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Toda qualidade de energia provém de algum lugar, mesmo que não linear. Gostaria de ir contando de minhas facetas aos poucos, dando vida aos detalhes do meu arquétipo sempre que possível, valorizando essa mesma narrativa em que estamos todos imersos – inclusive eu. De bufão tenho minhas tristezas e contradições. E é desse tempo da minha existência que quero falar. De como de dentro das minhas próprias deficiências é que foram brotando meus mais merecidos gestos de deboche e aceitação.

Nasci deficiente. E foi numa época bem específica: na Idade Média. Onde mulheres que sabiam de ervas e gostavam de estudar – vale lembrar que muitas se convertiam à vida religiosa por amarem os livros mais que os homens – eram queimadas na fogueira ou enforcadas como hereges. Nascer deficiente é diferente de tornar-se: a gente já aceita de saída que está em desvantagem, isso torna tudo um pouco mais lúdico sempre que possível e um pouco menos triste do que já é.

Naquela época, ainda me lembro, um bufão seria tão melhor sucedido quanto mais deformado ele fosse: quanto mais corcunda, manco ou narigudo fosse, mais chances tinha de ser escolhido por um rei: isso significava status, não duvidem. O que poderia significar a sorte grande: ter todo o poder emocional e nenhum poder político. Ser chamado para divertir celebridades políticas em jantares onde se selavam grandes acordos e ser apenas testemunha dos fatos. Nunca me lembro de ter sido perguntado a mim o que eu achava de vantajoso ou não sobre essa comunhão financeira ou aquele casamento de terras – eu era chamado apenas para provar bebidas alcoólicas antes de qualquer um para assegurar o não envenenamento do rei e o brinde oficial de alguma aliança financeiramente favorável a ambas as famílias envolvidas nos contratos.

Alarcon113, o dramaturgo, foi dessas personalidades, que reunia tanto qualidades bufônicas como artista apadrinhado da realeza – que, ainda com seus

113 Alarcon, dramaturgo espanhol que, agraciado com um mecenas da corte que financiava a escrita de suas obras de teatro, teve um percurso similar a autores como Shakespeare e Molière, que eternizaram histórias significativas presentes apenas na oralidade até então. Tinha algumas deficiências corporais, entre elas uma considerável corcunda, que o colocava numa condição muito similar a um bufão. Algumas reflexões sobre o bufão surgiram após reler “O narrador”, de Walter

atributos causando-lhe alguns obstáculos sociais e preconceitos, escreveu muitas peças encomendadas. Fazendo a transição entre o mundo da Arte da Memória dos narradores orais para a imprensa das ideias que prometia eternizar obras, Desconsiderando aqui, que interpretar obras, sempre irá depender do repertório de imagens e sensações de cada artista, ou seja, varia inevitavelmente, por isso tem vida Mas não fui o único, muitos foram vítimas de abusos no trabalho: às vezes a feiura e as deficiências não me bastaram. Além de ser risível fisicamente, tínhamos que ter qualidades outras como piadas e saber outras artes como malabarismos, mágicas e tudo que pudesse divertir a aborrecida e entediada corte, sem problemas reais e muitos problemas existenciais - abstratos; que naquela época, não tinha especialista da elite que os tratasse tal como os que existem hoje. E pensar que ter sorte, era não estar largado no meio de qualquer praça, fazendo parte de alguma companhia mambembe que nos aceitasse em viagem, sem sermos considerados um estorvo. Talvez fazendo os prólogos das comédias, como risíveis mestres de cerimônias, ou a contraregragem das obras dos personagens cômicos que passavam como ofício de pai para filho, na Commedia D’ell Arte114.

Foi uma das minhas encarnações mais duras, mas foi na qual mais amadureci, me tornei tão revoltado quanto compassivo. Abri mão da minha vaidade supérflua em nome da diversão alheia. Duvidei do que era aparente, me tornei mais humano, porque observei as pessoas em pequenos gestos e atitudes. Fiz tentativas de inserção para relacionar-me verdadeiramente com as outras pessoas, superei superficialidades e futilidades, aprendi a ter compaixão pelos sofrimentos significativos, não pela troca de favores ou vontade de agradar, mas pela coragem da dor. Mergulhei para dentro das almas, quando ouvi suas confissões mais difíceis. Virei ouvinte de segredos valiosos que de nada valiam quando alguém de status se invocava com minhas piadas e me mandava para a forca dos sem graças.

Sobrevivi às maldades da passagem dos anos e ressurgi nos circos. Mas, para os donos de circo que querem enriquecer às nossas custas, isso não compõe a menor diferença. Para eles, o que importa realmente é se somos feios e horrendos o suficiente para gerar estranhamento e as pessoas quererem nos ver por um breve

Benjamin, nas aulas do Prof. Guilherme do Val Toledo Prado, na UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas – relembrando assim, aulas de Teoria do Teatro feitas com a Profa. Ana Icó, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, no primeiro semestre de 1997.

flash – e pagar por isso. Desde mulheres barbadas, homens lagarta sem pernas ou braços, gêmeas com partes do corpo inseparáveis ou coladas, homens-elefante - tudo é tão desvio como desejo comerciável. O que antes só circulava em praças passou a apertar-se em cabines fisgando distorções e perversões. Inaugurávamos o expressionismo da crueldade. Alimentávamos as aflições da normalidade e as deformações de caráter com a nossa existência. Para isso existia um nome bonito, que podia ser até o nome de um estilo musical, ou um novo modo de ser ou vestir: éramos os freaks115. Tudo que era diferente e bizarro recebia esse nome – e, para a

maioria tinha todo o valor financeiro e nenhum valor humano.

Terminada nossa carreira deveríamos torcer para que alguma alma se compadecesse de nós, pois todo o dinheiro que ajudávamos a arrecadar, a maior parte das vezes não era nosso, e éramos condenados a viver na solidão sem nenhuma segurança à velhice; e sem nenhum reconhecimento de profissão todos os nossos últimos dias. Como Kaspar Hauser116 às avessas, deixados ao léu no meio da praça, sem conseguirmos mais nos comunicar tão bem, com uma carta de indicação que não sabíamos ler sozinhos, à espera de alguém que pudesse compreender o que fazíamos ali sem destino ou objetivo: incomunicáveis e improdutivos para a sociedade predatória.

Em contrapartida, nos unimos, tivemos vida sexual e amorosa muito intensa, mesmo que todos duvidassem. Alguns de nós tivemos filhos, com mais de uma parceira ou parceiro. As pessoas tinham curiosidades sobre o que podíamos fazer, por sermos almas carentes, em suas visões restritas, ou por não termos partes do corpo como todo mundo – isso provavelmente, teria desenvolvido habilidades em outras partes que proporcionavam mais prazer alheio e, apesar de todo o desprezo da maioria, esperavam que fôssemos mais sensíveis que os demais e tivéssemos dispostos a dar o que poucas vezes recebemos – afeto desinteressado.

115 Freaks foi uma expressão criada para dizer sobre o horror e estranhamento que se mesclava com o constrangimento e perversidade, vivenciados pelos espectadores, provocada pela espetacularização da deficiência: isso incluía desde a Mulher Barbada até o Homem- elefante; tudo que não se sabia se era uma limitação de nascimento, má formação genética ou doença.

116 Personagem do filme “O enigma de Kaspar Hauser”, dirigido por Werner Herzog, que conta a história verídica de uma pessoa que foi criada longe da civilização, permanecendo maior parte da sua vida, principalmente infância, encerrado num quarto, sem contato humano, comprometendo toda a aquisição da linguagem e, por consequência, toda possibilidade de familiarização do que é social, com todos os conteúdos emocionais que isto implica.

Na atualidade, inventaram nomes mais amenos – ao invés de deficientes, nos chamam portadores de necessidades especiais. No entanto, muitos continuam estacionando os carros só um minutinho nas vagas que são específicas para nós e deveriam estar garantidas para o nosso merecido descanso ou encurtada distância. Outros continuam sem planejar vias de acesso, banheiros mais espaçosos para que possamos depois de longo desafio de enfrentamentos, assistir uma peça de teatro ou filme, como qualquer outro ser humano. A nossa baixa incidência ou impacto de mercado consumidor não justifica sensibilidades deste tipo. Portadores de necessidades especiais parece soar mais um pleonasmo do que uma mudança de conduta. É como alguém que comunica uma morte dizendo “fulano subiu no telhado” ou “sicrano vestiu o paletó de madeira” - e isso, por si só, pudesse diminuir a dor da perda de uma convivência com um ente querido. Isso sim, me parece ridículo. Eu bufão, não sou ridículo, sou risível, bem humorado e tiro de letra os preconceitos. Tenho meus momentos de solidão e tristeza, mas não sei bem porque, me parecem mais verdadeiros: a causa é real - despertamos a maldade alheia, com a autorização silenciosa da sociedade, na maior parte das vezes.

A maioria projeta frustrações em nós: como se a aparência fosse um critério de desempate de algum valor superior. Como se nosso defeito diminuísse os defeitos alheios. Como se os defeitos físicos fossem mais importantes do que os morais ou espirituais. Como se o mundo invisível não fosse tão importante quanto o visível. Como se ser diferente precisasse permissão e não incluísse e subentendesse respeito sempre. Mesmo assim, sou grato a tudo que aprendi sobre humanidade, sem tirar nenhuma vírgula. A esmagadora maioria age como se estivessem ilesos e garantidos de qualquer acidente e esperam uma fatalidade para começar a agir com humildade: sinto-me um privilegiado.

De Frankenstein117, obra inacabada e marginal, todo inventado e cheio de fantasias entre alas temáticas e sambas enredos sem protesto, passei a sair em festas e cortejos, como se tudo que todos tem preconceito, pudesse acabar num grande Carnaval – uma festa religiosa travestida de puta quando a revolução não cabe no suporte midiático. Mãe solteira das deformações, casada forçosamente com

117 Personagem também conhecido como Prometeu moderno, foi criado por Mary Shelley e

transformado em filmes por vários cineastas, também representa o conflito entre o que é natural e científico, pois é a história de um ser criado artificialmente à semelhança de um ser humano.

o Rei Momo118 que, geralmente, anda por aí, solteiro e beberrão em sua posse anual da alegria e alienação. Quem se importa não é? Ano que vem tem mais. O Papa dos Loucos119 agora passa impune no meio da rua e não sobrou nenhum sacerdote para coroá-lo. A deformação nunca será uma possibilidade de mudança, pois a projeção individual no outro sobrecarrega o coletivo – e faz da liberdade loucura transtornada de vazamentos impessoais. A culpa de uma injustiça cometida é de todos e o espaço público parece não pertencer a ninguém no fim das contas – anestesiados pela indústria farmacêutica dos sintomas silenciados e todos os efeitos colaterais misturados, sem cuidado orgânico nenhum.

O Carnaval, de festa popular, manifestação cultural e protesto político, tornou- se o escape do que a indústria farmacêutica tenta conter da loucura do resto do ano – e eu, sou testemunha disso, mas minha palavra não vale muita coisa.

118 Personagem popularizado pelo Carnaval que é uma hipótese de ressurgimento simbólico do Papa dos Loucos, no entanto, não cumpre a mesma função, pois está em espaço público.

119 O Papa dos Loucos era eleito entre todos os papas para representar tudo que era proibido no sacerdócio. Era parte da nominação decidida no coletivo de um ritual fechado, onde este eleito era autorizado a cometer tudo o que todos não podiam cometer em todo o resto do ano. Esse personagem desapareceu e com ele a possibilidade da integração da sombra do papel dos sacerdotes. (COURTINE, 2009)