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Entre modelos gerais (amazônicos) e modelos locais altorionegrinos: elementos introdutórios

geração e transformação de saberes

1. Regimes de socialidade dual

1.2 Entre modelos gerais (amazônicos) e modelos locais altorionegrinos: elementos introdutórios

Uma série de re-alinhamenos entre os modelos gerais amazônicos e modelos locais altorionegrinos são propostos no diálogo entre Viveiros de Castro e Stephen Hugh- Jones. No que se segue, embora de modo ainda preliminar, abordo elementos desse

7 Especificamente, a autora comenta a etnografia de Kelly entre os Etoro e critica sua análise, quando discute a transmissão de forças vitais entre gerações, pelo fato dessa regulação e distribuição de forcas vitais pelo pai aparecer ao antropólogo como a força social organizadora - tal análise também ecoa na percepção de Stephen Hugh-Jones (1979) da relação geracional como uma relação cuja singularidade seria sua irreversibilidade, fechamento em duas gerações. Não se leva adiante a criatividade das gerações (Strathern, 2001: 231). Aparentemente, nesse sentido, os Etoro não elaborariam uma analogia entre as substâncias do corpo humano e as substâncias dos objetos, de modo que o mundo físico, como o corpo físico, aparece então como uma sombra do mundo dos espíritos, forças vitais, conquanto não transforme substâncias internas em externas desse modo, “body-forthing things,” ou conduzindo as substâncias adiante. Diferentemente de Kelly, Strathern enxerga dois modos de relação, do ponto de vista das relações de gênero ali envolvidas (idem: 233): sejam entre homens, entre mulheres, ou entre homens e mulheres, como relações de mesmo sexo quando o fluxo é visto como benéfico e virtuoso, e de sexo cruzado quando visto como predação e depletion. No primeiro caso, beneficiário e doador apresentam-se mutuamente masculinizados,adquirindo vitalidades e virtudes); no segundo caso, a relação se torna assimétrica e a vítima, que perde vitalidade, é feminilizada. 8 Noção desenvolvida adiante e no curso desta tese.

9 Relações que supostamente codificam idéias sobre reprodução e conhecimento em vários eixos e em todas as suas ambigüidades, em processo.

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complexo diálogo. S. Hugh-Jones pondera, por exemplo, que a temática da afinidade, violência, roubo, apropriação violenta de troféus e partes do corpo daria lugar, no Uaupés, à ênfase na transmissão e na herança, bem como na constituição de artefatos e riquezas transmissíveis ao longo das gerações. Contudo, tal ênfase, ponderam alguns etnógrafos mais novos desenvolvendo pesquisas na região (Andrello 2006; Eaia 2009), não elimina a temática da apropriação do exterior, presente, por exemplo, no roubo de mulheres, ou na apropriação das riquezas (apeka) dos outros, no ritual de jurupari (Paulo Eaia), que se tornam então artefatos sagrados e transmissíveis.

Ao falar do xamanismo, S. Hugh-Jones (1989, 1994) distingue ideologias que enfatizam mais a caça e a guerra, predominando o xamanismo horizontal, e sociedades como as do noroeste amazônico, cuja ênfase recai menos sobre a caça e a guerra, predominando, assim, o xamanismo vertical. Ou seja, para pensar o xamanismo no rio Negro (assim como nos Bororo ou nos Aruak), coloca-se uma distinção adicional relevante entre dois tipos de xamanismo: vertical e horizontal. Com ela, vai-se além da discussão da natureza ambivalente do xamã,10 para acrescentar uma distinção (adicional à anterior) baseada em diferentes funções e esferas de atividade, competência e fontes de poder cosmopolítico destes xamãs, que detalhamos um pouco mais adiante, e sobretudo no capítulo 2 desta tese.11 Costuma-se dizer no rio Negro que “um torna seguro o que o outro provê” (1989: 11). Ou seja, enquanto pajés (xamãs horizontais) visitam gente-peixe e gente- animais para obter caça, em troca de almas humanas12 ou participam de um ciclo de agressões como onças, o kumu (baseg¡ em tuyuka ou pajé vertical) protege, pronunciando benzimentos sobre a comida para torná-la segura ao consumo.13

10 Xamã capaz de agredir e curar (ou de que quanto mais poderosos são mais ambivalentes), relevante a todas as sociedades amazônicas, inclusive ao rio Negro.

11 O xamanismo manifesta-se numa relação dinâmica entre dois princípios ou modos de relação, numa inter- relação dinâmica entre eles. Não se trata de uma tipologia sincrônica nem de reificar as distinções, mas de explorar a relação e o jogo dinâmico entre dois princípios ou modos, no caso, manifestos no xamanismo, e que também se expressa em sínteses entre igualdade e diferença, dentro e fora, parentes e afins, aliança e descendência, verticalidade e horizontalidade, típicos das sociedades ameríndias ( Hugh-Jones, 1989: 4). No capítulo 2, veremos os modos como saberes de proteção (próprios dos aqui chamados xamãs verticais) se destacam, nesse sentido, dos saberes de agressão e cura. Como um velho conhecedor (Eandu), no curso do diálogo comigo, destaca alguns saberes (de proteção) dos outros (de agressão e cura), e assim delineia as agências de cada xamã. Entre os Tuyuka, há o benzedor ou baseg¡ - xamã vertical -; mas não há o pajé ou yai - xamã horizontal, procurados entre seus afins tukano.

12 Esse modo de atuação dos pajés também parece não se generalizar no rio Negro. Ver discussões e ponderações de Goldman (2004: 300).

13 Os kumua apresentam sobretudo poderes de adivinhar eventos que podem vir a acontecer e benzer profilaticamente (proteções em que manipula os seres que causam doenças, antes delas acontecerem), no curso de suas maiores cerimônias (Casa em Festa) e do ciclo de vida (proteções no nascimento, iniciação e morte). Sua fala não se manifesta como poder/atividade agressivo, mas como poder/atividades moralmente e altamente respeitáveis (não ambíguos), promovendo sua continuidade com a ancestralidade na figura da

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Visto de uma perspectiva dinâmica de ordenação ou hierarquização de subjetividades e valores (cosmopolíticos), Stephen Hugh-Jones (2009) compara os graus de animalidade próprios das sociedades ameríndias, em geral, nos quais criaturas como os jaguares ocupam o topo da hierarquia, aos graus de materialidade dos objetos rituais que correspondem às hierarquias sociais de prestígio no rio Negro, onde os membros dos sibs de mais alta hierarquia são os que detêm o controle da parafernália ritual e dos saberes de proteção. Os kumua são associados às posições hierárquicas mais altas, enquanto os pajés, que agenciam curas de doenças e agressões, às mais baixas. Nesse sentido, os

kumua seriam pessoas mais bonitas e pesadas, ou mais materiais que as pessoas

comuns, estas menos substanciais. No rio Negro, os jaguares e pajés também têm espaço, mas em correlação com os kumua.14

Quanto à circulação de aspectos da pessoa e ao estatuto das riquezas e propriedades dos grupos, a maioria dos autores mais recentes com que me proponho a dialogar inspira-se em Hugh-Jones quando ele revisita a noção de descendência e grupos patrilineares altorionegrinos e pensa a descendência enquanto riquezas (materiais e imateriais) associadas a vitalidades relacionadas à ancestralidade. As propriedades seriam manifestação de essências transmitidas por linhas, dos avós para os netos, e não emblemas de identidades. Essências pensadas como partes destotalizadas de um mesmo ancestral ou de uma mesma entidade (cobra, jurupari, menino caapi).

Os etnógrafos mais novos buscam discutir o modo como os regimes de propriedade, tal como pensados por S. Hugh-Jones, conectam-se aos regimes de alteração sintetizados por Viveiros de Castro (2002). Da parte deste último, ele constrói o diálogo em torno da questão da afinidade, e não gênero,15 estar na base das teorias da socialidade amazônicas, ainda que a linguagem das relações de gênero seja fundamental para pensar estas (e outras) relações. Em torno das noções de corpo e alma, ou da vitalidade dos aspectos espirituais (ou princípios cosmológicos) ligados ao corpo, e aludindo

Anaconda (Cobra-canoa, menino-caapi, flautas sagradas ou flautas de jurupari). Ou seja, tanto através de benzimentos dos alimentos como outros (uma série de fórmulas, cantos e mitos que conhece, domina e enuncia), controla eventos das épocas anuais, ou do ciclo de vida em benefício de sua comunidade ou Casa, da qual geralmente é o líder (Hugh-Jones, 1989). Os pajés mais poderosos ou xamãs horizontais têm, como jaguares, poderes de cura em que recupera almas roubadas por outros pajés, bem como poder de vingança e agressão, viajando através das camadas cósmicas até moradas do Trovão. Em certos aspectos, a agência dos xamãs verticais é discutida no capítulo 2 desta tese.

14 É como se tivéssemos que distinguir entre os xamãs propriamente ditos (aqueles que são conhecidos na Amazônia inteira, inclusive no rio Negro), dos xamãs que existem apenas em algumas regiões, o que torna pouco proveitoso ou dispendioso o uso do termo xamã nessa região.

15 Para Viveiros de Castro (2002), assim como para Descola (2001), gênero estaria sendo entendido como, simplesmente, outra expressão da afinidade (“and subsumed by it”) (S. Hugh-Jones, inf. pessoal). Diferente do que viemos discutindo nas duas primeiras partes deste capítulo.

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ao divíduo de Strathern, diz que “o divíduo amazônico não se dividualizaria segundo a linha de gênero, como na Eelanésia, mas segundo os contrastes entre consangüinidade e afinidade, e entre humano e não-humano (dois contrastes isomórficos)” (2002: 444).

Tomemos especificamente a discussão dos dois autores em torno da nominação, que interessa diretamente a esta tese, e o que ela esclarece. Quando os dois autores debatem sobre a circulação de riquezas e de nomes, Viveiros de Castro comenta que as riquezas no rio Negro seriam pensadas tanto como essências, poderes, aspectos não individualizantes de pessoas-grupo quanto em seus aspectos corporais, capazes de transformar e singularizar as pessoas.16 Em seus aspectos não individualizantes, encorporam poderes dos ancestrais (como alma e nome, enquanto vitalidades associadas à ancestralidade que circulam configurando as linhas masculinas); ou “encorporam”17 poderes dos brancos e jaguares (nomes dos brancos, mercadorias, etc). Esse regime de socialidade dual contrapõe dois princípios cosmológicos associados, por um lado, a anacondas, peixes e pássaros; por outro a jaguares, brancos e inimigos. De um lado, apropriação de capacidades ancestrais, de outro, apropriação de capacidades e bens dos brancos.

Segundo Viveiros de Castro, o nome manifesta a alma (yeripona) de modo não individualizante, no sentido da noção amazônica de que o corpo é que é o aspecto singularizador dos seres: alma apontando para aquilo que seria comum ou geral entre os indivíduos e também às espécies. Nesse mesmo sentido, no rio Negro, através do nome de benzimento, a pessoa partilharia a identidade coletiva do clã ou, em sentido mais geral, a humanidade tukano, conectando-se ao mundo da pré-humanidade (aos ancestrais). Por outro lado, através do nome do branco (enquanto aspecto da pessoa), se conectaria ao

16 S. Hugh-Jones enfatiza aspectos dos corpos como capacidades-afecções tanto de conhecimento como reprodutivas, capacidades e disposições mais abstratas, compartilhadas por homens e mulheres, de modos distintos (in gendered modes): enfatiza relacionalidades envolvendo gênero, geração, substâncias corporais (segundo Strathern). Fala da pessoa fractal ou circulação de aspectos da pessoa-grupo (suas continuidades) através da noção de casa. Foca no estatuto andrógino de certos objetos e da Casa, justamente aqueles que, depois objetificam-se como riquezas dos sibs (pessoa moral com suas riquezas). Viveiros de Castro (2002a) enfatiza relacionalidades envolvendo afinidade potencial e alteração; alma e corpo segundo modelo do perspectivismo amazônico, no qual, como bem disse, o espírito não é aqui substância imaterial, mas forma reflexiva (generalização da relatividade posicional da vida em sociedade: é o que integra) e o corpo não é substância material mas afecção ativa, o que diferencia.

17 Ao formular a teoria do perspectivismo ameríndio, toma o conceito de encorporação... Tratar-se-iam de disposições encorporadas, pois todos os seres se vêem como humanos, e, assim, como sujeitos, e vêem os outros como outra coisa, que não humanos. O que importa é que todos vêem o mundo da mesma maneira, de acordo com as mesmas categoria e relações. Eas o ponto de vista muda de acordo com o corpo exterior e distintivo de cada espécie, de modo que os animais caçados pelos homens os vêem em geral como outros animais predadores. Entre os Tukano, a discussão acima mostra que o perspectivismo se expressa principalmente nas relações entre homens e peixes (Andrello, 2004: 361).

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mundo dos brancos (infra-social), do jaguar. Anaconda e jaguar figuram incorporações supremas das qualidades associadas a cada mundo. S. Hugh-Jones teria afirmado inicialmente que os nomes de brancos e apelidos viriam de fora (ancestrais e brancos), enquanto que os nomes de espírito seriam endonímicos. Sua questão a S. Hugh-Jones era se os nomes de benzimento no rio Negro seriam realmente endonímicos (enquanto transmitidos de avôs a netos).

Viveiros de Castro propõe, então, uma reformulação da noção dos nomes de benzimento e nomes dos brancos, evidenciando que esses dois princípios cosmológicos (ancestrais e brancos) voltam-se à exterioridade. Em suas palavras: “a circulação de substâncias anímicas internas (como nomes, ossos, sêmen) associadas à agnação, depende do exterior (afinidade, mulheres). Em seus aspectos corporais, os nomes de benzimento no rio Negro, por exemplo, seriam aspectos da pessoa que se originam de um ancestral agnático morto, do exterior (afim potencial), portanto” (Viveiros de Castro, Ess/s.d.).18 A nominação indígena seria uma espécie de ligação potencial entre o recém- nascido e a alteridade pré-cosmológica que a couvade se esforçaria em cortar, atribuindo- lhe uma opacidade humana.19

Eas se adquiridos do exterior, conforme marcado posteriormente por S. Hugh- Jones, nomes são transmitidos desde o ancestral agnático menos remoto, aquele que emerge como humano a partir da segmentação da cobra-canoa, distinguindo-se aquisição e transmissão. Debatendo acerca desse sistema de nominação em sua origem exonímica, porém transmitida mais internamente, Hugh-Jones responde a Viveiros de Castro:

Ancestors (or their primordial anacondious source) are not truly human, and the same very likely applies to foreigners. So yes, the ultimate origin of Tukanoan spirit names is the Outside (as pre-human ancestors), so long as you bear in mind that the more proximate origin is human ancestors who are agnates (Viveiros de Castro, Ess/s.d.)

18 Conforme chamou atenção Lasmar (inf.pessoal), essa é a grande discussão: se os ancestrais rionegrinos seriam ou não , outros. Lasmar trabalhou com a hipótese de que seriam consangüíneos/agnatos. Se eles são outros, são de outra forma, e não da forma canônica amazônica.

19 Segundo Viveiros de Castro, mesmo quando almas ou suas reificações onomásticas tão comuns na Amazônia vêm do interior do socius, então nesse caso circulariam por canais distintos daqueles por onde circulam as substâncias corporais: pondo-se os avós ou os tios cruzados como nominadores, por exemplo. Que seriam parentes nunca incluídos no círculo de abstinência por doença que define a unidade de comunhão e produção de corpos. O autor se refere à metamorfose e ao devir míticos (regime de multiplicidade qualitativa) a partir de onde aquela transparência absoluta se bifurca em uma invisibilidade (a alma) e uma opacidade (o corpo) relativas (relativas porque reversíveis), de onde o parentesco humano atual provém, mas ao qual não deve jamais retornar. Porque pode sempre retornar ali, à revelia do socius. Daí o esforço manifesto em dispositivos como a couvade (2002: 444).

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É apenas como um dos pólos de um regime dual de socialidade (das virtualidades que condicionam a agência humana e polarizam o campo das relações sociais) que está implicada a definição do grupo agnático como uma entidade monolítica - separada de entidades análogas por descendência diferencial, mas implicitamente ligada a estas por aliança matrimonial; ou descendência pensada como consangüinidade pura, afinidade essencialmente sob o modo da potencialidade; ou ainda, afinidade miticamente dada. No outro pólo (ou na linha descendente) está a afinidade enquanto finalizada, efetiva e, portanto, dissolvida na cognação (os afins sem afinidade) (Viveiros de Castro, 2002: 403). Andrello (2006: 407) também sintetiza a interpretação do mito de origem tukano a partir desse diagrama, anteriormente proposto por Lévi-Strauss.

Segundo Viveiros de Castro (2002), relações rituais estabelecidas para além da afinidade cognática apresentam atributos que ternarizam a oposição entre consangüinidade e afinidade. Esses terceiros incluídos20 são, ainda, atualizações singulares da potencialidade (idem: 161) ou são os afins potenciais21 enquanto categoria coletiva, que aparecem como termos mediadores entre parentes e inimigos, co-residentes e estrangeiros (posições tomadas em seu aspecto sociocêntrico) - outros coletivos com quem se travam relações determinadas de trocas simbólicas (incluam elas violência, reciprocidade negativa, que implicam uso positivo e necessário da alteridade).22 Regimes dependentes da captura canibal de relações exteriores, pois o sentido é escasso e está sempre alhures. Os afins potenciais são ponte a ligar duas fases da socialidade. A primeira seria a de obter esposas, questão que pode ser resolvida em casa para muitas das sociedades: o regime da coexistência extensiva, totalidades imaginárias fechadas, do mundo ideal de parentelas endógamas. A outra fase corresponderia a uma estrutura simbólica aberta e intensiva, comandada pelo exterior, de onde vem a morte - e também o sentido e, assim, a vida (2002c: 174).

20 Em geral esses terceiros incluídos são testemunhos do trabalho de ternarização ou significação da oposição formal entre consangüinidade e afinidade, e operam a mediação entre o mesmo e o outro, o interior e o exterior, o parente e o inimigo, o individual e coletivo, os vivos e os mortos. São soluções específicas para o problema da afinidade, são efetuações complexas da afinidade potencial, cristalizações rituais e políticas dessas categorias.

21 Se o parentesco e afinidade efetiva funcionam na lógica egocêntrica, a afinidade potencial qualifica relações genéricas.

22 Viveiros de Castro segue no exercício de “extrair todas as consequências etnográficas possíveis dessa idéia da afinidade como princípio dominante” (idem: 412) e opta por chamar de afinidade potencial com vistas a distinguir afinidade como valor genérico e como manifestação particular do nexo de parentesco, a dimensão de virtualidade de que o parentesco é o processo de atualização. Relações que evocam um mesmo fundo de valores e disposições e se exprimem todas num simbolismo comum, declinadas em um idioma de afinidade.

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Para o antropólogo, a nominação é pensada como o oposto dos regimes de efetuação de pessoas e grupos em processos de aparentamento (como a couvade, ou a consanguinização de afins pelo casamento e co-residência). Regimes de alteração se conectariam em princípio a processos de desconsubstanciação, próprios do conhecimento xamânico.

Sztutman (2005), por sua vez, mostra a complexidade da convergência entre xamanismo e chefia, desconsubstanciação e substanciação. Complexidade que envolve a posição dos xamãs, entre funções de fuga ou pulverização, de vetor libertário, e posições políticas como a chefia. - posição significativamente variável no ambiente amazônico. O autor se pergunta como, sob agência de líderes rituais e xamânicos, na irredutibilidade das multiplicidades, constituem-se unidades, ainda que de estabilidades variáveis. Toda essa discussão se dá em torno de redes de sujeitos que se definem na interface entre estrutura social e cosmologia, entre política cósmica e política dos homens. Quem são essas pessoas com capacidades de se apropriar de qualidades do exterior, do cosmos ou do mundo do inimigo, geralmente guerreiros, xamãs e profetas (2005: 81)? Quais posições elas ocupam nas redes de compadrio, nominação etc. situadas além do parentesco e que envolvem afinidade potencial? Estariam estas capacidades eventualmente distribuídas entre todos os membros da sociedade? Como bem disse tal autor, é necessário perguntar- se sobre quem são os guerreiros, xamãs e profetas de uma dada sociedade e de que modo eles se constituem, ali, enquanto pessoas magnificadas, sujeitos diferenciados, personificações de certa agência.

Ao criticar a generalização do modelo do perspectivismo na Amazônia e o idioma da predação para a região do Rio Negro, S. Hugh-Jones defende a definição de modelos locais, em detrimento das sínteses gerais, a partir da descrição e análise das nuances etnográficas regionais. Hugh-Jones, então, procura trazer informações etnográficas adicionais para mostrar as transformações possíveis e locais - no alto rio Negro - dos modelos gerais propostos por Viveiros de Castro. Proponho uma participação nessa discussão, a partir da idéia de expansão de predomínios agnáticos apresentada mais abaixo, noção de movimento cosmopolítico desvelado das redes de sujeitos e saberes altorionegrinos, já descritas por Cabalzar (2008) no âmbito do alto rio Tiquié, região também em foco nesta tese.

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1.3 Anaconda e ancestralidade difusa nos objetos altorinegrinos (capacidades