• Nenhum resultado encontrado

Potências e perigos das transforuações entre (saberes) ancestrais, aniuais e dos brancos (basoka señore).

Dizia o tradutor:

3. Só pensa eu couer, couer Sobre o perigo e o uedo

3.2 Potências e perigos das transforuações entre (saberes) ancestrais, aniuais e dos brancos (basoka señore).

Gradativamente, vai se esclarecendo múltiplas possibilidades ou formas como conhecedores tuyuka buscam destacar as potências dos perigos dos saberes

niromakañe; inclusive contrapondo ou destacando niromakañe dos benzimentos de cura

e agressão), ou de todo o fundo de agressões; ou distinguindo inicialmente, procedimentos de dar vida e purificar com leite e frutas doces, de procedimentos de eliminação de tristeza

bori koãre); ou os assim chamados “xamanismo vertical e horizontal”. Desse modo e

contra esse fundo, niromakañe produz e diferencia humanos, circulando a partir dos irmãos maiores ou sob eles, enquanto saberes ligados à agressão e cura circulariam indistintamente entre todos, não diferenciando essencialmente humanos entre si nem das outras gentes.

Dentre as possibilidades de transformação entre diferentes gentes (basoka

señore), marca-se eventualmente sentidos em sua complementaridade. Em um deles,

pássaros (waimasã) e humanos conectam-se entre si e humanizam-se (kameri basoka

señore) sob efeito do caapi e das danças na Casa em Festa, frente aos ancestrais. No

outro sentido, humanos se transformam em animais104 sob agência de estragos (waik¡

seño, transformando-se em animal de caça, ou alimentando-se como um deles). Destas

agências, o que se dá sob a Casa em Festa seria do âmbito de niromakañe, destacando- se dos estragos.

Cada possibilidade em suas potências e perigos, ou em suas conexões, transparece no “processo civilizatório” ou transformador de gentes (basoka señore) vivenciado também no momento da chegada dos missionários. No sentido missionário então marcado,

189

das transformações (basoka señore ou o “civilizar”), os velhos conhecedores (sobretudo, mas os povos indígenas da região, em geral) passam por aqueles “que não tinham nada” (b¡ri nira), frente aos brancos “com seus verdadeiros saberes”. Condiçao aviltada enquanto os missionários ainda os destituem (aos velhos conhecedores) de suas caixas de adornos e malocas (percepção depois revertida, ver próximo Capítulo).195 No sentido da

civilização então trazida, saberes dos brancos suplantariam em valor, a niromakañe enquanto saberes maiores, aqueles que diferenciam conhecedores maiores: esses saberes os transformariam em “verdadeiros brancos, civilizados”.

Mas é no bojo das possibilidades de transformação entre toda ordem de Gente (basoka señore) que se configuravam transformação dos corpos, fabricação, potencialização ou vulnerabilização ante os perigos (ancestrais, da gente-peixe, inimigos ou brancos). Transformações sob a Casa em Festa e transformações sob estragos contrapostas apenas como mais um modo de, como se dizia, destacar proteções de agressões; ou hierarquizar saberes, valores, sujeitos.

*

Com niromakañe buscar-se-ia a estabilização das pessoas, mesmo comuns, sob a liderança ou agência dos conhecedores maiores, nomeados como baya (com a intenção de ser grande líder dançador e cantor, entoador wederige hig¡), que, como tal, dança e humaniza cumulativamente a todos sob sequências de Casas em Festa, em que se veicula o “prosseguimento da cultura”. O grande conhecedor, iniciador de meninos ou benzedor de moças novas, sempre atribui parte das tarefas a outros conhecedores, como ao benzedor

báseg¡ (rezador e protetor da Casa em Festa,). Segundo Gire: O primeiro, o masak¡ra baya, ele podia fazer tudo.

Só que acontecia assim antigamente:

o irmão maior poderia estar dançando na maloca,

enquanto isso o outro kumu (benzedor) estaria fazendo aquele trabalho dele também.

Não poderia fazer as duas coisas.

Por isso que o baya mandava para os tios, avós deles

ficarem rezando, cigarro, jenipapo, ipadu, breu, essas coisas [na Casa em Festa]. Mas na hora do wederige, é com o baya mesmo:

ele que puxa, o baya puxa os cantos

105 Ver próximo capítulo, sobre transformações em curso nos processos de civilização e da potência dos saberes dos brancos com relação aos saberes niromakañe. Segundo Andrello: “primeiro aquiesceram à perspectiva dos brancos, mas depois acontece algo inusitado. A parte da riqueza que continuou sendo veiculada, sobretudo nomes e conhecimentos ao longo das gerações, (...) mostra-se passível de incrementação através das coisas dos brancos (...).” “Como a narrativa da origem, que devolve aos brancos a perspectiva tukano a respeito de si mesmos (...), também uma perspectiva tukano frente aos outros (...) e envia uma mensagem aos brancos: continuaremos índios apesar e através de vossa civilização” (2004: 409).

181

e ao mesmo tempo a entoação wederige hire. E ele também sabe yeripona basere:

só que o baya já deu aquele trabalho para um outro,

pois ele só poderia fazer aquele trabalho de dançar e puxar a entoação.

Sob a Casa em Festa e efeito do caapi, no momento da miração todas as gentes se humanizam. Pássaros e humanos estão confraternizados pelos bons pensamentos (kameri basoka señore), vivos e ancestrais. Em outras circunstâncias, como no momento da fabricação dos adornos, os pássaros e todos os animais com que se confeccionam adornos, como gente-peixe e potenciais agressores da humanidade, precisam ser nomeados como seus donos e passar pelos mesmos estritos jejuns que eles. Apenas conhecedores maiores os fabricariam.

Sob a Casa em Festa se diz que estão, pássaros e humanos, entre si, apenas com boas intenções e bons pensamentos (añurere kameri basoka señore), transformados assim sob os sons das flautas que zoam durante a miração do caapi, humanos e outras gentes (pássaros como ancestrais, como adornos cerimoniais, também considerados genericamente como gente-peixe em outros contextos). Toda relação transformada como coisa boa : maloca, parentes e afins, ou convidados e anfitriões, durante a Casa em Festa (basokatire). Gente-pássaros e humanos “confraternizam” ante os ancestrais, assegurados por procedimentos de transformação (ou prevençao de doenças agenciada pelos básera) - basoka bapore - em que gentes-peixe estão com suas intenções, inveja e raiva, acalmadas.

Discorrendo sobre essas possibilidades, da proteção com coisas boas, comparando com os novos tempos, comentava o jovem tradutor, Josmar:

Antigamente os jovens já tinham alguma vergonha de ir perguntar pros velhos [os saberes maiores],

a diferença é que hoje não estamos mais nem pensando nas dificuldades que vamos ter

quando não tivermos mais isso.

Conforme finado velho Henrique Ramos já tinha alertado em entrevista a Geraldino Pena Tenório (filho de Guilherme Tenório):

as coisas dos brancos não vão trazer todos os benefícios que vocês vão precisar no futuro.

Essas coisas, que só vêm dos cantos, danças e iniciação, as próximas gerações vão precisar:

eles podem ter, se forem sentar com os velhos, ao invés de ir apenas atrás das coisas dos brancos.

Geraldino comenta que, em alguns momentos os velhos, lembrando dos que passaram, tentam fazer os jovens de hoje valorizarem os rituais mais comuns praticados

182

pelos antepassados: parto, de banho pós-parto, purificação da alma, iniciação (masculina e feminina), do banho de madrugada, de cheirar pimenta, de bater água, de vomitar água.

*

Assim como se transforma em coisas boas, buscando preservá-las, há agentes de transformação de intenções boas em ruins. Torna-se um soprador, por exemplo, a partir de um estrago, que desencadeia outros, conforme se diz na região:

Os wat• fariam transformar uma boa intenção de certa oração, para esse pensamento de fazer estrago.

trocando essa maneira de benzer, pela maneira de fazer estrago. Como se um anjo estivesse ali perto dele.

O benzedor nem vê que ele está ali perto, em pé. Esse espírito mal, com oração que ele tem,

dá para ele, passa para ele, esse pensamento de fazer estrago. Faz esse estrago com oração que ele tem.

E ele fica com intenção de querer que o inimigo morra, fica como soprador.

É wat• que mandou ele fazer isso (esse pensamento).

Estragos se espalham em cadeia, pois na sequência um outro, tendo sofrido uma agressão ou visto seu parente sofrer, zanga-se e também é movido a fazer estrago. Certas doenças que acontecem na forma de estrago, disseminam-se dessa maneira. Costuma-se dizer que as pessoas que faziam mais essas coisas ruins é que tiveram que sair de suas comunidades: mandados embora dali, teriam vindo para a cidade. Por isso a disseminação das agressões seria mais forte nas cidades, sobretudo onde e quando proteções ou prevenções do tipo diarige wanoare e demais benzimentos do ciclo de vida e da Casa em Festa, não são feitas. Por exemplo, quando acontecem séries de enforcamentos:

Se um fica zangado porque o filho morre, vai estragando para outro,

e amplia a doença,

que, na forma de estrago, se espalha. Vem uma onda de suicídios.

Essas coisas já existiram na origem:

a história já era para fazer o bem ou para estragar, pois já tinha wat• na origem,

mas sque e preservava e guardava bem toda violência... Cada geração tinha,

não aparece só com a cidade... Mas o que acontece é que aqui,

ao invés de proteger, eles só estragam...

Isso, as gerações não pensam, na dificuldade que as outras vão enfrentar... Nesse ninguém pensa,

Só pensando em estragar, isso vai se multiplicando...

183

Protegia mais.

E acontecendo estrago, já teria também algum benzedor que saberia desatar essa armadilha e desfazer isso..

Nesse sentido, apenas sob efeitos de um estrago é que um humano pensaria em comer de qualquer jeito, nem pensando em benzer a comida, fazendo como um animal. Comportamentos desmedidos como esse, de comer de tudo sem pensar no perigo, sem nem pensar em benzer, ou nos riscos de tais atos, são como efeito de estragos.

*

Ou talvez, como efeito da expansão dos saberes dos brancos...

Sob o efeito das palavras dos salesianos, os índios foram orientados a rumar à civilização, quando todo o conjunto de niromakañe foi tachado de coisas do diabo (wat•), enquanto o pensamento dos brancos apresentava-se como coisa de valor maior. Os índios poderiam substituir brancos em conhecimento, em detrimento de seus próprios.. Uma substituição de tal ordem de violência e imposição de medos, realmente inéditas.

Andrello viu convergir proteções (enquanto nominação e iniciação) e civilização. Estas reflexões tuyuka fazem convergir proteção e estrago com a civilização como processos mais gerais de transformação.

Para viver com niromakañe (esses saberes), inclusive para fazer adornos, há que se proteger amplamente, com muitas precauções, sempre igualando essas gentes, alegrando-se ritualmente entre várias gentes, e que esses procedimentos se superponham aos os estragos (de outros ou por si mesmos).

É certo que os assim chamados “lugares sagrados” pelos próprios índios (wametiriwi) são Casas de gente-peixe e de muitas outras gentes, eventualmente perigosas, mas transformadas em terras férteis com as devidas proteções, então passíveis de serem ocupados pelos humanos. Algumas destas Casas, também através de

niromakañe, se tornam lugar bom para a Gente da Transformação emergir, viver e

dançar (Pam¡riwi) em sua trajetória pelo Rio de Leite. Essa transformação implica os movimentos concomitantes, eventualmente destacados um do outro: de purificação X eliminação de tristezas; de proteção X agressão (e cura); de humanização e consubstanciação X desconsubstanciação.

184

Conclusmo

Com os dois primeiros documentos propostos, Mandu propunha que o sentido do benzimento com tokõ ou frutas doces (dando vida e fabricando corpos), se distinguisse dos procedimentos de eliminação das tristezas (a cura), em que se joga fora substâncias ruins (bori koãre). No âmbito das agressões e curas, que o bom benzedor se destacasse dos que usam os mesmos benzimentos para estragos ou maldades. O conhecedor em dieta, protegido dos waimasã e dos jaguares, segue como dançador, pensador de coisas que nunca esquece, o pensamento seguindo uma intenção de que não se desvia. Esse pensador - dançador destaca-se como um líder conhecedor no curso das Casas em Festa. Também a vida da criança transformada em conhecedor e dançador que segue sua vida de dietas, destaca-se daqueles conhecedores que se estragam por si mesmos e se tornam imediatamente presas ou comida de cobras e jaguares. Ou, se hoje não sofrem

wisire, se tornam b¡ri nira, pessoas comuns, pessoas quaisquer.

O que se diz continuamente é que a quebra dos jejuns (yabetire) deixa o corpo de um grande conhecedor fraco (wisire), ao ponto de provocar a morte. Também gorduroso, vulnerável, sobretudo a onças e cobras. Um caso ou outro afeta imediatamente os conhecimentos (via impregnação da alma, witõ ou carajuru dos ouvidos), enfraquece a mente. É possível recuperá-la, ajeitá-la com benzimento (basekeno), mas em casos extremos (justamente, que envolvam conhecedores mais potentes) é preciso da colaboração de um pajé. Casos que geralmente resultam em morte.

No quarto documento percebe-se como saberes e fertilidade da mulher afetam o pensamento\fertilidade do conhecedor. Poluem, esquentam seus bancos, umidecem ou queimam seus witõ (observar diferenças). Objetos e afecções como conhecimentos/pensamentos. Vários seres perigosos (bori basoka, siokari basoka), também compõem o campo dos perigos, ao lado de onças e cobras que afetam conhecedores maiores essencialmente na quebra dos jejuns, comendo alimentos gordurosos, ou quentes, moqueados, assados.

Os jejuns (yabetire) alimentares aparecem também como ícone das regras de comportamento, das prescrições para controlar as transformações entre estes seres. Sua quebra, irresponsabilidade ou incapacidade de seguir as dietas prescritas em geral pelos benzedores, ícone da fraqueza e irresponsabilidade das pessoas, que se “ estragam por si

185

mesmas”: o corpo gorduroso (¡sesare), a comida ingerida e vista pela gente-onça e gente- cobra ícones dos seres agressores que então provocam fraqueza (wisire fulminante, freqüêntemente com morte). Essa abertura à gente-onça, só um pajé poderá restituir, com certa integridade a esse corpo e alma.

No sentido de abrandar extremos riscos, são feitas revisões cosmo-políticas sobre as almas dos conhecedores maiores. Agencia-se prescrições menos rígidas na alimentação e restrições sexuais, abrandando também perigos maiores e o medo. Uma possibilidade revista, ao corpo nomeado.

Vieram sendo discutidas revisões cosmopolíticas promovidas no âmbito da nominação e intenções da pessoa, abrandamentos que rebatem sobre a alma da pessoa. Que capacidades se adquire com a nominação, diante da tendência de não se fazer a iniciação e de outras revisões cosmo-políticas por que vem passando a nominação? Como manifestam possibilidades de se desvincular aspectos de corpos-almas de parte dos pensamentos mais importantes, mantendo, entretanto, corpos e alimentos devidamente conectados (com os benzimentos de descontaminação dos alimentos)?

Se certas soluções só podem ser dadas pelos benzedores (sobre as fórmulas e efetuação dos benzimentos), tais revisões remetem a intenções e interesses difusos entre benzedores e suas clientelas. Remetem a preocupações tanto de velhos quanto das gerações mais novas, conformadas inclusive nas escolas. Enquanto líderes, os bayaroa se diferenciam dos kumua ou básera. Os bayaroa se apropriam de capacidades oratórias das entoações cerimoniais, diálogo e percepção dos ancestrais (nas entoações, danças, benzimento do caapi) e dos inimigos (nas proteções da Casa em Festa, das doenças em diferentes épocas do ano), das quais usufruem estando, também eles, benzidos. Falou-se de saberes altamente valorizados como benzimentos, cantos e danças, sem ater-se às chefias como algo deles dissociadas. Será visto no próximo capítulo como estes saberes niromakañe também se dispersam, em partes diferenciantes, entre muitos, se não entre todos, embora muito se enfatize a especialização e circunscrição de certos saberes entre poucos, em linhas: segundo um paradoxo, como já dizia S. Hugh-Jones, entre seu encobrimento e sua exibição (ritual). Sua circulação ou transformação, sempre produtiva, hierarquizante.

Por fim, saberes dos brancos tomam mais espaço nos interesses de jovens e velhos. Que formas assumem e como circulam e se transformam, estes saberes

186

ancestrais ditos (Andrello) ofuscados pelos saberes dos brancos? Saberes transparecem sob novas formas, objetificados em novos objetos? O que revelam quanto às novas formas de atualização da agnação? Em princípio, os Tuyuka também falam de cultura no sentido de Andrello, mas este capítulo indica modos como tanto o caráter do que circula vitalmente entre pais e filhos, quanto as formas de circular ou transformar (em certos aspectos).

No manuseio dos saberes importantes, etnografando modos como circulam e se transformam, desvelam-se novos aspectos dessa equação entre capacidades (dos brancos e dos índios, por exemplo). Como acontece hoje quando, segundo dizem, poucos velhos estão falando como os ancestrais falavam?

Os Tuyuka percebem claramente um limiar, nos últimos velhos que ainda podem enunciar a fala dos que vieram antes e que não vão mais existir. Aqueles que ainda podem se dizer filhos “dos que sempre vieram fazendo assim,” ainda que o próprio pai não tenha passado pela iniciação com as flautas sagradas Como equacionar capacidades, e a circulação de vitalidades e saberes (também entre linhas), sem conhecedores dessa ordem, mas entre buerapona, filhos dos estudantes (uma configuração anotada por eles mesmos)? Sem a pretensão de responder a essas perguntas, discutiu-se como elas se colocam, quando outros estão à procura daqueles a quem contar seus saberes de maior valor, encontrando novos ambientes em contextos escolares ou de projetos, quando mais jovens estão em busca das falas dos seus próprios avós, diluídas entre conhecedores outros que não seus próprios parentes.

Viveiros de Castro disse que a predação (e as áreas de instabilidade da afinidade) era a passagem entre as duas fases da socialidade amazônica (entre o dado e o construído). Aqui busca-se colocar o foco sobre redes de saberes, como anteriores aos processos identitários, para perceber como os Tuyuka se reportam ao pólo do dado e do construído. O foco sobre niromakañe ou saberes de valor maior, reincide sobre redes de sujeitos (especialistas altorionegrinos), mas a partir de alguns processos de distenção pessoa-grupo (nesse capítulo). Essa descrição sustenta, na sequência, uma outra aproximação alternativa e complementar às redes de saberes: conhecedores que compõem seus saberes maiores circulando entre diferentes linhas de gente ou adensamentos.

187

Como já dito anteriormente, essa tese é um exercício descritivo em torno dessa busca: colocando em primeiro plano os saberes, que circulam empiricamente, diferenciando sujeitos. Se, com nominação, adquire-se uma parte da alma do grupo e um pensamento (incorporando capacidades vitais), possibilidades de mudar estes procedimentos e como pensam suas conseqüências, mereceram algum destaque na argumentação inicial deste capítulo. Conversando com os Tuyuka mais velhos, sobre os processos de nominação por que passaram eles mesmos e os que agenciam hoje, explicitam certos reajustes da nominação, tão fortemente associados ao processo de diferenciação entre os especialistas (no sentido em que “dar um nome, é dar também uma profissão”, como dizem hoje).

Buscou-se uma percepção mais ralentada de certos abrandamentos nas práticas de nominação e descontaminação da comida, nos termos das capacidades de pensamento e fertilidade. No âmbito destas revisões cosmopolíticas, refina-se na sequência do próximo capítulo, outros aspectos da circulação e transformação destes saberes (niromakañe).

Na circulação de saberes desde a origem e já no contexto de espalhamento dos Tuyuka originários do alto rio Tiquié e São Gabriel, circunscrevem-se modos de confronto no bojo de processos de geração e transformação de saberes. Na continuidade enquanto abrandamento, marca-se descontínuos: entre o “conhecedor certo” e aquele “à toa” (“que não é sério, fala por falar”), entre partes e coisas completas, estes entre redes agnáticas ou linhas. Observando a circulação de saberes entre conhecedores (masira sesaro), sejam mais velhos (e plenos) ou mais jovens; homens ou mulheres; maiores e menores; em várias circunstâncias, que formas assume? Que tipos de sujeitos conhecedores aí se configuram?

*

Como dizia Goldman, a manipulação da alma yeripona por conhecedores relaciona- se ao conceito de poder e saber do conhecedor. Para os Cubeo, segundo Goldman, a totalidade dos poderes estaria alocada entre leigos e pajés do seguinte modo. Leigos seriam os que usam fórmulas de cura, conduzem e explicam procedimentos rituais.196 Os

pajés teriam maiores poderes que os demais: poderes de trovejar e curar. Para os tuyuka, conhecedores maiores seriam os dançadores de flautas sagradas, líderes rituais que

106 Segundo ele (2004: 373), as visões dos leigos e dos pajés se diferenciariam, as primeiras percebidas como impressões sensoriais diluídas (no sentido de que todos os benzedores vêem a mesma coisa), enquanto a visão do pajé (uma cena privada que ele descreve e registra como espetáculo) entraria na categoria de fatos.

188

fazem a proteção da Casa em Festa: seres feitos de caapi e ritmos de dança. poderes cuja origem diferencia-se e se contrapõe aos poderes dos pajés.

Para o dançador de flautas sagradas tuyuka, a incorporação da alma com adornos cerimonais e com frutas doces (tokõ) no curso das Casas Sagradas antes de tudo, através da trajetória pelo rio de leite, orienta sua transformação com pensamentos de purificação, onde tudo é transformado em coisa boa (Cabalzar, 2008: 165-66). Muito já se comentou como a alma associa-se ao corpo através de objetos. A alma, pensamentos e nomes estão inscritos nesses objetos, como flautas sagradas, adornos de dança e instrumentos rituais. Pensamento, conhecimentos, intenções que estão inscritos nos objetos/nomes, que estão no lugar dos corpos na origem; e que são signos das capacidades dos corpos hoje manipulados em benzimentos, conselhos,197 festas. Com a