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geração e transformação de saberes

2. Rebatimentos etnológicos do dado e do construído

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Segundo Viveiros de Castro, é apenas como um dos pólos de um regime de socialidade dual - do dado25 - que se define, no rio Negro, um grupo de descendência (como afinidade potencial, miticamente puro, consangüinidade pura)26 separado de outros, mas implicitamente a eles ligado por aliança matrimonial. No outro pólo - do construído -, estaria a afinidade real, dissolvida na cognação.

Nesse regime de socialidade dual (exterioridades onde se dão suas apropriações) estariam, de um lado, a ancestralidade; do outro, os brancos e os mortos. A partir desse ambiente virtual dual se daria a progressiva atualização da humanidade. Note-se: ambiente onde a predação não teria lugar proeminente. Segundo tal discussão de Viveiros de Castro, aproximo-me resumidamente do trabalho de Lasmar, focado no modo como a identidade indígena transparece na vida cotidiana; e de outros autores que enfatizam o modelo ritual proposto por Hugh-Jones, contrapondo ritual de jurupari e os dabucuris. Eeu objetivo aqui é, exclusivamente, marcar atenção sobre as correlações em torno do dado e do construído na narrativa etnológica regional.

2.1 Sobre conhecimentos de maior valor (cultura) no rio Negro

Lasmar (2005: 190) argumenta que o que reporta ao pólo do dado é a ideologia da descendência, nos termos de “ser membro de um grupo de descendência numa única maloca, ou como pertencimento a um grupo agnático que remonta às origens da humanidade”, ou, ainda, nos termos das associações que hoje se faz a um “modo de vida de antigamente.” Nesse sentido, a identidade indígena tal como hoje se processa e transparece na vida cotidiana dos índios desdobrar-se-ia em dois planos: por um lado concebida como pré-determinada (o dado), por outro, como algo passível de transformação, com uma acepção de processo que faz referência ao modo de vida de uma pessoa e à ideologia da consubstanciação (no sentido em que, convivendo com brancos, você vai ficando com corpos de brancos, através da comida, relações sexuais, aproximação ao seu modo de vida). Ou transparece enquanto tensão entre dois processos: por um lado, de reprodução da identidade indígena (pré-determinada, que deve se reproduzir); por outro, de apropriação de capacidades e bens dos brancos, identidade processual, atualizações históricas e sociológicas rumo à cognação (2005: 151): tanto um

25 No que condicionam a agência humana e polarizam o campo das relações sociais.

26 No Rio Negro, o grupo de descendência miticamente puro é algo do plano da virtualidade, fundo de socialidade virtual (ancestralidade) contra o qual se dá a progressiva atualização da humanidade. Ou seja, um grupo de descendência puro (mitológico) não é algo da ordem sociológica, mas do plano da virtualidade.

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processo quanto outro se fazendo imediatamente reconhecíveis no corpo. Levando ainda mais longe, os associando a contraposições entre aspectos tradicionais e atuais do conhecimento em transformação. Daí, conforme ela explora com maiores detalhes, a ambigüidade da posição das mulheres indígenas (e particularmente aquelas casadas com homens brancos), enquanto pensam sua inserção na cidade, condicionada por sua visão desta última como lugar de brancos.

Tal discussão apóia-se nas propostas de Viveiros de Castro em torno de um macro-processo,

que ecoa recursivamente nas micro-oscilações entre alteridade e identidade que balizam as diversas etapas do ciclo de vida. Sempre indicando como ao longo dos processos de particularização da diferença (e de construção de corpos), essa radiação de fundo é percebida: uma alteridade irredutível que impede a diferenciação completa das exterioridades corporais (2002b).

O autor discorre sobre tal construção do parentesco e a contra-efetuação do virtual como processos indissociáveis, e como as construções indígenas e ocidentais do dado e do construído diferem radicalmente, impondo transformações no dualismo natureza - cultura. Autores como Andrello (2004, 2006c), Lasmar (2005) e Paulo Eaia (2009) se debruçam, nesse mesmo sentido do dado e construído, nos rituais de iniciação e de oferecimento sobre os quais Hugh-Jones desenvolveu seu trabalho inaugural (1979). Dizem também que esse modelo de socialidade, enquanto modelo ritual (que marca de um lado a agnação, do outro a cognação) repercutiria em atualizações mais sociológicas e históricas, marcando a existência, de um lado, das malocas agnáticas, de outro, dos povoados cognáticos. Alguns autores analisam a transformação das malocas agnáticas em povoados cognáticos na região, observando como, no curso das transformações históricas, malocas agnáticas seriam substituídas por relações cognáticas (Arhem: 1981, 2000). A agnação e maloca entendidos como fechamento, e a cognação em sua abertura (maloca transformada em povoado ou vida na cidade). É importante ressaltar que apresentaremos adiante uma proposição de modelo local de transformações baseado em Cabalzar (2008) que, por sua vez, se confronta a esse modelo geral.

Esse encadeamento repercute nas discussões e percepções antropológicas das analogias indígenas, no âmbito do conhecimento e da cultura, na região. Lasmar descreve como os índios privilegiam a metáfora espacial que contrapõe a existência na comunidade e na cidade: a vida em comunidade baseada num certo padrão de socialidade (princípios do parentesco, regras de convivência entre co-residentes para construção de identidade no âmbito do grupo local) que se mantém como referência moral e simbólica, à vida na

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cidade. Estes princípios estariam em oposição àqueles da cidade de São Gabriel (Lasmar, 2005). Na mudança das comunidades para cidades, os índios reiteram a transformação desta e uma série de outras distinções, entre índios e brancos. Segundo a autora, esse mesmo modelo rebateria no pensamento nativo acerca do conhecimento, íntegros enquanto associados ao tempo da maloca ou à vida na maloca ou comunidades tradicionais, enquanto a cultura já mais dosada (ou o tanto que resta) associar-se-ia à condição do povoado ou da cidade indígena, ao movimento, à abertura e transformação rumo ao mundo dos brancos.

Lasmar fala em termos de analogias entre aspectos tradicionais ou íntegros e

atuais do conhecimento (muito citadas pelos índios e que inspiram a análise de Lasmar).

Andrello e S. Hugh-Jones (enquanto acepção indígena) desenvolvem mais a idéia de cultura como patrimônio dos antigos . Tais autores pretendem dar conta do que os índios teriam em mente quando usam o termo: a transmissão de vitalidades (materiais e imateriais). Circulação de vitalidades que se aproxima de seu modo de pensar a agnação e do modo como pensamos nessa tese a circulação de saberes maiores (niromakañe), 27 em torno da qual debatemos mudanças ou transformações cosmopolíticas.

Andrello também pensa a descendência, não em termos de linhagens, mas