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CAPÍTULO 1 Primeiros rastros

1.4. Auto-retrato

Casa nascida sem pai nem mãe: era única, mas ainda não o sabia. Quando ela nasceu, o pai ficou tão feliz que saiu pelo mundo assinando papéis, muros e paredes. A mãe teve tanto leite que um dia não mais acordou, de tanto leite que saiu de seus seios virou cachoeira durante a noite sem perceber.

Era uma casa com funcionamento próprio. Cada dia ou cada noite seu dono teria que aprender a entrar por um lugar diferente, como um grande caça ao tesouro em que o mapa nascia para desafiar seu explorador a cada vez. Não era casa difícil para se relacionar, mas era criativa por demais. Isso fazia algumas pessoas confundir personalidade com resistência. Buscava desenfreadamente um modo de existir no mundo de um jeito autêntico. Por isso experimentava vários modos de ser. Então, tinha dia que ventava forte e ela aguentava como se nem sentisse medo nenhum de cair. E tinha dia que só uma chuvinha de garoa fina já a fazia ficar toda desmilinguida. Daí é que ninguém entendia nada mesmo. Mas o fato é que essa casa não era de entender, era de se surpreender. Sua missão não era organizar nada, mas remexer algo por dentro de cada pessoa que parasse pelo menos um segundinho-bem-pequeno-menor-que-instante para trocar meia dúzia de palavras que fosse com ela.

Era casa sem quartos para o acomodar-se, mas com cômodos sobrando para criar. Essa história de brincar de princesa com ares de importância, não era com ela. Nem ligava para o que falavam dela em dia que saia na rua com o cabelo despenteado ou um par de meias trocado um com o outro ou o outro com o um.

Na entrada desta casa tinha um mapa de como se perder pelo próprio modo de ser do visitante. Um autoretrato pregado na parede com a indicação de vários

43Acessar em: https://tanitcha.wixsite.com/website nos posts “Auto-retrato, mandalas”; e “Auto- retrato, desenhos” para a partilha de imagens de mandalas e desenhos criados na mesma época do conto, apenas para fins de disponibilizar processo e oferecer ao leitor um percurso de aromas como material criativo, não tem como objetivo à análise de conteúdos específicos – serve apenas como convite à imaginação, não como matéria-prima de análise conceitual. Também há no texto licenças poéticas nas relações conotativas das metáforas e os neologismos são apresentados como uma possibilidade de fruir a obra numa respiração lúdica, pois aqui pouco importa se essa casa existe ou é inventada, mas o que ela produz como apreciação e contemplação – tal como as notas de um aroma que nuncasentimos e não sabemos descrever porque gostamos ou não do seu cheiro, pois estamos ocupados em apenas contemplar.

caminhos sem volta para o mesmo lugar: o importante era você ir parar em lugar diferente daquele que começou. Cada vez que alguém escolhia um caminho a percorrer, aparecia um ser colorido que saia de dentro da terra para brincar de ser gente, deixando longo rastro dourado feito de lembranças de sonhos com os quais a pessoa seria capaz de recordar-se de tudo que gostava de brincar na infância. Cada vez que se lembrava de um amigo invisível ou de uma brincadeira preferida, um brotinho de maria-sem-vergonha despontava feliz-mais-que-tudo bem do lado da caixinha de correio morrendo de vontade de brincar de pega-pega na rua, esconde- esconde; gato mia na floresta e subir em árvores para comer fruta do pé sem nenhum adulto vendo.

Seu quintal era feito de um estado de nuvem, que fazia com que com os visitantes chorassem por dentro, jogando para fora mágoas, medos e momentos de violência gratuita que a vida às vezes maltrata sem querer. Tinha pétalas de delicadeza por todo o entorno onde um dia nasceria uma mudinha de lavanda para sarar queimadura ou um ralado de tombo de bicicleta que a gente se esquece de deixar doer porque está brincando e só chora depois quando a mãe chega.

No corredor, uma parede larga com muitos desenhos de crianças que olhando o céu pelos buracos das fechaduras da casa criavam histórias que um dia às vezes aconteciam dependendo do tamanho da vontade de desenhar que ali pelos lápis coloridos escapava.

O banheiro lotado de sapos. Sapos fugidos da escola, sapos engolidos por um gigante quase que por acidente num dia de larga fome. Era decorado com musgos pelas paredes cheios de vida que riam às gordas gargalhadas quando alguém soltava pum ou se mijava nas calças. O chuveiro era feito de línguas de bruxas velhas que esqueceram todos os feitiços – assim poderiam limpar quem quer que fosse sem se lembrar de nada. A privada: sem descarga, porque a mãe-terra, com sua boca enorme, já mandava tudo para dentro de si e enviava com palavras mágicas aos lençóis freáticos tudo que tinha energia de adubo para onde faltava algo para fertilizar as plantas. Pela pia do banheiro se via um pequeno esconderijo dos gnomos da floresta mais próxima toda vez que quem a abrisse contasse seu último sonho.

Ainda no banheiro, o cesto de roupa suja gostava de conversar com todo mundo que sentava no vaso para ler: não perdia uma oportunidade de conscientizar os outros sobre reciclagem e divulgar um bazar ou um brechó. E os pentes e os diversos tipos de escovas e a pasta de dente apesar de primos de primeiro grau não lembravam um ao outro nos traços em absolutamente nada, o visitante só tinha mesmo condição de perceber que eram da mesma família porque tinham hábitos e preferências realmente muito parecidas mesmo.

A sala de estar era feita de cestos e tecidos costurados com muito cuidado nas orelhas das paredes em que a gente podia sentar para descansar com muitas e aconchegantes almofadas caso fosse necessário uma breve cochilada para recuperar energias no fim da tarde.

Na de jantar, os alimentos apareciam quando o corpo de quem ali transitava precisava de algum tipo de vitamina, mineral ou elemento químico. E já vinham quentinhos ou gelados como se a inteligência ou a telepatia fosse algo que tivesse a ver com o como nos relacionamos com o que comemos.

A cozinha era com uma geladeira que tinha um botão para escolher em que país a gente queria estar. Era uma cozinha muito extrovertida, que adorava fazer um amigo aqui e ali e que gostava de jogar conversa fora para que todos se sentissem acolhidos nos seus temperos e especiarias. Seu fogão tinha quantas bocas fossem necessárias para uma boa conversa com quase cara de discussão, mas briga mesmo não tinha não. Alguma exaltação vez em quando sempre, é claro, era uma cozinha com gosto de vida, com vontade de dar opinião. Era cozinha com cheiro de emancipação daquelas que para ter um bom amigo não precisava concordar não, mas precisava envolvimento na falação. E quando pessoas se animavam numa boa conversa, os azulejos cantavam e as colheres, garfos e facas saíam das gavetas para compor uma intensa percussão: até as colheres de pau e os afiadores de faca acabavam participando junto com as panelas. Os copos e os pratos ficavam numa área reservada onde tudo era silêncio: tinham vontades mais meditativas, gostavam de pensar sobre a quantidade de nutrientes de cada comida e sobre as propriedades das cores dos alimentos sem nenhuma interrupção.

Os quartos eram a melhor parte. Só se podia entrar descalço e ao entrar o barulho de folhas secas encantavam o coração. Era tão poema esse quarto que se despedia com cheiro de terra molhada, que a gente sentia vindo dos pés e deixava rastro nas mãos. Na cama do quarto tinha uma cabeceira cheia de facas para cortar maus pensamentos. Aqui a gente não fala de raiva, medo ou alguma sensação de desaprovação, a gente fala é de coisas que passam na cabeça que não ajudam a felicidade do que acreditamos para ser quem se é. Dormir nessa cama era certo que algo no seu corpo ia conversar com você sobre o que fluía demais ou de menos por entre os espaços de paz, dor ou invenção. Bloqueios ou vazões que a gente sabe que tem mesmo quando não ouve bem o que a gente sente. Estar em cima desta cama era como jogar-se de corpo inteiro num momento de silêncio no meio de uma música clássica que já passou por diversos altos e baixos. Era como vazio vivido. Por isso, puro descanso.

As janelas abriam e fechavam sozinhas: ninguém precisava pedir ou mandá- las fazerem absolutamente nada. Eram janelas com um olhar límpido e inteligente. As portas só se mexiam quando algo as aborrecia como uma injustiça. Se ficassem sabendo, batiam todas de uma vez sem perdão, só depois perguntavam quem era o dono da chateação. Também não gostavam de mentira não, só se fossem essas de mexer com a imaginação – do contrário não.

O teto era como uma tela de cinema que passava tudo que a gente tinha pensado de nós, dos outros e os outros de nós e deles mesmos, mas como ninguém sabia que ordem era do que, parecia sonho daqueles com muito absurdo e emoção, mas que não encaixa nada, sem pé nem cabeça, feito de pura conexão.

Os espelhos apareciam em canto de parede para as aranhas vaidosas que gostam de passar batom escondidas. Baratas e formigas já não havia: as formigas de tanto comer açúcar acabaram enlouquecendo e, não aguentando tanta medicação forte para conter a loucura, saíram pelo mundo até onde a vista já não mais alcança. E as baratas tinham depressões fortíssimas, pois tinham morado muitos anos em um apartamento quase sem iluminação e pouco ventilado e decidiram se mudar para um pé de uma laranjeira logo ali na frente atravessando a rua em frente da casa mesmo.

O chão cada dia da semana era de uma cor do arco-íris, mas quando alguém se percebia em seu processo profundo de individuação, ficava transparente - tal como a atitude da pessoa que buscava seu autoconhecimento. Transparente mostrando todas as fiações e encanamentos que passavam por dentro da casa como um mínimo, mas não pouco importante momento breve de lucidez.

E dentro dos armários, principalmente nos de roupa, moravam tecidos de um tipo bem singular: eram os dançarinos e artistas de teatro e circo. Gostavam de trocar de lugar constantemente um com o outro, mesmo sabendo que cada um tem seu jeito de criar, gostavam de sentir muitas coisas diferentes numa só vida, quase como se fosse possível, estar em muitos corpos e enredos numa só encarnação. Mas, não falavam nada sobre religião, gostavam mais de dar piruetas, cambalhotas e se pendurarem nos cachecóis – onde interpretavam Rapunzel, Romeu e Julieta, aprendiam um giro novo que ainda não tinham visto ou aprendido em lugar nenhum, mas também não conseguiam repetir para mostrar para ninguém porque saiu sem querer, numa distração feita de devaneio momentâneo.

As lâmpadas eram feitas de palavras que tinham virado silêncio por excesso de emoção – iluminadas ou sombrias. Sendo assim, cada vez que alguém acendia ou apagava uma luz da casa, os visitantes e moradores tinham vontade de tentar a mesma coisa que estavam fazendo de um jeito diferente.

Na área de serviço, o tanque conversava com as roupas molhadas e tentava perceber cada textura e cor, ele se contentava com pequenos gestos e detalhes que ninguém comentava sobre elas. Era ele que avisava quando saía um botão ou quando já era hora de começar a pensar em aposentadoria. E os produtos de limpeza gostavam de se soltar numa borbulha perfumada por alguma fresta da tampa quando ninguém estava vendo.

O telhado era que avisava o relógio quando era hora redonda e também quando era hora de fazer as pazes ou dar um basta em alguma coisa que estava incomodando a boa convivência de todos.

Os passarinhos e os beija-flores faziam buraquinhos entre uma e outra palavra dita para que ninguém parasse de cantar – nem na tristeza e nem na alegria, era assim que eles cuidavam para que não faltasse água na casa.

Era uma casa onde cabia tudo e qualquer coisa. Como um autoretrato que foi o outro que fez, mas a gente acha que alguém nos adivinhou. Ou como uma obra de arte que mostra tudo que sente, mas ninguém sabe se é vida pessoal ou um gostar de inventar tudo-e-qualquer-coisa-que-a-gente-acha-que-é-o-outro, mas que, ao fim de contas, fala de si, mas ninguém sabe onde começa e onde termina o artista e o espectador. Casa animada, castelo brincando de adivinhação.