documento e dirão, esse é nosso (mariye) lugar, por aqui nós seguimos.

Por outras Casas seguem os Tukano, Wanano, Pira-tapuia...

Assim debatia Mandu com seu irmão menor, sobre as Casas de Transformação (citadas nas entoações rituais), sobre as trajetórias de transformação distintas através das quais se diferenciaram, os Tuyuka, dos Desana, dos A¡hira...

Conversando entre nós:

- Essas são nossas Casas de Transformação; - Eu chego nessas.

- Faltam essas. - Eu queria assim.

Falando conforme escutou na iniciação (tiere t¡o kamoati), nossas Casas de origem, origem da noite, origem do fogo, origem dos nomes de mulheres e homens tuyuka...

Enquanto está no começo, ainda não precisa escrever, fica só escutando, porque ainda vamos acertar o começo,

pois são nossas coisas, (mariyarope),

não são uma coisa qualquer (b¡ri nireme nia niropeha). Debatendo entre nós mesmos, está bom.

Saber pautar a sua (linha de transformação) dentre as outras, atestando o conhecimento das mesmas em suas interfaces, remonta a capacidade de conhecedores (masirã) como Mandu.

Pam¡ri wiseri são lugares que tem a ver com a nossa transformação, lugares

de surgimento: Casa de transformação dos Tuyuka. Cada grupo sabe quais são os seus Pam¡ri wiseri. E também os nossos avós nos informam os Pam¡ri

wiseri de outras etnias (Rezende, informação pessoal).

Os conhecedores atestam que convivem com conhecedores distintos, Tuyuka,

A¡hira, Tukano; e que os conhecedores se distinguem ao mesmo tempo em que convivem

intensamente, procurando falar segundo escutaram de seus velhos, nomeando alguns. Daí o sentido aqui, de ajeitar as entoações (h•keno) entre eles. “Nós deveríamos” - enfatizava (nós exclusivo, diferenciando a sua dentre outras linhas de pensamento). Ainda mais desejando adiante registrar seus saberes/valores por escrito. Citar as Casas dos outros como se fossem suas, seria falar à toa de coisa séria, afinal futuramente seus netos

17 Os Tuyuka se consideram os Filhos da Cobra de Pedra.

18 Sobre origem, alguns povos descem do céu, outros da água, outros da terra. Esse é um aspecto. Outro é que uns se transformam com a Cobra Canoa, outros não. Comentamos adiante, em maior detalhe, a versão de Mandu a respeito da visão que tiveram da Cobra de Pedra, da descida dos Desana do céu, que em seguida se deslocam a Diawi para receber, como todos os demais, as flautas sagradas partilhadas por ¢rimo. Depois é que vieram a Diawi e participaram com todos da distribuição das flautas sagradas por ¢rimo, com a diferenciação entre as línguas (e portanto da possibilidade de ter cunhados).

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também poderão se pautar nesse documento “para dizer por onde seguiram,” lembrava Mandu.

Hoje, quando engajados em alguma possibilidade de registro, os Tuyuka pensam antecipar-se à rapidez do branco em registrar e divulgar, esperando que, antes, suas falas sejam ouvidas e legitimadas por todos os seus. Mandu instiga Pedro a juntos buscarem distinguir sua fala, sua bonita linha de transformação, também entre seus maiores. Enquanto debatia com Pedro, Mandu registrava essa preocupação:

Os brancos publicam demais.

Segundo notava o tradutor, ele teria dito isso no sentido de que, no papel, o que estava sendo dito circularia em público. Queria dizer também, conforme se verá em detalhe no terceiro capítulo, que há um modo apropriado de falar, que participa da geração de poderes e perspectivas: o menor fala por baixo do irmão maior. Sem entrar em detalhes aqui, Mandu alegava que preferia falar estes saberes ao lado dos seus irmãos maiores, Higino e Guilherme Tenório,19 moradores de São Pedro ou Mõpoea no alto Tiquié. Sendo saberes que sintetizam potência e perigo, busca-se realizarem-se em toda sua potência (bonita linha adiante), sem reverter em ameças, perigos, raiva, desconfiança (por exemplo, no falar à toa, em desacordo com maiores, expondo tal condição ao circular por escrito lá naquela região, dentre outros perigos).20

Segundo Goldman, “o que se entoa na Casa em Festa (na maloca) é uma história geral dos ancestrais, revelando como eles foram colocados juntos, segundo suas características espirituais permanentes” (2004: 40-41), partindo de uma concepção de segmentos de conhecimento sob a jurisdição de cada turma de seres, que se configuram numa biosfera de intensa especialização: um segmento que experimentou sua própria

19 Cito-o alternativamente Guilherme ou Gire. Na grafia das palavras tuyuka, ge e gi pronunciam-se como em português gue e gui (em guerra e guitarra). Os nomes pessoais de brancos assumem geralmente uma pronúncia condizente com a fonética tuyuka e uma grafia de acordo com a escrita da língua tuyuka. Guilherme vira Gire, Higino vira Isino, Paulo vira Pao. Note-se também que a, e, u - pronunciam-se como em português; e – é geralmente bem aberto, como na palavra portuguesa “fé”; o - é geralmente bem aberto, como nas palavras “avó” ou “posso”; i - é uma vogal alta não arredondada (uma dica para a pronúncia desta vogal é tentar fala o; [u] com os lábios bem esticados, sem arredondá-los); vogais que vêm antes de uma consoante surda (p, t, k, s) terão sua pronúncia aspirada; p, t, k, b, d - pronunciadas de um modo geral como em português; k pronuncia-se como c em caro; b e d são levemente nasalizados no começo das palavras; s - pronuncia-se como s em sala, e nunca como em casa; h - pronuncia-se como rr em português como em carro; y - pronuncia-se como i em português como em interromper; w - pronuncia-se como v em português como em vaca, mas afrouxando um pouco a articulação; r - pronuncia-se geralmente como r em caro; o til (~) indica nasalização.

20 Como Mandu hoje mora na cidade, e seus irmãos no alto Tiquié, as oportunidades de falar ao lado deles têm sido os encontros, reuniões e oficinas promovidos no âmbito da Escola Tuyuka, liderada por Higino e Guilherme (muito mais do que as ocasiões em que se encontram na cidade). Participar de tais encontros, Mandu tem ido quando convidado, com passagem ou transporte garantido; de outro modo, não chegaria, como acontece hoje com tantos moradores da cidade, tendo limitadas suas possibilidades de circular nesse sentido (mais limitadas do que talvez, desejassem).

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criação e seu próprio curso de desenvolvimento e diferenciação (idem: 13). Na entoação, o benzedor-entoador nomeia as Casas de Transformação (Pam¡riwi) e atravessa direto de um tempo da pré-humanidade ao assim chamado tempo histórico. Segundo Goldman, um aspecto do mito é a transformação de ancestrais (ou aspectos dos que virão a ser os ancestrais). Há todo um conjunto de possibilidades ou ênfases nessa transformação de ancestrais dentro do conjunto mítico, até depois da origem, que consistem na descendência. Segundo o autor, tudo o que consta numa perspectiva de organização social da descendência: focando na taxonímia, regras de transmissão de nomes, definição de direitos e obrigações, etc. “é apenas uma visão nossa, parcial, do que eles entenderiam por descendência. A visão deles implica em partir da espiritualidade”. Tomando a sugestão de Goldman, parte-se de niromakañe, e particularmente das entoações cerimoniais. Por isso Gire dizia: “benzimento de cura de doenças não são niromakañe, dizia finado papai.”

Rezende se refere à entoação cerimonial como entoação do mito (2007), qual seja, o mito de origem da humanidade através das Casas de Transformação Tuyuka. As entoações são realizadas em vários momentos de uma Casa em Festa (Basariwi), em certos intervalos dos cantos e danças kapiwaya, circunscrevendo os momentos de oferecimento formal das substâncias rituais previamente benzidas, como o ipadu, o breu, o caapi. A entoação cerimonial ou wederige hire acontece hoje exclusivamente no ambiente da Casa em Festa. O mesmo não diria dos cantos, ensinados em conversas noturnas mais cotidianas, seja nas malocas seja hoje, em casa. Corresponde aos diálogos formais envolvendo uma roda de vários conhecedores que se sentam na porta da frente da maloca, ou na de trás. O baya lídera tanto essa entoação, como os cantos e danças da Casa em Festa. Enquanto outros conhecedores, os benzedores, ocupam-se de outras proteções da maloca, através de vários procedimentos:

-o benzimento das substâncias rituais consumidas (comentando mais sobre o caapi) - a proteção da Casa em Festa, de doenças (diarige wanoare)

Há que se relevar os sentidos em que os modos de fala atravessam a noção de língua que possuem na região. Eles opõem, antes de tudo, uma conversa ordinária às falas ditas mais especializadas niromakañe (tuyuka).21 E embora niromakañe pressuponha o aspecto linguístico apresenta além disso, um caráter performativo específico: as danças,

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cantos,22 entoações cerimoniais e outros benzimentos unem aqueles que manifestam esse conhecimento ou comportamento, ao mesmo tempo em que os diferenciam. Marcam a diferença e a semelhança na diferença, como acontece em Diawi Essa discussão é retomada no capítulo 3.

Também há que se dar relevo às categorias23 indígenas de linhas ou caminhos (ver S. Hugh-Jones, 1995). Noções que, tal como a categoria xamanismo, têm um entendimento específico nessa região (S. Hugh-Jones, 1989), Língua e linhas remetem ao âmbito da fabricação do corpo, das vitalidades (riquezas materiais e imateriais) que circulam. Circulam produzindo linhas nos termos de uma série de distinções em torno do que pode se manifestar - visível -, e o que não deve ser visto (por mulheres, crianças, outros), falado ou escutado.

Dentre as imagens que, no rio Negro,24 ao lado da noção de Casa, seriam muito mais proeminentes que as genealogias, na circunscriçao da circulação de vitalidades por linhas paternas na região, estão as noções de linhas e caminhos. Linhas que servem como ligação umbilical entre o presente e o passado ancestral; jornadas ao longo dos rios originais;25 deslocamentos das gerações sucessivas ao longo dos rios, deixando seus mortos; nos ramos da mandioca ou da coca, que se reproduzem vegetativamente (apresentando nós em intervalos regulares). Ao lado destas noções, estão aquelas também mais consistentes com a idéia de filiação, ou sucessão de ligações pai-filho: Casa concreta; Casa como lugar de um grupo lingüístico completo; corpo segmentado da anaconda; a idéia de uma mão com cinco dedos; da cabeça e troncos de corpo humano;

22 Enquanto manifestações do poder ancestral, os componentes verbais-espirituais (estes aspectos de suas riquezas como a língua, cantos, entoações, nomes, narrativas de memória territorial) seriam considerados menos alienáveis que os componentes materiais.

23 Outra categoria nativa fundamental nessa discussão seria a categoria oka (Barasana), que meu conhecimento não permite encontrar o correspondente tuyuka. Usually translated as language (also "chin") but consider bedi oka = menstruation, tudi oka = anger, guari oka = warfare, killing. Thus oka is also behaviour, capacity, action, especially behaviour that typifies in some way. The Barasana equivalent of niromakane is keti oka (keti as in Tuyuka kiti - tale, story news, narrative etc), and oka, as above. Keti oka is all of chant (Tuyuka wederige, basere, ~wadore, dancing and dance songs, jurupary flute music, and elaborated ritual speech). You can see the problem with “saberes shamanicos” as keti oka. It is also men´s song (kapiwaya), yurupary flute music (in so far as flutes sing words) and chant (~yagore kütise). (S. Hugh-Jones, inf. pessoal).

24 Ainda que não estritamente nos termos de Lévi-Strauss, uma vez que Casa tukano não coincide com o lá referido idioma da descendência.

25 A jornada da Cobra dá origem ao rio, e seus pontos de parada, assim como as cachoeiras e pedras no seu caminho, são casas de transformação, lugares sagrados e ancestrais criados pelas danças daquela gente- ornamentos... Mas tambem com container, útero, no seio da qual se dão processos de gestacao, fermentação retratados como viajar e dançar (S. Hugh-Jones, 1995, 235-236).

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de um rio com seus afluentes; da coluna vertebral e as vértebras (S. Hugh-Jones, 1995: 239).

A bonita linha narrativa que Mandu busca ao lado de Pedro remete portanto à discussão das patrilinhas. As linhas narrativas que diferenciam, são também linhas de viagens ou percuros pelos rios, linhas de Casas ao longo dos rios, que são a versão Tukano das genealogias.

1. 1 Originaçmo26 e entoaçmo ceriuonial (por onde seguiuos)

As Casas de Transformação, ora entoadas, tornam-se pretexto ou inspiração para outras discussões, conforme se observará, sendo substrato de outros procedimentos cerimoniais ou xamânicos discutidos adiante. Substrato também para distinguir, dentre os vários procedimentos, aqueles que se referem, ou não, à sequência das Casas. Assim como as entoações nelas se fundamentam, também pode-se dizer o mesmo de certos benzimentos. Nesses casos, o benzedor encontra cada Casa e tudo o que ali originou.

A ordem, sequência e extensão do trajeto através das Casas pelas quais a humanidade tuyuka foi se originando, e pelas quais transitam em pensamento em diferentes circunstâncias, varia. Mas não são grandes temas de debate. Ainda assim, alguns conhecedores se afirmam como os que citam todas as Casas, ou os que citam maior número de Casas. Falando em nome de suas próprias linhas, reconhecem e aceitam uma latitude de variações: que cada um tenha a sua fala. A fala dos outros, escutam com interesse, mas não esticam o assunto, diria Goldman.27 Mas então, qual o cerne do debate

entre Mandu e Pedro?

26 Uso o termo ”originação” como alternativa a “transformação” porque preserva a idéia da trajetória ou de um movimento contínuo, de origem de inúmeros aspectos de distintas gentes, que vai se dando nesse percurso. Perspectiva que se perde numa idéia singular (origem, como se se tratasse apenas da origem tuyuka, ou da trajetória de transformação exclusivamente tuyuka). Quando for marcar esse aspecto, usarei o termo trajetória, transformação dos ancestrais de certa humanidade etc. Embora seja disso que se trate num primeiro plano, observa-se que se passa simultaneamente o aparecimento e transformação de uma série de seres (ou aspectos seus), não apenas da humanidade tuyuka, processo muitas vezes descrito como transformação da humanidade tuyuka, originando também a cada Casa, gradativamente, e de um modo bastante disperso, tudo aquilo que os Tuyuka iriam precisar para viver quando emergissem nessa terra. Acho interessante o termo para evitar uma idéia de relação biunívoca entre a origem de qualquer ser ou entidade e uma única Casa, exclusivamente. Embora isso também ocorra em alguns casos, não parece ser o aspecto geral do processo. Há uma dispersão maior da idéia de aparecimento num lugar, seguido do preenchimento de um ser, que se distribuiu por diferentes Casas. Ou do espalhamento dentre os diferentes representantes de uma certa espécie de ser, por exemplo, das araras, ou do ipadu, entre diferentes Casas de Transformação de distintas gentes, podendo corresponder ou não a Casas de Transformação da humanidade (Filhos da Cobra de Pedra ou outros).

27 Segundo Andrello, há diferentes ideologias de origem, mesmo entre sibs próximos. Mas há princípios gerais subjecentes. Segundo Goldman (2004: 318), em todo ritual, “variability in custom... and latitude in compliance is

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A originação ou transformação-em-trajetória dos ancestrais da atual humanidade inicia-se no Lago de Leite. Antes, diz-se, havia a Gente do Aparecimento, Bauari basoka.28

Segundo Mandu:

No Lago de Leite, a Gente da Transformação, nosso avô, Gente do Aparecimento disse aos netos:

- Eu ainda não terminei a criação. Não havia Gente.

- O que vai nos acontecer? O que não vai nos acontecer?

Assim, pensando, o Avô do Universo dá origem a seres que viriam a ser os ancestrais de cada linha de Gente (basoka ponari wadarere tibauaneira). O primeiro de todos (k¡ã s¡geg¡) foi o Filho da Cobra de Pedra (¡tapinomak¡), depois, o Filho da Cobra Peixe (Waipinomak¡),

o próximo, Filho da Cobra Terra (Yepapinomak¡), depois, o Filho da Cobra Água (Okopinomak¡), e depois, o Filho da Cobra Miçanga (Ñakepinomak¡). Assim originam seus filhos...29

O Lago de Leite pode ser considerado como a primeira Casa de Transformação deste percurso, sendo ora situado no Rio de Janeiro, ora na foz do Amazonas ou do rio Negro, em Manaus.

the norm”. Mas em geral, uns se recusam a se comparar com seus vizinhos: escutam com intereses polido, mas não prolongam o assunto. As diferenças das práticas rituais entre os sibs não seriam tão grandes, mas suficientes para diferenciarVariabilidade, segundo o autor, é inerente aos objetivos rituais, de recriar uma cena intensamente vívida, transmitir poderes e seguir tradições legendárias que são em si mesmas variáveis. O autor afirma que as variações seriam obrigatórias, inclusive por expressarem a separação entre os sibs. As diferenças e variabilidade seriam mais aceitas nas performances rituais do que na doutrina. . “Diferences seems more substantial on doctrine.” Entendo que se refira às narrativas de origem em geral. Certa latitude na