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Memorial: artista por ela mesma

CAPÍTULO 1 Primeiros rastros

1.2. Memorial: artista por ela mesma

Gostaria de contar como fui parar do bastão do Louco à bengala de professora; e como me encantei com feitiços de varinha mágica29 pelo olhar que transita entre a Dança do Ventre e o Teatro ou como o Teatro também se tornou passagem para todo tipo de linguagem que eu queria incluir na minha prática poética.

Em 1999, após ter ingressado e aproveitado minha graduação por um ano, meu pai recebeu um convite de trabalho, que incluía ir morar na Colômbia. Entre os filhos, a única pessoa que poderia ir, eu. Não queria, estava animada com a faculdade; no entanto, apesar de tão esperta paulistana, nunca tinha saído nem do meu bairro, que dirá de meu país.

Começava ali, uma experiência considerável de percepção importante: quando pensamos que não estamos em situação formativa é quando mais se aprende. E isso ficou um pouco mais pronunciado quando me tornei estrangeira do meu ambiente cotidiano. Aprendemos quando estamos em horas de descuido30.

29 Aqui aproveito para ressaltar uma imagem que me ajudou a criar um memorial que traziam estas e não outras lembranças e que revistei recentemente por sugestão de meu orientador. Quando meu filho era pequeno, assisti algumas vezes, o filme “Nanny Mc Phee e as lições mágicas”, que conta a história de uma babá que tem um bastão mágico para fazer com que crianças cumpram as ordens que ela dá. O que, após tantos anos sem vê-lo me chamou atenção foi que, à medida que as crianças iam aprendendo a respeitar e compreender que cumprir as tarefas era bom para elas, os traços de feiura da babá iam desaparecendo. Isso me trouxe acolhimento pela sensação de que não havia problema se uma mulher adulta também precisava rever algumas tarefas ao conviver e educar crianças – isso redimensionou as tarefas que Vasalisa precisava cumprir para Baba Yaga como conto de teor apenas infantil, inclusive dando força a visão de Clarissa Pinkola Estés – isto é, que o arquétipo da mulher selvagem tem diversas facetas conviventes.

30 Expressão presente na obra de Guimarães Rosa, literato brasileiro. “Felicidade está em horinhas de descuido”.

Quando não nos exigimos e não nos exigem posturas avaliativas. Quando há espaço para a informalidade do conhecimento.

Quando é necessário encontrar um estímulo para sair de casa e não se importar em se perder. Quando o idioma que aprendemos e ouvimos desde pequena pela boca de nossa mãe e, o aprendemos concomitantemente ao idioma do país que nascemos, não faz mais sentido nenhum em outra toada e ritmo. Quando tudo que é familiar parece estar dentro da gente e nunca fora. Quando expressar algo em sua língua não diz da cultura que agora você está imersa. Quando expressar é, às vezes, dizer o que só tem sentido na língua estrangeira. E nos descobrimos assim, mais brasileiras do que qualquer um podia imaginar, sentindo saudades de coisas que eram tão corriqueiras e disponíveis diariamente. E em regresso a sua pátria, saudades do que tínhamos dificuldade em nos acostumar no estrangeiro.

Foi nesse clima de tudo mais diferente do que jamais pudesse imaginar, pois espanhol foi uma língua que aprendi junto com o português, que eu vivi um ano na Colômbia sem saber que ônibus pegar ou que horas realmente chegar para assistir uma peça de teatro.

Sai, em absoluto, da minha zona de conforto. Não entendia a lógica das ruas, pois apesar da maior parte dos endereços ser pautado em lógica cartesiana, sempre precisava ir a um endereço que estava fora desse pressuposto. Todas as expressões que, por meus pais serem chilenos, entendia e conhecia de um jeito, eram muito distintas do que eu estava acostumada a ouvir. Os ônibus paravam segundo a necessidade do passageiro, não havia pontos de ônibus, pelo menos na ordem das paradas para desembarque. Não se podia abraçar as pessoas à vontade, sem que alguém não pensasse que podia ser um ato de insinuação – tudo culpa da cultura.

Não percebia, na época, a beleza do que havia me acontecido. Pois então, tudo que ouvia em muitas aulas de improvisação, de Antônio Januzelli31, estavam

31 Professor da disciplina de Improvisação da ECA-USP – Escola de Comunicações e Artes/Universidade de São Paulo, atualmente já aposentado. Foi o responsável por apresentar-me o Teatro da pessoalidade, lógica onde defendia que a vida não se separa da arte e que um artista está sempre fazendo a mesma obra, pois no fim de contas, aprimora seu discurso através da linguagem explicitada pela busca de sua própria poética.

acontecendo, mas sem o romantismo que a atriz esperava, parecia maldição. Era como ter sofrido um acidente, ficado com parte dos membros comprometidos e ter que aprender a caminhar novamente do zero. Não é possível fingir intimidade – e por isso mesmo, meu caminho criava uma dimensão mais profunda, eu já não era capaz de sobreviver na superfície, de que experimentava algo por primeira vez sem tê-lo feito – como em alguns laboratórios teatrais vivenciados de forma totalmente artificial.

Comecei, desesperadamente, buscar sentido para estar naquele país. Meu primeiro passo foi tentar gostar do lugar pela geografia e suas belezas – sempre fui apreciadora da Natureza e sua multiplicidade. Fiz um amigo: Juan Valero, ele era guia de caminhadas. Ele me ensinou a gostar de trilhas de lá, e mais das daqui quando voltei. Mas me ensinou muito também sobre humildade, pois ao ir a um páramo32, ecossistema de clima frio típico da Colômbia, me carregou um pedaço de montanha, pois distendi a minha perna e não consegui terminar meu primeiro sendero33 sozinha – talvez fosse metáfora, para dizer que, eu realmente precisava de ajuda para cruzar as fronteiras dos meus condicionamentos naquele momento. Nesse dia, ele me ensinou sobre perseverança, solidariedade e profissionalismo também. E eu aprendi um pouco mais comigo mesma sobre dor que só a gente pode resistir e sobre aceitar a condição da fragilidade para assim, poder realmente integrá-la. Com o tempo, ganhei um bastão dele que, ao voltar para o Brasil, foram tantas as mudanças de casa que, precisei me desapegar dele, mas o significado iniciático que ele imprimiu em mim permaneceu.

Algo voltou a fluir a partir dali, mesmo dentro do tempo da cidade de Bogotá, que é muito diferente do tempo de São Paulo. A gratidão sincera por esta experiência eu só pude ter muito depois, confesso. Mas ali, aconteceram muitos pequenos milagres que com o passar dos anos, pude realmente compreender. Dei aulas para filhos de camponeses, num festival quase anônimo, organizado por uma mulher que não falava espanhol, apenas inglês. O pagamento das crianças era em legumes e frutas e o lugar ao qual me refiro se chama San Agustín, uma cidade

32 Paisagem típica de clima frio, com especificidades de deserto: planície com plantas rasteiras, Tradução mais próxima charneca.

arqueológica colombiana que tem caminhos inteiros sem nenhuma casa, só mato e a cada tanto uma pedra esculpida representando uma mitologia local importante.

Foi neste país que também compreendi que a formação de nada vale se você não souber o que quer dizer com um monólogo – e que um monólogo não dá conta de uma solidão mal elaborada pela linguagem de outra cultura. Apresentei um solo chamado “Anima”, tanto em Barranquilla (Colômbia) como em Trujillo (Peru), que pouco significou profissionalmente para além de muitas dúvidas que eu tinha sobre meu processo criativo – que eu não tinha com quem compartilhar, isso mais me acumulou vontade de voltar para a faculdade do que qualquer outra coisa. Aprendi com isso sobre um princípio importante do Butoh34 – a presença pela ausência. Mas me fez conhecer outras cidades, pessoas e artistas. Também conheci uma coragem que eu não tinha: tentar era mais importante do que fracassar ou ficar sem fazer teatro. Tomar chicha35, comer pimenta amarela, entre muitas outras coisas.

Ser agarrada no meio da rua, com um beijo não autorizado, por um transeunte venezuelano36, ilustre desconhecido, apenas por responder ser brasileira e ter o privilégio de poder responder com uma dezena de palavrões em espanhol por esta ofensa, também não teve preço.

Sair para comemorar o dia do teatro no centro da cidade e lá conhecer uma família de artistas com nomes hippies, que me mostraram que ficar sem ir à escola, era uma escolha e não uma falta de, foi possível só lá - tal como aprender a fazer arepas37 com eles de forma absolutamente artesanal e depois ficar meditando na frente da lareira. A família Castro Pinzón tinha membros com nomes bastante peculiares: Hombre Del Sol, Vida de la Paz Del Mar, Madressilva, Alegría38, entre outros. Eram filhos de pais psicólogos, que haviam optado que eles não estudassem formalmente, eles estudavam entre eles, em casa com a mãe e com as oportunidades da vida, que eles precisavam descobrir. Faziam teatro, música e

34Gênero que surgiu dentro da Dança-Teatro no Japão, no momento Pós II Guerra, cujo os representantes são Kazuo Ohno e Tatsumi Hjikata, inaugurando uma estética menos condicionada a ideias de beleza até então vigentes.

35 Bebida típica peruana, criada pelos indígenas. Mastiga-se frutas, com maçã, uva, entre outras e cospe-se o conteúdo numa garrafa que será enterrada por meses, fazendo com que tudo fermente de forma segura e produza uma bebida com sabor bastante exótico.

36 Morar na Colômbia também tornou outros países mais acessíveis para meu deslocamento. 37 Pão de milho, típico colombiano.

davam aulas de perna-de-pau39. Eduardo, o filho mais velho, estudava na universidade pública de Bogotá, pois estudou em casa e deu uma prova para tirar o título da formação equivalente a toda vida escolar, parecido como o que se faz quando é necessário fazer provas de supletivo, porém uma única vez. Não afirmo aqui o dispensar de uma formação, o que digo é que estar lá, em outro país, em contato com essas pessoas e diferentes circunstâncias, modificou a minha noção de aprendizagem significativa.

Conheci um médico naturista que me ensinou sobre o metabolismo do corpo de forma inusitada para mim. Conscientizou-me sobre alimentação e qualidade nos padrões de pensamento. Falou-me sobre a importância de desintoxicar o corpo com reeducação alimentar e lavagens intestinais40, como quem sabe que fazer faxina uma vez por semana em sua casa é indispensável. Falava também tanto sobre os benefícios de retirar o leite da alimentação como sabia ler íris dos olhos como quem pode ver até sua parte inconfessável da alma – dele também eu ganhei um bastão atlante, ferramenta indispensável para diagnósticos da condição energética de chacras.

Também tive minha primeira professora de Dança do Ventre, que dava aulas em sua residência, pois tinha tempo para dar corpo a sonhos meio esquecidos pelo meio do caminho41, entre muitas outras coisas. Ensinei samba numa escola de Capoeira, para colombianos – e para isto, li sobre a história do samba enredo, que eu nem conhecia e nunca tinha me interessado; e pensei um jeito lúdico e divertido de ensinar algo que eu não acho que se ensina. Atravessávamos a sala com imagens com “areia quente em Copacabana”, por exemplo.

Foi em terras distantes que vi meu pai um dia varrer o palco em que eu me apresentaria e que me apresentei cantando com minha mãe num pub no centro de

39 Foi aprendendo a me equilibrar em pernas-de-pau com eles que tive uma das memórias mais emocionantes da minha vida: meu corpo se lembrou do momento em que aprendi a andar um segundo antes de um tombo também memorável em câmera lenta.

40 Lavagens intestinais com pó de café diluído em água morna para limpar as rugosidades do intestino e ativar o funcionamento do fígado, logo após de fazer uma semana de dieta para desintoxicação com ingestão restrita apenas de sopa de legumes. Adolfo Held, alertava para o fato de que para a Medicina Chinesa, o intestino é o segundo cérebro.

41 Aos 15 anos, ganhei de aniversário de minha melhor amiga de adolescência, uma ida a casa de chá Khan El Kalili, no Bairro da Vila Mariana, em São Paulo, onde além da comida, a gente assistia várias dançarinas. Foi nesse dia 11/01/1992, que eu me apaixonei pelo caráter teatral dessa dança, pois lembro-me de ter gostado por ver uma moça mover os braços e o corpo como uma cobra, de maneira tão eficaz que desejei aprender essa linguagem algum dia.

Bogotá – eu nunca mais vivi isso. Ter o privilégio de cantar acompanhada com o violão de Cesar Caicedo, com repertório musical que tinha tanto músicas hispano- latinas como músicas brasileiras também foi inesquecível.

Improvisar em praças públicas com o coletivo “Arte en todas partes”, junto a artistas espanhóis, argentinos, guatemaltecos e colombianos também foi muito enriquecedor e esclarecedor de que arte se faz por necessidade e mesmo sem recursos.

Quando voltei, voltei para morar no CRUSP – Conjunto Residencial da USP, o que também foi um diferencial na minha formação, acreditem: pois morei em todos os possíveis formatos, não tinha situação que eu não me adaptasse. Mergulhei no que era sentido coletivo das experiências – o que apenas confirmou que, de nada servirá qualquer tipo de formação se não integrarmos os conteúdos vivenciados propositalmente, se não nos mobilizarmos a provocar uma conversa interna de sentidos das diversas naturezas das nossas aprendizagens. Isso, esse primeiro passo da jornada rumo ao que não era familiar para mim, marcou todo o resto da minha caminhada.

Regressei com sede de trilhas brasileiras: fiz Ilha Grande e Trilha do Ouro quando voltei, pois entendi que de nada adianta dizer que se dá valor a algo que a gente nem conhece e que o tamanho do nosso passo é importante para criar referência para grandes e futuros desafios, não importa se fáceis ou difíceis, mas importantes para nós.

Aqui, não tinha médicos como esse que conheci, então fui atrás de uma bruxa. Ela me cuidava com tarot e banhos de ervas. E, um dia, também me iniciou, pedindo que eu confeccionasse uma varinha de condão. Ela a consagrou na cozinha de sua casa e ficou muito satisfeita com meu envolvimento com a tarefa – dizendo que não era comum alguém imprimir tanta criatividade em tal lição.

Foi - um pouco antes de engravidar, quando já fazia Dança do Ventre com minha irmã - que consagrei um bastão de said. Criei uma coreografia em que me apresentei num encontro de finalização de curso. E logo depois, ficaria sabendo da minha gravidez, que me implicaria na lição mais importante da vida: ser mãe!

Todos estes relatos de nada valeriam se eu não tivesse me colocado em lugar de estranhamento – se eu não tivesse experimentado o lugar de ignorância em outro país. Por isso, meu convite aqui é de que este trabalho seja visto desta maneira: como uma língua ou cultura que entramos em contato agora e estamos recém conhecendo, mas que também disponibilizamos todo nosso repertório de vida para compreender tal linguagem de um lugar dilatado da nossa alma e pela importância de tornar os saberes cotidianos palpáveis para nós – aliás, só assim me parece valer a pena entrar em contato com a Aromaterapia e com o Tarot. E é nesse espírito inovador, com pulso vivaz e aventureiro que eu gostaria que este texto começasse a ser lido; com este conto que relaciono a casa com o corpo e o apresento como um auto-retrato da poética multidisciplinar que tento elaborar no decorrer de toda esta dissertação.

Pois tudo isso me compõe como professora que sou – que é a dimensão da minha personalidade que me ajuda a elaborar poéticas, pois me descobri improvisadora dando aulas. E isso transformou o modo como vejo e executo meu lado artístico e todas as inter-relações de saberes diversos onde incluo tudo que me interessa do mundo empírico para a composição de uma obra estética.