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CAPÍTULO 2 – 2.1 BOBA: UMA LACUNA E ANTENA DE TRANSMISSÃO

2.2. Inverso do avesso

Figura 8: Foto de apresentação no 7º. SPA-USP

Foto: Maurício Maas

Ao que se refere ao Louco, para se transitar entre os campos/ lâminas e sua soma de todos os outros arcanos, personificada no percurso que vai do número zero ao arcano vinte e dois; e todos os seus intervalos entre as lâminas - é preciso desenvolver ampla gama de capacidade de lidar com o passageiro. A somatória95 dificilmente se dá de uma vez, ela é uma combinação energética que define um campo temporário de possíveis atuações e influências, ampliando a leitura de uma

94 Para o leitor atento à lógica estética de um trabalho será possível notar que a arte e a vida se esbarram o tempo todo nesta pesquisa, prática explicitada pela escolha do formato sugerido onde a carta/arcano sofre influência de aplicativos que sugerem efeitos especiais sobre a foto que foi tirada quando estava prestes a estar em cena, ou já me encontrava improvisando – seguido da foto sem efeitos, tornando a revelação do processo criativo um desdobramento da vida real. A linearidade propõe que isto seja uma ordem instituída, mas eu o convido a refletir se, em todos os capítulos isto está tão puramente separado ou, a estética vai se misturando com o suposto real, deixando de importar tanto se o que falamos foi real ou a arte é uma forma de fabular que cura o mundo simbólico, pois nos reinventamos ali, na mesma improvisação, dentro de outro tempo: o da criação de si: a arte com treino para vida. Esse princípio estético presente na criação das cartas também está presente no filme de Eduardo Coutinho, “Jogo de cena”, no qual sobrepõe as histórias verídicas na boca das atrizes e vice-versa: onde o autobiográfico se funde com o ficcional e se privilegia o que a história causa e não separar o que é vida e o que é arte.

95O conceito de somatória aqui é próximo ao de sinergia, isto é, onde um mais um não dá dois, pode dar três, ou muito mais, pois é uma nova composição, com outras características que não servem a uma linearidade de comportamento. Para o leitor terá que ser possível visualizar que o Louco, com número vinte e dois, poderá também expressar a somatória, não linear, entre todos os arcanos presentes no intervalo entre zero e vinte e dois e, ao mesmo tempo, qualquer soma entre um arcano e outro, em sequência ou não, ou quaisquer combinações presentes no intervalo entre arcanos somados de diversas formas, mas que também formam parte e estão presentes na linearidade proposta pelo tarot – e desconstruída pela figura do Louco. Ele é a própria personificação da prática da cartomancia: ele é essa força de variação na interpretação e na combinação infinita das cartas.

carta para o olhar de uma cartomancia96, que faz com que se perceba um campo de variantes por atração.

Esse leque de fatores e informações intuitivas é expresso pela somatória parcial possível e temporária que fica delineada por uma combinação de arcanos – os aromas ajudam nesse processo, ou seja, se estudo vários aromas para tentar mapear as variantes e as afinidades de um campo estou me aprofundando no estudo deste arcano.

Algumas variantes foram interessantes para este processo em especial: já usei o espaço como uma variante, uma postura corporal de algum arcano para disparar algum movimento, e os aromas de patchouli e alecrim. Os diferentes espaços também aprofundaram percepções diferenciadas sobre o campo trabalhado.

Essa carta inspirada no arcano Louco, com parte do bumbum de fora, fez parte de muitas improvisações, com a intenção de investigar o que poderia surgir de um elemento da imagem do arcano como disparador de uma cena. E na minha lombar, em diferentes contextos escrevi as palavras: passagem, coringa, boba, deusa, diva – tudo na tentativa de captar o clima que já estava instaurado nas escolhas estéticas que eu já havia feito em diálogo sensível com os ambientes que me apresentei.

O patchouli contribuiu para que eu percebesse que a inclusão do ambiente “espaço de apresentação”, como lugar físico mesmo, contava uma história e tinha energias que diziam respeito ao aroma que eu tinha escolhido para estudar e usar no dia das apresentações, ele me sinalizou o quanto confiar mais na sincronicidade e/ou ativá-la – caso eu já conhecesse o lugar de apresentação – pois aprofundava minha pesquisa poética de disponibilidade perante o imprevisto também ter passado pela experiência de ter alguns dados familiarizados anteriormente, para poder comparar sensações com quando não os temos. O patchouli é um aroma que associo a autoestima manifestada por fixar a prática de nossos objetivos não importando o que aconteça – é um aroma denso, de pouca volatilidade, fazendo que nos conectemos a permanência de atos relevantes, de crermos em nossas buscas e

96Cartomancia, conceito já explicado na nota 9, aqui aparece como narrativa que, com poucos elementos em muitas combinações, gera diversas possibilidades de interpretação.

de nos acionarmos a nós mesmos com todos nossos recursos para continuar negociando a energia do universo para que ele nos dê o que necessitamos para conseguir o que precisamos nas aprendizagens: não no espírito – corpo mental, mas também na matéria, no mundo físico e visível. Isso inclui deparar-se com o como lidamos com as dificuldades em administrar a nossa própria autoestima e se isso está alinhado ou não com as nossas crenças e princípios éticos, inclusive em momentos desafiadores.

Na ocasião que usei patchouli, a minha apresentação foi num espaço em que havia um tabuleiro desenhado no chão, formado por azulejos brancos e pretos alternados, onde criei um cenário que propunha um jogo – o que melhor que um jogo para dar a possibilidade de todos se reposicionarem no lúdico tal como na vida? O jogo como um modo de, pela vivência, mudar antigos padrões perante uma brincadeira e através dela. Nesse dia, a pessoa que emprestava o espaço, sabia que eu estava no evento, mas não tinha respeito por práticas artísticas diferenciadas. Dificultou ensaios e demonstrou todo o tempo incômodo, por termos que circular no espaço, para entender como a dinâmica da improvisação aconteceria. O patchouli me ajudou que eu me reposicionasse na seriedade profissional, sem precisar dar importância a posturas imaturas que não deveriam afetar a minha prática naquele momento – pois elas eram fruto das escolhas que eu tinha feito como pessoa, do tipo de justiça que eu acreditava no mundo; e não para corresponder a aprovações ou expectativas voluntariosas e temporárias.

Então, por exemplo, o fato de eu fazer cenas com meu filho, que não era um adulto e profissional da área, dava brechas para este tipo de atitude alheia. De qualquer forma, dar brechas para esse tipo de atitude não justificava tal impostura adulta, pois mal sabia ele o quanto tenho aprendido com meu filho sobre interpretação - justamente porque, como não profissional da área, ele não tem os mesmos vícios que eu do ofício; e o quanto ver ele em cena tem despertado reflexão do que é estético e sensível no mundo das artes, justamente pelo fato dele não ser um artista de formação – criando fricções espontâneas entre o real e o artificial, fundamentais também para a provocação de um trabalho autobiográfico que almejasse e buscasse qualidade e profundidade estética.

Aproveito para deixar claro aqui, que os aromas nunca me safaram de coisas que eu precisava enfrentar, eles me mostraram o que era importante e singular lidar para os meus amadurecimentos. E é nesse sentido que eles são milagrosos – no sentido etimológico da palavra “mudança de percepção”, não no sentido de que muitas pessoas esperam que ele desapareça com os nossos problemas simplesmente pelo fato de terem uma vibração mais alta que a nossa. A vibração mais alta sempre ajuda que as superações ocorram – e esse é o seu papel, não é isentar a pessoa do mundo, não é um calmante sintético que elimina a dor sem questionar a origem ou natureza do problema, para que assim ele realmente possa ser liberado, compreendido e integrado à psique. Ela auxilia que percebamos que não precisamos nos equiparar a uma baixa vibracional porque o outro tem limitações emocionais – isso não é compaixão, é vício de autopiedade para comoção alheia.

Este aroma tem alto teor de patchoulol, um componente químico que tem uma configuração toda relacional onde as ramificações orgânicas se comportam todas de forma espelhada, devolvendo visualmente uma forma de se relacionar com o mundo – tal como mostra a molécula na figura abaixo. Molécula química que, combinada com componentes como cariofileno também presente nesse aroma – que se bem observado forma um coração no seu desenho principal - aumentam nossa disposição para relacionamentos afetivos, ou seja, o patchouli é afrodisíaco – me permitam um esclarecimento nesse ponto, Afrodite97 não é a deusa do sexo, mas dos relacionamentos afetivos – e é isso que o patchouli consegue ativar: uma observação de como lidamos com a nossa afetividade, se ela está ou não disponível para as outras pessoas. Nomeio aqui a afetividade não como a certeza de um carinho recíproco, mas a disposição para estabelecer um espaço de negociação com diferenças e saber respeitar uma opinião diversa no outro, estabelecendo isso com o prazer de quem sabe que ser diferente é bom também para exercitar e sentir o mais genuíno da empatia.

97 A melhor leitura que tive sobre essa deusa grega, que me trouxe a percepção de que ela é uma deusa muito mais conectada com a inquietação da necessidade da presença do vínculo afetivo e não da sexualidade, está no livro “A deusa interior”, onde os autores, ao descreverem o relacionamento contraditório, fragmentado e compensador de carências que ela tem ao alternar Ares (deus da guerra) e Hefaístos (deus ferreiro e coxo) como parceiros, nunca conseguindo integrar as características de ambos em um só parceiro, explicitando a sombra que ela mesma se condena. (WOOLGER, 1989)

Lembro-me nessa ocasião de alguém do público ter comentado o final da cena: em que meu filho e eu nos separávamos por uma porta de vidro e cada um ia para o seu lado; e da pessoa ter me perguntado se ficava tudo bem depois das cenas e que, de qualquer maneira ela achava que essa fase que meu filho ia entrar talvez fosse difícil para mim e para ele, pois a adolescência sempre implica um grau de separação. É isso que o patchouli faz: mostra os desafios emocionais em relação a nossa autoestima – se estamos firmando nossos objetivos mais íntimos no que realmente desejamos para nós e para o mundo; se tem prazer e sentido no que estamos estabelecendo como comunicação afetiva com o mundo, que se reverte para nós como identificação e reconhecimento sem expectativas artificiais ou exigentes. Expectativas todo mundo tem, o que nos diferenciaria nesta sensação em tornar-se salutar, me parece, é o como uma decepção é direcionada: ataco, me culpo ou integro como aprendizagem? – e isso faria toda a diferença. É isso que o patchouli faz: mostra os desafios emocionais em relação a nossa autoestima – se estamos firmando nossos objetivos mais íntimos no que realmente desejamos para nós e para o mundo; se tem prazer e sentido no que estamos estabelecendo como comunicação afetiva com o mundo, que se reverte para nós como identificação e reconhecimento sem expectativas artificiais ou exigentes. Afrodisíaco inclusive no sentido de respeitar a escolha do outro, ainda que não coincida com a sua, fortalecendo laços de afeto.

Afinal, expectativas todo mundo tem, o que nos diferenciaria nesta sensação em tornar-se salutar, me parece, é o como uma decepção é direcionada: ataco, me culpo ou integro como aprendizagem? – e isso faria toda a diferença, no que tange à prática da afetividade: aceitar essas variantes e integrá-las.

Charles Chaplin, artista que relaciono com este aroma reúne algumas características que podemos associar a este contexto, como personalidade, habilidades e percurso de vida, isso inclui talentos e dificuldades. Não pôde dedicar- se o suficiente à sua paternidade, para isso filmou “O garoto”, que é uma declaração de tudo que talvez ele tivesse feito na vida real se as circunstâncias tivessem sido mais favoráveis. Também aglomerava muitas qualidades, pois interpretava e dirigia – desenvolvendo com o próprio trabalho artístico uma capacidade de colocar-se no lugar do outro através da precisão da linguagem – chegando ao ponto de, para

realizar uma cena, filmá-la de trás para frente para, quando colocada em ordem inversa, realizar o que somente seria possível pelo seu corpo no cinema, mas nunca na vida real. Pensar sobre as possibilidades inusitadas da linguagem para se realizar o que se deseja também é um exercício de alteridade.

Figura 9: Molécula de cariofileno.

Foto Ilustrativa

Figura 10: Molécula de patchoulol.

Foto Ilustrativa

Figura 11: planta de patchouli.

Foto Ilustrativa

Já o aroma de alecrim, eu utilizei com intenção precisa e bastante direcionada para o estudo desta persona98, o Joker; porque quando o usei, estava de regresso99

98 É bastante agradável e conveniente para este trabalho pensarmos em persona como os gregos pensavam este conceito, conectando – o à função da máscara – de algo que, apesar de estar por trás de um objeto ou linguagem, reverbera; e a sua reverberação é mais significativa que a própria linguagem, pois se torna presente na cultura compartilhada por um grupo de pessoas. Também sempre atribuo a esse termo a relação direta de que a tradução da palavra pessoa para o espanhol é

persona, trazendo a reflexão de que muito possivelmente o que está expresso na linguagem pode

revelar bastante do ponto de vista do artista na vida ao que se refere aos discursos implícitos, ou seja, não é porque um ator escolhe fazer um vilão que ele é mau, mas o modo como escolhe fazer o vilão, diz dele, de como ele quer mostrar ou não as vantagens e desvantagens de que o público se torne um vilão; ou mesmo o fato dele se divertir com um personagem mau pode purgar muitos dos sentimentos de quem o assiste, associando o teatro como uma prática de catarse, o que já estava indicado no teatro grego.

99 Participei de um evento que reunia trabalhos de pesquisa em São Paulo, intitulado “7º.SPA –ECA- USP” - (Seminário de Pesquisas em Andamento da USP), em 2017.

a escola em que fiz a minha graduação – e que me trazia muitas lembranças de quem sou e de como escolhi fazer minha trajetória como artista. Visitar a ECA-USP – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - não me põe nostálgica, me põe no trilho da minha vida – me faz lembrar quem sou a partir das ações que tive no meu percurso e das pessoas que escolhi conhecer melhor, que me ensinaram muitas coisas – uma delas foi usar o conhecimento que tenho disponível para improvisar dando aulas. Estes são todos conteúdos das propriedades do alecrim, que etimologicamente, quer dizer alegria. Se o limoneno, presente nos aromas cítricos, traz alegria a partir da sensação de liberdade; o alecrim é a partir da recordação de ser quem se é – por isso ele bom para a memória e para processos degenerativos do cérebro.

O alecrim que usei, foi o quimiotipo cineol, com concentrações de canfora – que é bom para dor, principalmente de atletas, que exercitam diariamente delinear a própria musculatura a partir das estruturas e recursos energéticos presentes no seu corpo. Pois então, é isso que o alecrim faz, diminuir a dor de ser quem se é no contato com o mundo, acreditando que os desafios se colocam na nossa vida para desenvolver o que nos é identitário, valorizando a musculatura da nossa personalidade.

Além disso, o que me chama atenção no alecrim, observando sua composição química, é que a imagem formada pela molécula de cineol traz como informação visual pelas ramificações de CH3, de que não importa qual caminho foi feito, nossas decisões sempre nos conduzem a um encontro com a gente mesmo, com nossas escolhas, com o como lidamos com o que o outro traz como informação, reação ou parceria – nossas atitudes, quando refletimos sobre elas, sempre nos levam de volta para o que é ético para nós. Tal como o cineol que, em espelhamento, desdobra do CH3 com um par de opostos de H3C, ramificamos nosso próprio espelhamento, ou seja, mesmo quando aos olhos de outros não parecemos equilibrados e/ou corretos, geralmente estamos no empenho do nosso melhor, em busca do nosso processo de individuação.

Nessa apresentação, eu lembro-me que uma pessoa do público presente, se impressionou com o fato de que eu dançava uma dança muito feminina, usando véu e com um capuz preto na cara, só com os olhos à mostra. Foi ele, quem assistiu e

não eu quem criei sozinha, que teve a percepção clara sobre uma busca minha muito genuína de dentro do meu trabalho – a de contrapor, propositalmente, paradoxos, que é uma característica forte da minha escolha poética, em alguns momentos; intensificar contradições para aprofundar uma sensação ou conceito que está em jogo na improvisação e na apreciação do outro.

É assim que estudo os óleos essenciais, por atração: para o que ele é bom? Se a missão dele no universo é curar, ele atrai aquilo que ele pode curar. Eles possuem em sua dinâmica interna um princípio orgânico autorregulador, tal como o sonho – ele só atrai o que dá conta.

Figura 12: Molécula de cineol

Figura Ilustrativa

Figura 13: Planta alecrim

Foto Ilustrativa

Relato aqui, sobre os óleos essenciais que foram mais significativos para mim, mas, de qualquer forma, o ato de repetir o ritual de escrever cada vez uma palavra diferente na proposta de uma mesma improvisação estruturada, me fez pensar sobre a flexibilidade que a energia do arcano do Louco carrega em si, e o quanto de possibilidade, realmente infinitas ele tem, isto é, cada vez que eu improvisava e escrevia algo na minha lombar, eu mapeava e ampliava um campo energético de possibilidades. E, quanto mais aprofundava um aroma, mais precisamente conseguia identificar semelhanças e dizer para o que ele é bom a partir das vivências corporais. Dançar, cantar, interpretar – tal como macerar ervas no preparo de um chá, intencionalizando e ativando suas propriedades por murmúrios – amplia o campo energético dos aromas. E também, a variação de um elemento na improvisação desperta que eu compreenda no corpo, a variação energética na carta do Louco e todas as suas variantes.

Figura 14: “Passagem”

Foto Lauro Mota

Figura15: “oCUpação”

Foto: Marianne Dias

Figura 16: “Diva”