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saberes e bens, mas aos modos de transformação (circulação) dos saberes, analisados a partir das conexões empíricas (explicitadas) entre múltiplas práticas,

3. Leitura poética: da expansão de predomínios agnáticos em Cabalzar

3.4 Da leitura poética

A idéia de expansão de predomínios agnáticos é uma inspiração importante nesta tese. Tal expansão corresponderia ao movimento cosmopolítico fundado na agnação em combinação com a cognação, no âmbito do qual a agnação atualiza-se de novas formas (eu falo em aberturas da agnação). Cabalzar explorou mais detidamente o parentesco, mas indicou claramente sua repercussão cosmopolítica, seja no âmbito da complementaridade ritual entre os papéis ou no das relações regionais. Embora sua análise foque momentos de estabilização, ele deixa claro o caráter do movimento de expansão de predomínios agnáticos (expressão que, todavia, ele não usa).

No meu entendimento, o autor fala em predomínios [ver acima, discussão do predomínio opaya no alto rio Tiquié] tendo em mente as vitalidades agnáticas: em seus termos, vitalidade das referências territoriais, sociopolíticas e rituais inerentes aos processos de diferenciação locais e regionais em contínuas re-acomodações. Segundo ele, hierarquia, agnação e cognação moldam relações, produzindo diferentes soluções de equilíbrio ou estabilidade.

A expansão de predomínios estaria indicada, por exemplo, nos processos mais locais de segmentação dos sibs, iluminados pelo autor não enquanto conflitos faccionais ou conseqüência da situação do contato e colonização, mas à luz dos modos de relação (ou regimes de socialidade, embora também não se utilize desta linguagem). Deixa claro que estabilizações são implicações de movimentos de expansão (territorial, que entendo de forma mais geral, enquanto expansão de predomínios agnáticos) que, justamente, fundamentam as transformações das relações.39

Ele observa a centralidade da agnação nas narrativas e na memória tuyuka (sejam míticas ou históricas, com suas diferentes ênfases, as primeiras mais abrangentes, macroregionais; as últimas mais genealógicas e microregionais), sob os eixos da

38 Segundo C. Hugh-Jones (1979) o sistema de alianças tripartite se associa com a classificação dos ancestrais entre Água (Anaconda), Terra (Jaguar) e Ar (águia), enquanto criaturas ancestrais predadoras que se transformam umas nas outras. Associa-se também com as fratrias.

39 Também no meu entendimento, ele deixa assim implícita uma noção de expansão de predomínios agnáticos. Sua linguagem analítica (Cabalzar, 2008) situa pessoas, os Tuyuka do alto Tiquié no caso, em redes de relações sociopolíticas. Eas deixa claro que pessoas e lugares se configuram a partir das dispersões, cujos rumos podem ser delineados (e que os próprios índios ora enfatizam, desde uma referida co-residência em uma mesma maloca às dispersões em certa região). Analisa e argumenta em torno das relações entre os sibs que vêm convivendo no alto rio Tiquié, ou entre os segmentos de sibs que ali se dispersaram (movimento que continua).

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verticalidade e associação ao território.40 Eas enfatiza as diferentes soluções possíveis das estabilizações,41 segundo o fio condutor da agnação. O que se perceberá ao longo da tese é que também a narrativa estabilizada, assim como a pessoa, transformam-se em meio à circulação de saberes (assim distinguimos narrativa e saberes nesta tese). Com todas as suas limitações, essa tese busca alcançar uma etnografia dessa circulação de saberes, no que se diferenciam e reconfiguram saberes e pessoas.

Na fundante expansão de predomínios, mantém-se como fio condutor a agnação. Onde e como, depende do olhar. Cabalzar (2009), no âmbito dos regimes de socialidade, explora mais explicitamente a alternância entre ambientes mais abertos (igualitários e cognáticos) e ambientes mais fechados (hierarquizados e agnáticos). Demonstra ainda que tais dinâmicas também estariam dadas regionalmente. Ou seja, na dinâmica territorial do Uaupés como um todo, também se produziriam os mais distintos arranjos supra-locais ou nexos regionais, a partir desta alternância entre fechamento (agnação) e abertura (cognação).42 Uma dinâmica expansão dos predomínios, segundo entendemos o autor em questão, fundada em aspectos vitais como as referências territoriais, sociopolíticas, rituais. Entre os tuyuka do alto rio Tiquié e provavelmente em outros casos noroeste amazônicos também, o processo valorizado nas falas dos índios, que conduz da maloca ao povoado, segundo a análise do autor, não se dá unicamente na transformação de relações agnáticas em cognáticas (inspirado no modelo geral proposto por Viveiros de Castro), mas em soluções locais, dependendo da situação, da história, da localização do grupo, onde também se recomporiam em novas bases.

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40 Estas narrativas permitem compreender a descendência no Uaupés, não como clãs e linhagens, mas sobretudo enquanto narrativas de origem, migração e dispersão (ver Narrativa Opaya em Cabalzar, 2008: capítulo 3; e Hugh-Jones, 2008).

41 As estabilizações geradas dos processos de transformações seriam percebidas pelo autor como oscilações entre (conforme diferentes combinações e contrastes entre estes aspectos)

-ocupação ou não de território de origem mítica (onde emergiram como humanidade) ou em outras palavras, permanência em zonas de ocupação mais antigas ou mais recentes;

-pelas sagas migratórias distintas (com relação às Casas de Origem espalhadas pela região) ou comuns (aqui caracterizando complementaridades, tanto de partilha quanto de disputas por territórios e riquezas ou tudo aquilo que é fundamental à existência e permanência do grupo). Ou seja, não dá para narrar a saga de um sib independente da saga dos demais sibs com que mantém proximidade e complementaridade;

-pela perspectiva ribeirinha entre cabeceiras e foz dos rios.

-pelo impacto das diversidades sociopolíticas entre Brasil e Colômbia a partir dos anos 40.

42 De que maneira os regimes de socialidade (nas realizações de S. Hugh-Jones, Cabalzar e Viveiros de Castro) contribuem para pensar conexões entre redes de saberes? Para analisar eventos empíricos de circulação de saberes, em que sujeitos diferenciados promovem reflexões mútuas, percebendo aí transformações dos saberes (Gallois, 2009, ms).

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