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Debates em torno de gênero e geração (e senioridade) no alto rio Negro

geração e transformação de saberes

1. Regimes de socialidade dual

1.1 Debates em torno de gênero e geração (e senioridade) no alto rio Negro

S. Hugh-Jones escreveu dois artigos (1995, 2001) sobre a noção de Casa e o Experimento (The Gender of some Amazonian Gifts: An Experiment with an

Experiment), onde revê parcialmente suas análises anteriores e re-analisa a iniciação

barasana. No primeiro trabalho, problematizando o pensamento altorionegrino em torno dos objetos, das passagens entre ambiente ritual-mítico-xamânico a suas objetificações como riquezas, bens rituais de grupos, Hugh-Jones sublinhava que, sendo as Casas de Transformação andróginas, em certos contextos estas eram comparadas ao útero materno; em outros, a uma imagem masculina. Segundo o autor, a imagem da Casa como

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relação de um grupo de irmãos hierarquicamente posicionados, com seu ancestral fundador, concorreria com outras conceitualizações (rituais) nas quais a Casa seria feminina.

The counterpart of the nested series of family - household - territorial group - humanity is the reduplication of a basic structure consisting of a father and his ranked sons which applies at any level from house to clan-segment, clan, clan- set, to whole exogamous group. In myth, these are all one and the same and are rendered equivalent to one another by the transmission of names (S. Hugh- Jones, 1995).

Conforme sintetiza nesse segundo trabalho,

se a construção da diferença (diferenciações) produz diferentes resultados em diferentes lugares (como no fluxo do parentesco), linhagens não podem ser vistas como manifestações de conexões analíticas ou dadas aprioristicamente. A maioria das análises do parentesco no noroeste amazônico seguiu a tendência de tratar a retórica mitopolítica do ritual masculino de iniciação, a exogamia lingüística, as relações interclânicas (ou entre sibs) como estrutura social, mais do que enquanto um modo alternativo e transformado, da socialidade doméstica (2001).

Revendo seu clássico estudo The Palm and the Pleiades, comenta:

I had assumed that initiation was the maximal expression of a common ritual pattern of which ceremonial exchange was merely a simplified and attenuated form, thus failing to see the complementary, transformational relationship between the two (2001: 259); I had conflated the indigenous rhetoric of the clan, as collective male unit that is manifest in initiation, with the anthropologists “society” or “social structure” (idem: 249).

Como ele próprio avalia no Experimento, em About the House a Casa ainda seria vista como uma noção relativamente estática e totalizadora de diferentes coletividades criadas durante a iniciação e as trocas rituais,1 imagem que é reduplicada na identificação da Casa com o mundo, por um lado, e da Casa com o corpo humano, por outro. Produção andrógina nos dois casos, seu gênero é relativo ao contexto ritual dado: masculino quando se trata da iniciação, feminino no caso das casas de oferecimento (de trocas).2 Ainda que

1 Hugh-Jones, ao focar no idioma nativo de Casa, procurou iluminar aspectos da organização social, mas também dar fôlego comparativo ao alto rio Negro, possibilitando, assim, comparar Guiana, Tukano e grupos Jê. Segundo o autor, é bem claro na região a relação entre hierarquia e competição por emblemas, títulos e prerrogativas. Eas, nesse contexto das Casas, evitar-se-ia falar em descendência que separa e fragmenta, uma vez que a noção serviria como idioma de grupo, mas não só...

2 Segundo Stephen Hugh-Jones a respeito da noção de Casa, Casas de flautas sagradas referem-se ao estado ancestral e seus poderes, e são a antítese das Casas de oferecimento; a noção nativa de Casa corresponde à pessoa moral composta de propriedades materiais e imateriais transmitidas por linhas que legitimam, pois tem continuidade expressa pela descendência ou pelo casamento; a experiência vivida corresponde à ambigüidade, prevista pela topografia ritual reversível (Casa ao mesmo tempo dentro e fora,

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os clãs hierarquizados tukano sejam pensados como constituídos com base nesses interesses (exogamia, virilocalidade, posse de prerrogativas sagradas-rituais), através da noção das Casas andróginas ou Rituais seria possível visualizar melhor como elas se expressam enquanto construções, grupos e categorias que codificam idéias sobre reprodução e conhecimento. Além disso, sendo a noção de Casa inerentemente ambígua,3 projetaria também a ambigüidade inerente à propriedade, à residência, à exogamia, integrando, assim, noções contraditórias que os antropólogos normalmente distinguem entre diferentes tipos sociais.4

Já no Experimento, Stephen Hugh-Jones re-analisa os rituais. No caso daqueles de iniciação masculina, desloca o foco para aspectos mais dinâmicos de fluxo e crescimento, tendo em mente a passagem dos rios através do mundo e de substâncias através do corpo (2001: 259), e focaliza as transações envolvendo sustâncias vegetais durante o ritual de iniciação (frutas, folhas de ipadu, cigarros, tabaco, rapé, caapi e beijus de tapioca). Esses rituais fariam sentido em relação às trocas intercomunitárias de comida e itens manufaturados entre grupos afins.

The gender of these substances and that of the people from whom they are detached as partible objetifications both depend on context and point of view (idem: 263).

A partir destas revisões, inspirado em Strathern ou dialogando com ela, S. Hugh- Jones enfatiza o caráter andrógino dos movimentos míticos (ou a androginia que figura nos mitos, explorando noções nativas de Casa e dos objetos cerimoniais), em que flautas e Casas significam tanto capacidades de pensamento como capacidades reprodutivas compartilhadas por homens e mulheres. Nesse sentido, em sua objetificação como riqueza (ritual) (“in their detached, external, objetified form as men´s ritual possessions”), as flautas

container e conteúdo). No ritual: duas leituras antropomórficas da maloca correspondem a duas conceitualizações diferentes das relações sociais, expressas ritualmente em dois tipos diferentes de Casa. Nesse foco, o regime de socialidade dual altorionegrina evidencia-se na contraposição entre os ciclos rituais dos dabucuris (Casas de oferecimento) e dos juruparis (Casas de flautas sagradas).

3 E a afinidade (em toda sua ambigüidade) estaria em primeiro plano na análise do conjunto de encontros cerimoniais ou Casas: ambigüidade de gênero; entre homens como doadores generosos (nas Casas de oferecimento de alimentos entre afins e amigos) e homens predadores que raptam mulheres do estrangeiro; dos grupos constituídos e grupos sempre ameaçados por suas ligações com suas esposas; entre auto- suficiência e dependência dos outros; todos problemas que estão na base da afinidade na Amazônia.

4 Explora as ambigüidades inerentes às relações de aliança (segundo Viveiros de Castro, as ambigüidades são inerentes à vida social, não à aliança); é andrógina, androginia que se replica numa série de pares ou ambigüidades diamétricas como linha frente/trás; pares de flautas e trompetes, pares de adornos rituais descritos como macho e fêmea, mais velhos e mais novos; entre Casas rituais (de oferecimento de alimentos e das Casas de Flautas Sagradas). A esse aspecto diamétrico acrescenta a dimensão concêntrica, na relação entre casa, seus conteúdos e seu lugar como séries que se reduplicam, da pessoa até a escala cósmica, servindo ainda como idioma para os vários agrupamentos sociais (é inerentemente ambígua, pois integra Casa e grupo).

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sagradas configuram uma capacidade especificamente masculina de elicitar e ativar as capacidades reprodutivas mais internas das mulheres. Ou, ainda, descreve o caráter andrógino dos xamãs, capazes de efetuar transações não mediadas entre coletividades de mesmo sexo, totalmente masculinas, ou transações de sexo cruzado: espelhando, desse modo, o caráter andrógino de objetos, como, por exemplo, uma cuia de cera de abelha dotada de um cérebro masculino e genitais femininas (Hugh-Jones, 1979: 125-126).

Em outros termos, Hugh-Jones analisa de que maneira objetos andróginos subjazem aos mitos e ao xamanismo (benzimentos originais e atuais) no rio Negro, indicando, mais uma vez, que as relações de gênero permitem-nos pensar outros modos de relação.5 Como disse Strathern em The Gender of the Gift (1988), imagens de englobamento constroem fontes de crescimento e criatividade como totalmente masculinas - os homens englobando partes femininas, numa forma masculina - ou totalmente femininas - as mulheres englobando partes masculinas numa forma feminina. Assim, tanto containers quanto conteúdos podem ser vistos simultaneamente como distintos um do outro e mesclados um ao outro, numa conjunção de possibilidades dimórficas e homomórficas, ambiguidades que perpassam muito do simbolismo de gênero.

Neither flutes nor manioc can be unambiguously assigned to men or women. Each sex retains in one form, proper to themselves, what they give up in another, the retained portion providing the source for further transactions between them. Both sexes have manioc, but manioc work is properly a woman´s affair. Both sexes have fish and flutes, but fish work and flute work are the affair of men (2001: 255).

5 Hugh-Jones descreve o caráter andrógino subjacente a esse movimento dos mitos e subjacente também aos benzimentos originais e atuais, segundo um modo de inseminação e reprodução artefatual. Em um duplo movimento entre corpo e capacidades, pensamentos, intenções e responsabilidades que passam pelos objetos, alguns artefatos (mais abstratos) como o banco, são identificados com os componentes mais espirituais desse corpo: suas capacidades de pensamento e conhecimento. Já os recipientes e tubos estariam relacionados a capacidades e processos de reprodução (como a cobra-canoa, a flauta de Jurupari).

Enquanto no mito não há separação entre pessoas e coisas, também não há entre gêneros. Há sim demiurgos andróginos com identidades e parentesco ambíguos, que inseminam e são inseminados entre si. Com cigarro e porta-cigarros, inseminam numa cuia que, por implicação, também insemina o fumante. Os órgãos masculinos e femininos que tratamos como diacríticos são, aqui, transformação uns dos outros. Os objetos expressam capacidades e disposições mais abstratas, compartilhadas por homens e mulheres, de modos distintos (“in gendered modes”).

Containers e tubos se relacionam a capacidades e processos de reprodução, e suportes como bancos às capacidades de pensamento (comportamentos, competências, responsabilidades genéricas). Assim objetos como banco e cuia seriam não apenas formas objetivas do conhecimento xamânico (no mito como cuia de conhecimento que atravessa camadas cósmicas viajando, como viajando dentro da cobra-canoa...) como objetificações da vida e capacidade xamânicas. Capacidades ou componentes mais espirituais (vida, pensamentos para o cultivo das plantas ou da coca ou etc), genderizados na vida adulta, como disse Stephen Hugh-Jones, não implicam objetos como parte da anatomia, mas como noções abstratas. Banco como base, fundação, comportamento. O banco dado na nominação fixa seu yeripona (nome-alma) a seu corpo, e na iniciação seria trocado por outros bancos (os pensamentos genderizados, as responsabilidades e preocupações da vida adulta).

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Essa mesma leitura se dá para todos os adornos como partes corporais (androginia mítica), depois objetificados como propriedades, num campo político (ver item 1.3 adiante).

Quando Strathern, no artigo Same-sex and cross-sex relations: some internal

comparisons (2001) dialoga com S. Hugh-Jones em torno da Eelazonia, a autora pondera

criticamente sobre a percepção do ritual de iniciação masculina descrito por este último no seu trabalho de 1979, no qual ele analisava os dois modos alternativos de socialidade no alto rio Negro como descontínuos, a partir do ritual.

Strathern elabora algumas críticas fundamentais em torno das idéias de substâncias corporais e as relacionalidades envolvendo gênero, gerações e sexo (ou orientações das relações entre sexos cruzados e mesmo sexo). Ela critica o fato de aquela análise focar exclusivamente na mais alta oposição ritual entre capacidades masculinas e femininas - daí o achatamento das gerações no contato do iniciante com os ancestrais no momento do ritual de iniciação de cada nova geração. Questionava também uma percepção exclusivamente focada nas transformações míticas para fundamentar a distinção entre modos de criatividade masculino (alternância vivos-mortos, capacidade de conhecimento, presença de coisas primordiais nos filhos) e feminino (capacidades reprodutivas, continuidade da vida pela substância) marcando a passagem de um estado primordial andrógino (ou misturado) para um estado de diferenciação (estado desagregado, separado) (idem: 250).Segundo a autora, integrando ao modelo de gênero os processos de transmissão geracional, seria possível acessar percepções alternativas do tempo geracional, o que a análise de S. Hugh-Jones não alcançaria. O próprio Hugh- Jones (2001: 249), comentando a crítica de Strathern e o fato dele focar os coletivos rituais envolvendo grupos de um único sexo (como as iniciações masculinas) enquanto uma ordem social maior que representaria a cultura, a sociedade ou a estrutura social, (retratada nas prerrogativas masculinas das quais mulheres e crianças estariam excluídas), teria dito:

As against top-down abstractions of this type, Strathern begins from the other end, with a more concrete sociality, that is, social relations, which are constituted, manifested, and modified through ongoing play of exchange. In this view, public rituals and ceremonials and the clans and other groupings that they generate are not manifestations of society or social structure, but rather one mode of sociality that is temporarilly constituted in relation to its complementary mode of domestic kinship and upon which it draws its retorical effect. By the same token, ritual is not the playing out of a script that is given in advance but rather a performance that allows people to display their capacities, the outcome of hard transactional work that provides a momentary summation of their particular claims. In this it is ultimatelly no different from the symbolic

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transactional work that is effected in any of the more mundane exchanges that make up the gamut of social existence (Hugh-Jones, 2001: 249).

Segundo S. Hugh-Jones, gênero aparece em Strathern como uma categorização de pessoas, coisas e eventos; imagens de gênero dizem respeito a percepções de relações particulares (e não a atributos fixos de pessoas). A troca não diz respeito apenas a coisas que a pessoa destaca de si mesma em forma de dom - trocas mediadas - , mas também a trocas não mediadas (na produção material e na reprodução de pessoas) (idem: 250).

Para Strathern, um melanésio - pode viver um modo ou outro de criatividade, masculina ou feminina, conforme o tempo histórico e geracional. Assim sendo, as gerações podem ou não ser percebidas como contínuas (2001: 223) e, se vistas como dependentes, o tipo de dependência entre uma e outra pode estar diferentemente distribuído entre as relações próximas (relações de conjugalidade e relações pais-filhos), havendo sempre a possibilidade de reversibilidade entre modalidades de separação e combinação, gerações e relações de gênero se alternando. A fórmula de relações entre mesmo sexo e entre sexos cruzados ( em que homens e mulheres são fontes de metáforas sobre feminilidade e masculinidade em combinações ou separações) permite integrar no modelo de gênero os processos de redução ou aumento, de perda ou recuperação, que parecem cruciais à transmissão geracional em muitas sociedades. Gerações alternadas movem-se entre estados desagregados e estados combinados, ou entre orientações diferentemente moduladas (em interações de mesmo sexo ou interações de sexo cruzado). Além disso, as possibilidades de recuperação e transformação (perda) de posições passadas para o futuro também remetem a momentos de separação e combinação diferentemente seqüenciados no tempo. Cada tempo apresenta um modo particular de juntar ou separar o trabalho dos sexos. O tempo geracional pode ter percepções variadas, das mais achatadas no momento ritual até uma fixação infinita numa certa instituição. Por isso tudo, é um pouco indiferente o foco em um momento temporal ou no outro.

Noções de substância são fundamentais às percepções sobre relações geracionais. Elas problematizam a dinâmica corporal com especificidades nos sistemas que requerem analogia entre as substâncias do corpo e as substâncias dos objetos.6 Pessoas criam outras escondendo partes de si ou emergindo mais completas. Assim, os homens participam em certos momentos de relações na base do mesmo sexo em termos

6 Isso é discutido por Strathern e S. Hugh-Jones nestes artigos e mais recentemente aprofundado por Andrello e S. Hugh-Jones para o caso altorionegrino.

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de fluxo de valores (coisas que só passam em linha masculina, só os homens podendo dizer que a geração seguinte existe por causa da vitalidade que existe nele); participam igualmente de práticas procriativas entre si (a masculinidade aparece em contextos de práticas procriativas). Nas relações entre mesmo sexo, como continuidade geracional, existe sempre a presença (ainda que como coisa ausente) das relações entre sexos cruzados (descontinuidades de gênero e geracionais). Portanto, nas relações entre gerações os pais não controlam tudo, como se suporia numa relação irreversível e insubstituível entre pai e filho homem: “it is handed over to others” (Strathern, 2001: 230).7

Embora Hugh-Jones não desenvolva explicitamente uma reflexão sobre relações geracionais, tal aproximação é interessante e está ali prevista quando ele observa a fabricação do corpo nos rituais de transição (2009, 2009a) - sobretudo a iniciação masculina - a partir do aspecto fractal e andrógino da pessoa (objetos)8 e das substâncias que circulam pelo corpo, sugerindo algumas possibilidades de comparação. Os eixos de gênero (enquanto capacidades de pensamento e reprodutivas)9 e geração (como processos de redução e aumento) convergem no rio Negro enquanto modos de produzir a relação maiores/menores que, por sua vez, se reduplica em séries enredadas ou nested

series (1995).

1.2 Entre modelos gerais (amazônicos) e modelos locais altorionegrinos: