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Com a palavra, o Louco em que todos nós, habita

CAPÍTULO 1 Primeiros rastros

1.5. Com a palavra, o Louco em que todos nós, habita

No tempo em que só existiam sementes e estrelas - e eu surgi como um pontinho de luz como todos insistem em acreditar sem provar.

Pontinho de luz é meio patético para um nascimento e meio romântico demais. Pois é, acreditem: já fui chamado de pontinho de luz sim, mas também até de explosão. Justo eu, que não gosto de limites, nem nomes: já me chamaram de Big Bang, sem sequer saberem se quero ser homem ou mulher, ou um personagem de faroeste – com uma intimidade que não muito me agrada. Será que acreditam que eu poderia ser dessas pessoas que falam: “Essa cidade é muito pequena para nós dois?” Saberem assim de mim sem sequer me conhecerem. Eu poderia ser o autor da frase: “Decifra-me ou devoro-te”; mas prefiro: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”. Na primeira, a (ir) responsabilidade do outro cabe a mim – quer dizer, se o outro não souber, eu vou ter que devorá-lo, mesmo que eu não queira, sabe; na segunda, posso me lançar para dentro do baralho e brincar entre um planeta e outro, com todas as histórias que um ser humano já imaginou e ainda pode imaginar.

Muitos me dizem “Louco”, outros me chamam Mat. Sempre para dizer que não caibo na suposta normalidade, no que a sociedade espera de uma pessoa equilibrada e encarnada. Bom, para definitivos esclarecimentos, insisto em dizer: não sou deste mundo, nem deste planeta ou dimensão, meus caros. Aceitem isso com tranquilidade – como quem mora num lugar onde existem tanto formigas como elefantes - e a conversa ficará mais interessante e criativa, tanto para mim como para vocês. Sem bloqueios ou reservas de preconceito tudo flui melhor. Observem ainda, que se de vocês não precisasse, cá não estaria. Tirem da cabeça que seres de outro mundo são bons ou maus, somos uma grande sinergia, onde o encontro

com o outro tem o fim de trazer à tona algo que ainda não existia desta forma e como tal – isso é vida.

Só essa energia essencial é capaz de dar início a DNAs, imagens fractais, plantas, flores, sistemas solares, galáxias e bebês. Lá onde o que ainda não se imaginou, nasce, vibra e reverbera com tal intensidade e com tudo que é genuíno nela – se retroalimentando para além das linearidades, multiplicando assim, os fractais44 – a beleza das matrizes energéticas do amor organizado.

Alguns já descobrem fácil que eu sou a única imagem que sobreviveu nos arcanos menores, deixando evidente que a imagem é um recurso da memória sensorial muito importante para a reconexão da nossa jornada e que, o fato de eu poder transitar entre os naipes diz do quanto também é fundamental percebermos nossas próprias transformações da matéria em relação às nossas atitudes perante o mesmo tipo de circunstância – isso é evoluir. Sou imprevisível, mas sou direto: quem nunca reviveu situações-problemas muito similares e conseguiu corresponder de maneira diversa e criativa – é disto que estou falando: quando um desafio se repete e de fato nos flexibilizamos para dizer o mesmo de outra maneira por energia vital e não contrariedade; ou então, não nos incomodamos de mudar de ideia e rever nosso caminho.

E é por isso, pela evidente importância dessa flexibilidade perante a toda possível vida manifesta visível ou invisível que, quanto aos padrões, aceito no máximo números, mesmo assim sou daqueles seres ilimitados, simpatizantes do infinito e das variadas possibilidades. Alguns dizem que não sei escolher ou que não tenho critério, eu gosto é de ampliar o intervalo entre os extremos para dizer da minha experiência criativa pelo vivenciado. Sou feito de criatividade em estado bruto e liberto de óbvias constâncias, sobrevivo no entre do imprevisível, naquele espaço de dúvida onde não sabemos o que fazer, no qual não existem respostas prontas, onde usamos toda nossa experiência para jogar atitudes condicionadas fora depois

44 Fractal é uma lógica matemática presente em tudo que foi gerado pela natureza, que revela o quão inteligente ela é de forma intuitiva. Entre alguns exemplos que gostaria de citar estão as imagens de um girassol, a íris do olho, o interior de uma concha de mar, nossa pele em perspectiva microscópica quando saudável e o nosso DNA. Conceito bastante explorado no curso de Tarot Fractal, ministrado por Marcelo Ribeiro dos Santos.

de tanta insistência descabida. Chamamos crise45 a maior oportunidade de nos livrar do mesmo que não funciona.

Sou um ponto fora do espaço onde os quatro elementos se unem para formar o éter e outras manifestações ainda inominadas. Sou a energia que dribla as experiências de quase morte, reacendendo a chama da roda das encarnações. Sou eu que convenço as Moiras46 a cortar ou não os fios do grande tear do mundo por breves sussurros. Sou o nó das constelações familiares que inflamou para que todos juntos buscassem o motivo que os une pelo amor incondicional e que nos faz encarnar na mesma família consanguínea, trazendo as aprendizagens pelo sentido da emoção verdadeira. Sou a lucidez do que tudo perderam para compreenderem que o fluxo da vida não é controlável.

Por isso, já tive muitas vidas: já fui bufão de todos os reis voluntariosos que pediam piadas em insônias da madrugada, xamã de todas as tribos de dentro da terra e de cima de todas as árvores, palhaço de todos os circos possíveis e impossíveis, professor de todas as escolas sem paredes e sem teto da vida, animal de todas as espécies deste planeta e de outros, bêbado de rua eternamente arrependido em não conseguir demonstrar o que sente de verdade vendo em cada ressaca uma iniciação, deficiente explorado em shows de horror apertado em cabines que alimentavam a normose às avessas da triste burguesia e cartomante cigana charlatã que lia baralho como linhas de mãos tortas e rogava pragas nos incrédulos passantes em lugar de dançar suas angústias. Já fui puta e já fui mãe. Já fui trapezista que se acreditava enforcado, sem saber do próprio potencial que nasce dessa própria humildade inconsciente. Fui sim e não nego: ladrão, bruxo, alquimista, perfumista e mágico de desaparecimentos do mundo visível. Já morri queimado como padre e enforcado como rei. Já fui numa única vida, criança para sempre. Já nasci velho de trás para frente. Não inverto valores, eu os subverto.

45 Considero que Hannah Arendt, ao criar este conceito, também entrou em contato com o princípio de flexibilidade presente na carta do Louco, ainda que ela não conhecesse ou gostasse de tarot. Conceito explorado e discutido, ampliando suas perspectivas cotidianas, nas aulas do Prof. José Sérgio de Carvalho na Faculdade de Educação da USP – Universidade de São Paulo.

46 As Moiras, na cultura grega; conhecidas como Parcas, na cultura romana; são três velhas videntes que cuidam do tear que representa a Roda das Encarnações. Fiam juntas frente o fuso e tem funções bem específicas: a primeira puxa o fio da vida; a segunda mede; e a terceira corta – decidindo quem no mundo real, vai viver ou morrer.

Venho à tona e me manifesto com maestria quando os encarnados pensam ser melhores do que são e quando destroem seu próprio planeta para dizerem que são poderosos; quando, em realidade, competem pela mesquinhez de todos os dias justificados e movidos pelo dinheiro digladiando suas autoestimas em mediocridades, perdendo tempo comparando-se com o outro e não consigo mesmo para assim, buscar evolução espiritual e espirituosa – não conseguem parar a competição e continuam agindo e reagindo automatizados pela agressividade sem colher nenhum aprendizado, vibrando pura ganância.

Eu sou a paz de se escolher tudo que podemos ser quando os outros não interferem nas nossas próprias expectativas. Quando o querer nasce da semente que mora dentro de um e de todos os corações do universo. Estou sempre presente quando passamos a admitir que somos feitos do melhor que podemos. Sou autenticidade. Sou inconsciente integrado: quando nossas atitudes revelam exatamente tudo que pronunciamos e anunciamos invocando paz interior através de nossas ações propositivas. Quando nossa fala apenas traduz nossa vibração, sem máscaras ou pompas de orgulho.

Sou a dança manifesta entre o mundo dos sonhos e a realidade do público que nos assiste com inúmeros pontos de intersecção e sem nenhuma explicação para todas as belas sincronicidades do caminho criativo. Sou a aceitação da morte em todo o momento de prazer absurdo no qual estamos completamente entregues à deriva diáfana e amorfa – energia de ritual de iniciação, concomitante a descuidados, onde estão desprevenidos, porém despertos mesmo de olhos fechados. Sou onde tudo começa mesmo quando não se crê que o tempo e o espaço são uma convenção que nada ajuda na descrição de uma sensação vivida em dilatação das percepções.

Sou tanto divertido quanto maligno, vivo em meio às contradições: o mundo paradoxal é o único que me amadurece temporariamente com vivacidade tão momentânea quanto verdadeira.

Tenho Quíron47 habitando em cada uma das minhas feridas risíveis e inconfessáveis: atos de delírio de todos os seres humanos de uma vez. Sou uma orgia de sensações tão profanas quanto profundas, disfarçada da falta de inteligência autorizada apenas e tão só pelo bom comportamento. Sou o medo assombroso da loucura que se torna predador da psique48 por falta de escuta. Não deixo de existir, apenas me escondo, sou como o poltergeist49 que cresce

proporcionalmente ao tamanho do seu medo: alimento-me das aflições não dançadas, das piadas não contadas e dos amores não ditos. Sou um carnaval de moléculas que elege o asno em todo ato crístico não reconhecido, que acolhe o ridículo do amor, celebrando-o em toda sua existência. Sou uma espécie de vibranium50, primeiro manifesto arquetípico, molécula energética primordial de toda

vida na Terra, que cura as doenças ligadas à sobrevivência logo no início. Sou antigo ancestral ‘psicologema’51 indignado com a falta de espaço para as tentativas humanas autosustentáveis da compaixão. Sou a personificação da ecologia que incansavelmente recomeça a polinização de tudo que já pensou perseverança afetiva e quis desistir de existir. Sou a parte animal que salta fases com maestria e é arisca aos anestésicos da vida cotidiana. Sou a vontade pura em integrar a sombra e diluir todo o abandono sentimental.

47 Quíron é o mito presente no arcano maior V, número cinco em romano, o Hierofante – que retrata o caminho do curador, que possui uma ferida que não cicatriza, mas se cura quando ajuda a amenizar a dor de alguém com um percurso similar. É possível perceber que, as pessoas que atendemos, tem problemáticas emocionais similares às nossas, estão no nosso campo morfogenético e aparecem na nossa vida quando superamos uma parte desse tema comum, mas ainda há algo a ser liberado por ambas as partes, o que acontece quando a empatia se dá, fazendo com que ambos os lados aceitem a sombra.

48 Clarissa Pinkola Éstes invoca um estudo do predador da psique quando analisa o conto Barba Azul no livro “Mulheres que correm com os lobos”, trazendo-me a reflexão que muito do que nos boicotamos do processo de individuação poderá coincidir com o medo de enlouquecer em contexto desconhecido pelo o fato de não sermos ensinadas a entrar em contato com o mundo selvagem de forma segura e criativa, valorizando a intuição. (ESTES, 1996)

49 Poltergeist, tal como no dicionário, fantasma, espírito ou manifestação sobrenatural – que também pode mover objetos no ar, mas que quando pensamos no filme de mesmo nome, traz uma imagem muito certeira de paranormalidade que se manifesta quando algo está fora de sintonia – no caso a TV, mas que também pode ser nosso próprio corpo. Quando desconectamos de atividades como dançar, contar piadas ou amar, muito frequentemente, passamos a não conseguir lidar com os excedentes energéticos mal direcionados do cotidiano – que solicita de nós respostas mais rápidas, por isso menos contemplativas.

50 No filme “Pantera Negra”, de Ryan Coogler, a cosmogonia que inicia o filme, fala de uma primeira molécula surgida no planeta chamada vibranium – que teria dado início a toda vida na Terra através de um meteorito.

51 Considera-se ‘psicologema’ uma força e/ou imagem arquetípica muito antiga e poderosa. (JUNG, 1998)

Sou o silêncio dos apaixonados e as trapalhadas e quiprocós52 presentes em

tudo que parece errado e é pura espontaneidade. Sou a beleza do estabanado que não se importa em tentar, pois é pura vontade de se relacionar: anda com o inconsciente para fora das bordas das boas maneiras, pois quer encantar-se da alma alheia como se fosse a sua.