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Expansão de predomínios agnáticos: modelo local de relação entre agnação e cognação

saberes e bens, mas aos modos de transformação (circulação) dos saberes, analisados a partir das conexões empíricas (explicitadas) entre múltiplas práticas,

3. Leitura poética: da expansão de predomínios agnáticos em Cabalzar

3.2. Expansão de predomínios agnáticos: modelo local de relação entre agnação e cognação

Ao longo de toda a sua argumentação o autor procura mostrar a dinâmica inerente às conexões entre relações locais e regionais. Eostra, por exemplo, que a ida dos Tuyuka para o rio Tiquié é parte de um processo de expansão territorial dos Tukano em geral. A origem dos Tuyuka nesta camada do mundo (como humanidade) se deu na região do alto rio Uaupés em torno de uma localidade chamada Cachoeira de Jurupari. Dali, pressionados pelos Cubeo e Kuripako, deslocaram-se mais para o sul, para o alto rio Papuri, que é, por sua vez, centro de povoamento (ou lugar de origem) de outro grupo exogâmico, os Tukano. Parte dos Tukano, junto com os Desana, que depois também migraram para o Tiquié em diferentes levas e destinos territoriais.

Em toda a região do Uaupés é raro um grupo lingüístico ou grupo de descendência exogâmico estar confinado a uma única área contínua, Isto resulta da interface entre diferentes processos históricos vividos por cada grupo exogâmico. Assim, por exemplo, os Tuyuka estão separados em dois subgrupos principais associados a distintas áreas de ocupação: o do Tiquié e o do Inambu, o que nos permite falar em “área tuyuka do Tiquié” e “área tuyuka do Inambu” frente a outros subgrupos tuyuka mais dispersos pela região. Observa-se na região do Uaupés como um todo que não existe continuidade territorial entre os grupos de descendência. Diferentes segmentos de um grupo de descendência vivem em vizinhanças distintas.

Dada essa dinâmica, os arranjos supra-locais são muito complexos, dinâmicos e diversificados. Cabalzar analisa a história de cada grupo exogâmico e das diferentes inserções possíveis de seus subgrupos em relação aos demais, enquanto contrações - expansões de estruturas agnáticas locais e regionais (fratrias, grupos de descendência, sibs e segmentos de sibs em diferentes territórios).

A hipótese do autor é de que a constituição mais agnática ou cognática de um ambiente socioespacial (dentro do nexo regional) seja temporária, mas a agnação/ hierarquia seria um fio condutor que tenderia a se manter. Sua análise fundamenta-se no movimento próprio dos sibs, de fragmentação, deslocamentos e re-acomodação de suas relações territoriais, políticas, rituais. Tal movimento dos sibs se dá em relação à

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afinidade, gerando ambientes mais focados na descendência, outros mais focados na afinidade. Eas, mesmo nesses últimos, ele ressalta a força das classificaçõese das reclassificações, dentre elas aquelas de inclinação agnática, como a co-afinidade. Esses processos parecem relevantes para contrapor percepções. Ele mostra como as relações entre grupos lingüísticos que trocam mulheres, devem ser matizadas por suas unidades constituintes, sibs ou segmentos de sibs.32 O interessante no caso da co-afinidade são as percepções em torno das possibilidades de recomposição de estruturas agnáticas, as quais Cabalzar foca, sobretudo, da perspectiva de reagrupamentos conforme o parâmetro lingüístico. Em outras palavras, se diferentes segmentos de sibs se vêem muito reduzidos e muito dispersos ao ponto de inviabilizar a reunião em termos dos sibs, reúnem-se então da perspectiva de uma esfera mais abrangente, qual seja, o grupo lingüístico. Nesses casos, trajetórias distintas e independentes dos diferentes sibs em expansão confluem em relações de co-afinidade (quando membros de diferentes segmentos de diferentes sibs passam, então, a co-residir). O autor foca a co-afinidade como exemplo do dinamismo das relações entre parentes distantes do mesmo grupo lingüístico, porém de diferentes sibs.

Segundo sintetizado por Hugh-Jones (2008: 12):

Cabalzar lança nova e importante luz sobre a estrutura e dinâmica do sistema regional uaupesiano como um todo. (...) Eais do que tomar partido sobre a questão de se a organização social Tukano é melhor compreendida em termos de descendência, aliança ou uma mistura entre ideologia (descendência) e prática (aliança), Cabalzar recoloca os próprios termos do debate. Ele mostra que a inter-relação entre hierarquia, descendência e afinidade no tempo e no espaço produz formas variantes de organização social, no âmbito de um e mesmo nexo regional. Diferentemente do modelo geral de Viveiros de Castro, de consanguinização dos afins próximos e afinização dos consangüíneos distantes, nesse modelo Tukano de organização social concêntrica, grupos de alta hierarquia com forte sentido de genealogia e preferência por casamentos distantes entre povoados baseados na agnação dominam o centro do nexo, com grupos de mais baixa hierarquia na periferia vivendo com seus afins em povoados relativamente endógamos com profile marcadamente cognático.

32 Dentro de um mesmo grupo exogâmico, sibs de mais alta hierarquia chamam os de mais baixa de avós e os de posição intermediária de tios (FB). A classificação também se faz segundo o nível hierárquico relativo e da tendência a casamentos entre sibs de nível hierárquico equivalente (2008: 307). Em casos de posições hierárquicas bem marcadas, um novo casamento não cataliza reclassificações, mostrando uma incorporação parcial da nova relação. Há uma tendência conservadora, pouco flexível a reclassificações a partir de novas alianças. Dentro de um grupo exogâmico, a tendência é mesmo calcular a relação em função da posição relativa dos sibs internamente a um grupo lingüístico exogâmico, sendo aí as relações de afinidade contingentes, e não participando da definição do cálculo ou dos termos adotados. A exceção se constitui pelas relações de co-afinidade, que costumam aí ganhar espaço, quando há distância genealógica entre os homens, que tenham se casado com mulheres muito próximas entre si (geralmente irmãs ou primas paralelas provenientes de um mesmo grupo local (idem: 314).

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Hugh-Jones pondera, mais uma vez, contra a proposição de modelos gerais - tal como Cabalzar vem a nos mostrar, modelos gerais não se aplicam de modo direto no rio Negro, havendo que se observar as transformações possíveis; modelos gerais que pregam a passagem da agnação para cognação também não devem ser aplicados automaticamente no rio Negro como possibilidade única, já que as realizações serão inúmeras, dentro de uma tendência relevante de re-atualização da agnação, em novas formas.

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Ainda com base nas análises de Cabalzar, retomamos agora uma descrição desse movimento de aberturas regionais (relações dinâmicas) a partir do alto rio Tiquié e dos modos como se conectam contextos locais e regionais diversificados (dinâmicas socio- espaciais). Veremos assim como se caracterizam as regiões de ocupação recente no Uaupés, dentro do já citado processo geral de expansão territorial dos povos da região.

Conforme já dito, Cabalzar concentra boa parte de seus esforços na descrição do que chama de dispersão dos Opaya, um sib de alta hierarquia que liderou a migração desde o rio Papuri para o rio Tiquié. Os Opaya migraram para o alto Tiquié e posteriormente se dispersaram naquela região (alto Tiquié). O que ele alcança demonstrar, ou nos permite ver com sua descrição e análise, é a importância da descendência como fio condutor dessa dinâmica socioespacial, assim como da dinâmica das relações locais/regionais.

Nesse território do alto rio Tiquié (ou nesse nexo regional) predominam os Opaya. Este sib bastante numeroso, com quase 200 pessoas, encontra-se disperso entre uma série de povoados tuyuka, todos vizinhos nesse mesmo trecho do rio. São Pedro ou

Mõpoea, Cachoeira Comprida ou Yoariwa, Fronteira ou Kairataro, Pupunha ou ¢nekumuña, e Bellavista ou Buepesariburo.33 A história dos Opaya é apresentada como

um exemplo da dispersão dos sibs mais populosos em vários segmentos de sib localizados, primeiramente em algumas malocas, depois em povoados ou comunidades

33 Ver Cabalzar (2008: 185 (mapa 4) e 194 (mapa 5)) para a localização destas comunidades. Estes dois mapas dão conta dessa região de fronteira Brasil-Colômbia no alto rio Tiquié e afluentes. Enquanto mapas históricos (deslocamentos históricos do primeiro e do segundo segmento Opaya), indicam também várias outras comunidades além destas atualmente ocupadas por eles. O mapa corresponde à situação do ano 2000. Depois disso São Pedro mudou cerca de um quilômetro acima, na outra margem do rio Tiquié. E a comunidade hoje chamada Cachoeira Comprida, corresponde àquela que, no mapa, consta como Puniya. Também mudou-se para a margem direita do rio, cerca de um quilômetro acima. Notar (nos mapas) que, abaixo de São Pedro, vem um trecho de ocupação tukano, e apenas ali à esquerda, no último afluente à margem direita (no mapa), está uma outra comunidade tuyuka mais isolada, a comunidade de Assunção, situada no igarapé Onça, ocupada pelos Tuyuka do sib Dasia, menores hierarquicamente em relação aos Opaya (avós terminológicos, segundo notas anteriores).

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compostos por segmentos deste sib. Nesse processo, a história dos Opaya tem paralelos importantes com as histórias de todos os outros sibs tuyuka a eles associados, assim como de sibs tuyuka que permaneceram na região do rio Papuri (não migrando para o rio Tiquié). Entrelaçamentos importantes com as histórias dos grupos exogâmicos vizinhos que se transformaram no curso de seus deslocamentos do Papuri para o rio Tiquié. Sibs associados seriam os outros sibs tuyuka que migraram junto com os Opaya e seguiram convivendo com eles até hoje nessa região (Okokapeapona, Kumumuapona,

Miñodokapuara, Dasia, na ordem de senioridade, sendo os Opaya os primeiros e Dasia

os menores).34

Supondo que os arranjos socioespaciais supra-locais no Uaupés, em geral, possam se atualizar de maneiras muito diversificadas, focados em certos grupos de descendência exogâmicos específicos, vamos ver como isso acontece no alto rio Tiquié, segundo Cabalzar.

O autor explica que, com a migração do Papuri para o Tiquié, deu-se início a um período de reconfiguração de alianças. O deslocamento para o Tiquié implica numa reorientação de parte das alianças rumo aos novos vizinhos bará, também recém migrados para a cabeceira do Tiquié, e depois rumo aos Tukano que, em verdade, só migraram para este rio um pouco depois dos Tuyuka. No contexto anterior, as alianças dos Tuyuka (enquanto viviam próximos ao igarapé Inambu, ainda no rio Papuri, onde permanecem até hoje os irmãos maiores desse pessoal do Tiquié) aconteciam sobretudo com os Tatuyo dos igarapés Japu, Colorado e alto Piraparaná.35

Tendo migrado para o Tiquié, os Tukano e os Desana ocuparam o seu médio curso, enquanto os Tuyuka e os Bará ocupavam o alto, os Bará já fazendo ligações com o pessoal do Piraparaná.

Há três gerações acontece também a entrada dos Yebamasa ao sul, através do rio Castanha e Açaí. Estes Yebamasa (especificamente do sib Seramasa, de baixa hierarquia entre os Eakuna) retiraram-se do igarapé Komeya (afluente do médio Piraparaná), região de ocupação tradicional dos Yebamasa na Colômbia. No processo de acomodação territorial, não apenas Yebamasa, mas também alguns grupos bará fixaram- se entre estes Tuyuka agora no alto Tiquié.

34 Cabalzar (2009: 145 (Tabela 4), 158).

35 Ver Cabalzar (2008: 35 e 149), para os mapas históricos que indicam as migrações entre as duas bacias, do Papuri para o Tiquié, na região das cabeceiras destes dois rios que, no rumo leste - oeste, vão desembocar no rio Uaupés próximos às missões ali instaladas, respectivamente, de Iauareté e Taracuá.

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Em correlação aos outros sibs associados (considerados menores em relação aos

Opaya e que com eles migraram para este território), enquanto Opaya passaram a se

casar mais com Tukano, os Miño, também considerados seus avós (pois que hierarquicamente menores),36 vinham se casando mais com Bará e posteriormente, com

Seramasa.

Em termos dos segmentos dos sibs e sua autonomia matrimonial, ao longo desse processo de expansão Opaya já no Tiquié - como de todo coletivo de netos de mesmos avôs (por linha paterna) que cresce numericamente e se divide por diferentes localidades ou povoados nesse mesmo território- se atualiza certa autonomia matrimonial das diversas localidades, mas seguindo uma tendência específica: enquanto localidades mais centradas (que apresentam maior amplitude agregadora do parentesco agnático),37 praticam maior parte de seus casamentos com mulheres distantes; os povoados mais periféricos e com população mais eclética praticam mais casamentos próximos justamente com os Tukano ou Bará vizinhos (ver Cabalzar, 2008).

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O que está sendo descrito é um caso dentre vários destes processos de mudança de lugar e transformações sociais intensas, alcançando em seguida certa estabilidade territorial e nas relações com aliados. Essa estabilidade pode ter as mais diversas realizações em termos da agnação e da cognação, e Cabalzar segue descrevendo e analisando o exemplo do alto rio Tiquié. Primeiro cito essa realização mais agnática, para em seguida indicar processos envolvidos em realizações mais cognáticas.

A região central de ocupação Tuyuka no alto Tiquié corresponde à área entre a foz do igarapé Abiu e a cachoeira Pedra Curta. Nesse trecho, estão alguns povoados tuyuka, como Pupunha do lado colombiano, Fronteira e Cachoeira Comprida do lado brasileiro. Nessa região central do atual território tuyuka do alto Tiquie estão comunidades onde vivem apenas pessoas do sib Opaya. São segmentos maiores deste sib que compõem, cada qual, um único grupo local: casos de Cachoeira Comprida, Fronteira e Pupunha. Em termos de relações agnáticas ou da força agregadora da agnação (parentes por linha paterna ou linha masculina), eles representam um grande amplitude da agnação, em que tanto parentes agnáticos mais próximos quanto mais distantes (classificatórios, mais distantes), mas ainda do mesmo sib, são co-residentes.

36 Cabalzar (2008: 307).

37 Se o parentesco agnático agrega em amplitudes maiores...se a convivência tende a ser entre parentes classificatórios (primos paralelos) (FF, FFF, FFFF comum).

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Por outro lado, descrevendo uma situação mais cognática, em decorrência da atração promovia pela comissão de fronteira e pelas missões salesianas em períodos seguintes, os Tuyuka seguiram descendo o rio e ocupando, posteriormente, um trecho maior do Tiquié a jusante da cachoeira Pedra Curta. Hoje o povoado tuyuka de São Pedro fica nessa área, abaixo de Pedra Curta, que se tornou uma área de ocupação mista tukano e tuyuka, em cuja vizinhança vivem, há três gerações, os Seramasa., hoje já considerados pelos Tuyuka habitantes dessa área (mais especificamente, do chamado igarapé Açaí ou Mipiriya, afluente do rio Tiquié entre as cachoeiras de Caruru e Pedra Curta).

A composição de São Pedro hoje é um exemplo do movimento de pequenos grupos (segmentos menores de diferentes sibs, tanto opaya como outros) que passam por um processo de redução de sua população, aproximando-se também dos afins por circunstâncias diversas. Segmentos de sibs que ficaram isolados e vão se reagrupar com segmentos de vários outros sibs que, por sua vez, também se viram reduzidos e dispersos. Ou seja, procuram a reinserção no próprio grupo exogâmico, mesmo que em novas bases. Não mais em malocas, nem em povoados centrais onde viveria um só sib, mas em povoados com populações mais ecléticas. Nesses casos, Cabalzar destaca em sua análise que, mesmo onde os povoados se organizam com base na aproximação de segmentos de distintos sibs, inclusive sibs afins (de cunhados), vê-se que as relações de aliança (congáticas) internas ao grupo local contribuem para o rearranjo, justamente, das relações agnáticas entre os sibs.

Como isso acontece? Através da co-afinidade.