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Por que tudo antes era uais perigoso? Por que as uulheres tinhau uais uedo?

Dizia o tradutor:

3. Só pensa eu couer, couer Sobre o perigo e o uedo

3.1 Por que tudo antes era uais perigoso? Por que as uulheres tinhau uais uedo?

Rezende (2007) comenta que “os benzimentos se originam segundo a compreensão dos discursos mitológicos, ritos, rituais, cerimônias de cantos/danças, criação, utilização dos instrumentos sagrados.” A centralidade dos benzimentos na transformação da humanidade, afirmada neste capítulo, coincide com a centralidade dos benzimentos afirmada por Justino Rezende na vida contemporânea.

Os Tuyuka crêem que todas as coisas boas da vida dependem do benzimento bem feito, pois ele protege a vida de doenças. Das várias fases da vida em que se procura um benzedor (pois ele não se oferece), mesmo com a educação criando outras mentalidades nos pais, a maioria dos tuyuka procura o benzedor em todas elas: gravidez, parto, do nome, de cura das doenças, benzimento dos alimentos quando se fica em resguardo.

Segundo ele, essa compreensão poderia mudar com o passar dos tempos, das gerações. A compreensão que os velhos tinham, podendo não ser a mesma daquele de seus filhos e netos. Em geral, comenta (2007: capitulo 2) a respeito dos benzimentos de proteção (pouco fala dos procedimentos de cura, assim como eu nessa tese), enfatizando e descrevendo aqueles envolvidos nos “processos de educação, ensino-aprendizagem da criança até início da vida adulta” (a que me refiro, eventualmente na tese, como processos de criação, masãre, no bojo dos quais vão se diferenciando saberes e sujeitos, conforme introduzido no próximo capítulo).

A prática de benzimento é profunda para os Tuyuka, principalmente o benzimento da nominação...

A história continua provocando várias mudanças (...) e cada benzedor e os pais seguem o modo que acreditam ser o melhor (...) pode até ser que surjam novas atitudes dos benzedores (...) existindo continuidades e descontinuidades [aí se refere a novos costumes na educação, na saúde, nos casamentos, religião]. Esta realidade mexe com a lógica dos benzedores: como benzer o filho de uma indígena e um não-índio? Os benzedores desconstroem suas filosofias, suas lógicas e criam novas compreensões, interpretações, construções do sentido da

vida humana e benzimento. (...) Com essas mudanças,191

o benzedor aprende a compreender a vida humana e o mundo com outras categorias.

101 Justino Rezende comenta sobre confitos internos que as pessoas vivem diante dessas situações complexas... Que algumas pessoas no nascimento escolhem um nome de branco para seus filhos e não adotam um nome indígena (sobretudo mães indígenas solteiras); que muitas mulheres dão à luz nos hospitais, longe de benzedores; comem qualquer alimento após o parto, consumindo alimentos não benzidos nesses momentos; que outras mulheres, mesmo nesses lugares, não contraem doenças, nem a mãe nem a criança, o que leva muitos pais a pensar que se pode viver sem precisar dos benzimentos; comentam também que surgiram outras noções de higiene; “mas para os Tuyuka, o primeiro banho não tem sentido apenas higiênico, mas religioso, mitológico, histórico e de crença;” “quando o tratamento da criança não dá certo com um (médico), o outro (benzedor) não quer assumir (...) os dois trabalham com categorias diferentes da compreensão da saúde e da doença (...) a lógica do benzedor é desestruturada e reconstruída” (2007: 118-119).

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Com relação ao conjunto de regras seguidas na iniciação,192 dizia finado velho Emílio

Rezende (Kumumua morador de São Pedro ou Mõpoea):

É com esses ritos que nós tuyuka vivemos desde o princípio até hoje.

Quer dizer que a Gente de Transformação já tinha esses ritos de benzimento. Antigamente os homens e mulheres que estavam na iniciação não benziam tudo de uma vez por todas,

nem mandavam tomar banho logo, porque era muito perigoso.

Nesses dias não existe mais esse tipo de rituais,103

de deixar de jejum por uma semana ou mês, de fazer festa em homenagem às moças,

também porque as moças não agüentam jejuar tanto quanto antes, e não têm mais medo como as moças antigas.

Antigamente, tinha que ter muito cuidado, porque era muito perigoso.

Hoje em dia, as moças não pegam mais doenças como as mulheres do passado. Para elas antigamente, se não ficassem com medo,

poderiam ter certas doenças que poderiam até levar à morte. Por isso as mulheres do passado tinham medo da gente-peixe que poderia pegar e levar consigo o espírito da moça;

tinham medo do espírito da cobra que poderia entrar nela, e ela poderia ter filho cobra.

Disso que elas tinham medo antes,

enquanto estavam na iniciação e na menstruação.

Hoje em dia ninguém vê uma moça na iniciação ou menstruação ter medo como tinham as moças antigamente.

Avós antigos eram efetivamente orientados a ter muito medo, por tanto perigo. Mas, como têm discutido hoje, o desrespeito a regras e jejuns teria então conseqüências mais graves, daí o medo maior antes do que hoje. O que seria de se achar curioso e até paradoxal, já que, justamente, a alternativa mais branda de condução dos resguardos deixa os corpos-almas mais fracos, pensamentos menos aguçados, os poderes abrandados; mulheres sofrem mais no parto que antigamente, todos envelhecem mais cedo, homens e mulheres têm menos determinação para jejuns, dentre inúmeras faces dos abrandamentos

102 Segundo o finado velho Emílio Rezende, o mesmo acontecia também quando a mulher estava no parto, tinha que seguir certas regras, não comer peixe grande nem carne de animais (caça). Só depois que o filho começasse a falar as primeiras palavras é que a mãe seria benzida para comer carnes e peixe grande. “Isso acontecia com os nossos avós ancestrais. Mas hoje em dia, depois que o filho nasce, depois de um ou dois meses já estão comendo carne e peixes grandes, que eram muito proibidos antigamente. As crinaças também só comiam as piabinhas benzidas, só depois que ficava um pouco moço é que os velhos conhecedores benziam carnes e peixes grandes para ele comer.”

103 A moça em iniciação deve ser benzida, primeiro para tomar água, depois comer beiju e manivaras. A deixam de jejum por uma semana, quando ela tece as delicadas faixas de yoda [joelheiras tecidas com finíssimas fibras de curauá] e pratica o rito de inalar pimenta misturada com água para que a pele dela fique oleosa. Depois benze para ela tomar banho, mas tem um costume que pratica antes do banho: cortar o cabelo e fazer a pintura corporal dela, só depois mandavam tomar banho; na mesma noite faz-se a dança em homenagem à moça de iniciação. Realiza uma dança acompanhada de benzimento: no final benze para que ela seja trabalhadora, possa acordar cedo, para que ela possa melhorar mais no trabalho dia a dia. Faziam nas moças, mas não com todas; em alguma, não gostavam.

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que costumam citar na região. Hoje se adoece, mas não se morre. Torna-se em certos aspectos, ainda que com corpo-alma mais fracos, mais protegidos da morte, ao menos no que esta advém dos saberes.

Comparando mulheres tanto solteiras como casadas, antigamente elas tinham boa forma de vida,

seguiam os costumes conforme os mais velhos mandavam, por isso eram muito fortes, viviam sem doenças.

Hoje não praticam mais os rituais, não obedecem,

são um pouco fracas e vivem do jeito que elas acham melhor. Não jejuam mais.

Antigamente uma mulher com filhos parecia como se não tivesse filhos. Hoje uma mulher tendo um filho já se parece com uma que já teve vários filhos. Isso acontece porque elas não praticam resquardo e não jejuam mais como antigamente (Emilio Rezende).

Imaginar-se-ia esses corpos mais vulneráveis a doenças. Efetivamente o são, mas não ao letal wisire decorrente da quebra de jejuns (sobretudo alimentares) sobre corpos- alma potentes (mais pesados), associado ao inequívoco ataque de gente-onça, ou a mordida de cobra. Disso, nem tanto se morre, nem tanto se teme, nesta possibilidade em aberto:

-“Como vocês, brancos, que nunca sofrem wisire,” dizia Mandu.

Antes, as mulheres menstruadas evitavam todo contato com os homens, pelo próprio bem do mundo em geral (dos saberes de que são compostos seus corpos-alma, os corpos-alma dos conhecedores).

Principalmente as mulheres.

Nos dias em que estavam menstruadas, não trabalhavam, não faziam beiju nem preparavam mingau, nem iam para a roça: porque era proibido.

Hoje em dia, não. As mulheres não controlam mais. Trabalham, fazem o que querem,

mesmo sabendo que elas estão em menstruação. Para os antigos, isso era sagrado para as mulheres. As mais velhas é que controlavam as mais novas. Faziam isso para o bem dos homens,

para que eles pudessem ter mais vantagem nos benzimentos e rituais. Caso contrário, quem sairia prejudicado

era o jovem moço e os homens mais velhos.

Para evitar isso é que as mulheres mais velhas não queriam que as mulheres em menstruação trabalhassem, nem mesmo fizessem comida para o filho ou para o marido...

Tinha outras coisas.

Por exemplo, enquanto comia,

o homem não podia passar inclinado por baixo da rede... (Emilio Rezende)

Os homens cresciam com esses saberes, ainda mais direcionados a partir da iniciação, para se tornarem grandes conhecedores, quando passavam a ser

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especialmente afetados por esses poderes femininos; sobretudo quando são abrandadas suas evitações, senso de perigo, sentimento de medo, sua responsabilidade para com os conhecedores.

Na iniciação dos homens, os mais vehos e os pais das crianças realizavam cerimônia com instrumentos sagrados. Nessa festa os pajés benziam os iniciantes para que eles fossem iguais a eles: sabedores e contadores de rituais, como benzedor, baya, entoador de cantos e outros. Com isso os jovens já cresciam com sabedoria. Depois dos ritos ofereciam comidas sem sal, sem pimenta, começavam tomando apenas farinha branca... Hoje em dia isso não é mais praticado como antigamente. Como a Gente da Transformação dos ¢tapinopona, que já tinha os benzimentos, conforme Koamak¡ já tinha planejado, que os benzimentos

poderiam ser muito úteis para nós. (Emílio Rezende)

3.2 Potências e perigos das transforuações entre (saberes) ancestrais,