• Nenhum resultado encontrado

No ano de 2004 foi publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) um levantamento e análise de informações sobre 589 abrigos para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social que recebiam recursos do Governo Federal.228 A pesquisa traça um panorama histórico sobre a legislação e políticas públicas de proteção aos direitos e garantias das crianças e adolescentes. Identifica-se, no decorrer dos anos de 1970 a 1990, duas óticas muito claras: a primeira corresponde à visão correcional de crianças e adolescentes em situação irregular, e a segunda uma visão garantista, que se acentua com as previsões legais na Constituição Federal (1988), com ênfase na proteção integral de direitos.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e

227 MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização Cristina

Magro, Victor Paredes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

228 Disponível em:

<http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/ipea/direito_a_conviv_familiar_ipea_2004.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2015.

comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.229

A partir do advento da Constituição Federal de 1988, sem desconsiderar movimentos sociais e políticos que a antecederam, percebe-se o enfoque em assegurar direitos fundamentais às crianças e adolescentes, com a intenção de passarem a ser sujeitos de direitos230

Sérgio Adorno231 considera três fases de história do direito brasileiro direcionado à criança e ao adolescente no Brasil: a primeira vai de 1927 – Decreto no 17.943-A, de 12 de outubro de 1927 – a 1973 – Código de Menores, período marcado pela execução de normas e diretrizes repressivas e discriminatórias. De acordo com o autor, a criança e o adolescente interessavam ao direito em situações de “patologia social” – abandono, carência, vitimização e infração penal. Assim, este conjunto de normas era intolerante à “desobediência civil” e aos comportamentos “desviantes” às normas dominantes e universais para todos os cidadãos, desconsiderando suas diferenças sociais e culturais.232 A Segunda fase abrange o período de 1973 a 1989, na qual se delineia uma política nacional caracterizada pela proteção e amparo paternalistas – período da Febem. Por fim, a terceira fase ocorre com o advento do ECA/1990, em que a criança e o adolescente são considerados cidadãos, sujeitos à proteção integral quanto ao desenvolvimento físico, intelectual, afetivo, social e cultural.233

O citado relatório elaborado pelo Ipea se embasa nos parâmetros do ECA para apontar três aspectos, que reunidos configuram a impressão de lar aos jovens de abrigo: aspecto externo do abrigo; a configuração interna dos seus espaços; e as atividades que devem ser previstas234. Assim, deve-se evitar placa e referência que aponte para algo institucional. Aponta ainda que o abrigo deve assemelhar-se a outras residências das proximidades e estar inserido entre elas, para que as crianças e os adolescentes não sejam estigmatizados.

A minha observação participativa na UNIDADE me levam a argumentar que a referida não atende os requisitos considerados no relatório do Ipea. Pode-se arguir, em resposta, que a não adoção das políticas ensejadas deva-se à sua condição peculiar de instituição provisória –

229 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em:

<http://goo.gl/wUgZP>.

230 RIZZINI, Irene. A infância perigosa (ou “em perigo de o ser…”). Idéias e práticas correntes no Brasil na

passagem do século XIX para o XX. Rio de Janeiro: Ciespi, 2005.

231ADORNO, Sérgio. Criança: a lei e a cidadania. In: RIZZINI, Irene et al. A criança no Brasil hoje: desafio

para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1993, p. 103-111.

232 Idem, p. 107. 233 Ibidem, p. 109.

234 SILVA, Enid Rocha Andrade da (Coord.). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para

crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: IPEA/Conanda, 2004. p. 141. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/ipea/direito_a_conviv_familiar_ipea_2004.pdf>.

de passagem – ao jovem que não está sob condições de receber a medida judicial de

acolhimento institucional.

Neste sentido, até mesmo as unidades de acolhimento, oficialmente responsáveis pelo

acolhimento institucional e que se encontram inseridas no contexto da comunidade, por

trazerem em seu bojo a política de propiciar um lar para o acolhido, apresentaram problemas principalmente na relação com a vizinhança, a qual teme a presença dos jovens, tendo ocorrido diversas reclamações e até reportagens jornalísticas a respeito das desavenças.

Apesar de a UNIDADE não prestar o serviço de acolhimento institucional sob o fundamento da medida protetiva judicial, acredito que não pode se abster de sua ação reparadora e preventiva diante de ameaça ou violação de direitos. Trata-se, por isso, de serviço que tem por objeto evitar um mal maior ao jovem, devendo-se atender à temporalidade e eficiência da medida.235 Assim, não enxergo motivo pelo qual possa se eximir das recomendações dirigidas às unidades de acolhimento, tais como a impressão de um

lar, posto que existe justamente como portal de entrada ao jovem que tem ainda dificuldade à

aceitação de acolhimento e à constituição de vínculos.

Além disso, a impressão de um lar deve estar associada à temporalidade. Segundo a avaliação de especialistas, pesquisadores e juristas na área, os programas aplicáveis aos jovens não devem se estender de forma indefinida no tempo, mas sim, respeitando a

perspectiva de emancipação, o que considero em minha pesquisa em sentido restrito, afeita à

autonomia. O próprio desligamento do jovem deve ocorrer pelo seu próprio mérito.236 Para tanto, os especialistas e a própria legislação aplicada recomendam um programa de

atendimento, que possa acompanhar o jovem desde sua recepção e acolhimento – não

importando se o local é uma unidade de acolhimento ou uma casa de passagem, semelhante à

UNIDADE – até o seu desprendimento espontâneo, com o mínimo de autonomia que já lhe é

inerente. Em minha análise, se existe tal programa na UNIDADE, não está devidamente claro, ou ainda não foi posto em funcionamento.237

O próprio artigo 90 do ECA faz menção à necessidade de as entidades responsáveis por atendimento às crianças e adolescentes planejarem e executarem programas de proteção e de

medidas socioeducativas. As normas do Estatuto estão submetidas aos princípios da

235 Vide nota de rodapé no 6, Introdução.

236 DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Amorim Ildeara. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 6. ed. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná. Centro de Apoio das Promotorias da Criança e do Adolescente, 2013. p. 147. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/eca_anotado_2013_6ed.pdf>.

237 Quanto a este assunto, durante a minha pesquisa, alguns servidores da UNIDADE mencionavam que ao

Convenção sobre Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, que traz como

obrigação aos Estados-partes a preparação do jovem para uma vida responsável, em que haja

um nível de vida adequado ao desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.238

Assim, a hermenêutica jurídica do ECA brasileiro está condicionada à integração com os princípios internacionais e os direitos e garantias previstos na Constituição Federal (1988), sendo, portanto, necessárias medidas proativas para preservar a vida e os direitos destes sujeitos em desenvolvimento.

De acordo com Sérgio Adorno, o modus operandi em instituições responsáveis pela adoção legal de medidas socioeducativas aos jovens que cometem atos infracionais parece ser de mais fácil execução e aplicabilidade do que aquele adotado pelas entidades responsáveis por medidas protetivas aos jovens em situação de risco, diante do tratamento prioritário que o ECA oferta àquelas.

[…] o Estatuto se revela mais preocupado em proteger os adolescentes autores de infração à lei penal do que as crianças e adolescentes em situação de risco. […] Nesse sentido, a despeito das inovações introduzidas, o novo estatuto legal não parece ter se desvencilhado completamente de suas raízes policialescas e repressivas.239

Concordo com Sérgio Adorno quando analisa a atenção precipuamente voltada à conduta de adolescentes infratores pelo Estatuto e a atitude ofuscada em relação aos jovens

em situação de risco. No entanto, a menção do texto legal aos princípios e direitos

constitucionais de crianças e adolescentes, omitindo um modus operandi que regulamente a proteção, pode ser positivo, pois afasta-se de um rol taxativo e enclausurado de medidas, aproximando-se de um campo inventivo e, portanto, mais coerente com a imprevisibilidade presente na vida dos jovens que frequentam os abrigos.

As atitudes rígidas e excessivamente moralistas e burocráticas podem trazer malefícios a estes jovens. A vida e o conhecimento comum240 exigem quanto à garantia da vida e dignidade dos jovens em situação de risco uma atitude interdisciplinar e criativa, porque os jovens aventuram-se, vivendo riscos nas ruas. Maffesoli, em sua contumaz crítica às teorias de emancipação e moralistas, declara que o conformismo torna-se perigoso quando nega o

238 A Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em vigor internacional na data de 2 de setembro de 1990.

No Brasil, a Convenção foi promulgada pelo Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990. Vide artigos 27 e

29 da Convenção sobre os Direitos da Criança.

239BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá

outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 set. 1990. Disponível em: <http://goo.gl/NSaUs>. Acesso em: 24 out. 2014.

240MAFESSOLI, Michel. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Tradução Clóvis Marques. Rio

“relativismo cultural”, o “tribalismo emocional” e outros sentimentos de vinculação. Assim, “as inúteis querelas intelectuais, políticas e de escolas não passam da expressão do enclausuramento da intelligentsia em seu mundo que se acaba. Ela não conhece seu próprio tempo.”241 Tal atitude, além de perversa, implica uma espécie de vingança com todos os excessos possíveis, tais como “a rebelião, mais ou menos violenta, dos jovens dos subúrbios [...]”.242

Com esta discussão, apenas pretendo defender o entendimento de que cada um dos precisa ser apoiado em seu desenvolvimento psicológico e social. É o próprio jovem que rastreia o seu caminho, e por isso o constitui e o inventa, devendo estar à vontade para definir as etapas e escolhas que são múltiplas, diante da pluralidade e diversidade presente em cada organismo e a forma com a qual interage com agentes externos. Para isto, penso que o vínculo torna-se imprescindível, bem como a abertura ao novo e à aceitação de quem está ali, não apenas para tolerar.

§

Já faz cinco meses que não estou mais na UNIDADE. As notícias, no entanto, chegam aos meus ouvidos ou aos meus olhos. No mês de março de 2016 estava em um mercado 24 horas em uma sexta-feira à noite. Me deparo com Diamante, visivelmente drogado. Pergunto sobre a UNIDADE e os outros meninos. Pergunto sobre Ouriço, que se encontra desaparecido, de acordo com a polícia; de uma forma muito estranha, pois não há rastros ou pistas. Desconfia-se que ele esteja morto, assim como já ocorreu várias vezes a estes meninos e meninas… Diamante me diz que não está mais na UNIDADE, pois “foi mandado embora”. Agora vive na rua. Ao conversar com servidores durante o período das entrevistas, tomo ciência de que Diamante já estava há muito tempo na UNIDADE e causava problemas com outros jovens. Diamante foi transferido para uma unidade de acolhimento, mas se recusou a ir para o local porque gostava da UNIDADE. Diamante sentia-se “revoltado, e para descontar”, foi para a rua. Qual será o final de Diamante? Isto me aflige.243

O teatro pareceu-me servir para expor os mecanismos de enclausuramento antes invisíveis em um contato inicial com a UNIDADE. Porém, em que medida servirá para

241 Idem, p. 13.

242 Idem.

243 Com o psicólogo de Diamante realizamos algumas tentativas junto ao Serviço Nacional do Comércio do

Distrito Federal (Senac/DF) para inscrevê-lo no curso de Cozinha básica, porém era necessário ter a idade mínima de 18 anos e o ensino fundamental completo. O jovem Diamante, há época da pesquisa, possuía 17 anos e estava aprendendo a escrever e ler. Em certa ocasião, conversando com o jovem na UNIDADE, ele me mostrou seu caderno, contando-me que estava aprendendo a juntar as sílabas. Perguntei a ele porque tinha se afastado dos estudos quando mais jovem, e ele me disse que sua mãe o batia muito e o chamava de burro, e por isso ele não gostava de estudar. Ele me mostrou no corpo onde havia as marcas da surra. Contou que sua mãe ficava “doidona de crack” e furava ele de garfo e faca. Esta história de Diamante foi contada pelo ator Jeferson Alves em uma das cenas de Meninos da Guerra, tendo também tornado um vídeo em prol da campanha de enfrentamento à redução da menor idade penal.

transpô-los e transformá-los, sem que isto constitua em um instrumento de adestramento ou

adequação social de jovens “culpáveis”? Em que medida ele pode percorrer livremente pelos becos institucionais contribuindo para o autoconhecimento e autonomia já presentes nos cantos ocupados pelos jovens? Se, como afirma Foucault, o poder é produtor de

individualidade, ou seja, é o indivíduo uma produção do poder e do saber, o caminho aponta para um teatro como forma de autopoiesis, autoinvenção e aquisição de conhecimento sobre si e o outro, um teatro que requer ser inventado pelo próprio jovem em situação de

acolhimento e rua, de acordo com suas apetências e escolhas naquele espaço de tempo em

específico, e não como receita moral.

A arte não deve continuar encerrada em museus, teatros e salas de concerto para visitações de fim de semana, pois é necessária em todas as atividades humanas, no trabalho, no estudo e no lazer. Não deve ser atributo de eleitos: é condição humana. Não é maquiagem na pele: é sangue que corre em nossas veias.244

O corpo social, de acordo com Foucault, é “constituído pela universalidade das vontades”.245 Entendo que o trabalho que procurei desenvolver com os jovens tinha o propósito de estimular a independência e o questionamento de um status quo, especialmente

aquele constituído e não localizável, para tornar os jovens em situação de risco e vulnerabilidade social como marginais e perigosos. O teatro, enquanto linguagem artística

direcionada para estimular a liberdade de expressar sua própria natureza, não se insurgiria contra um sistema que estimula e preserva a existência de um corpo social? Foucault menciona que “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos”.246

Assim, questionar as imposições e padrões de comportamento, ressaltando a espontaneidade, a valorização das habilidades de cada um, representa outra atitude perante a sociedade, uma vez que o conhecimento traz a capacidade de escolha e por isso, poder. Neste sentido, a perspectiva de Foucault distingue-se daquela marxista em que o poder é visto como algo estritamente repressivo. Pelo contrário, caso o poder não fosse produtor de um saber seria frágil e, portanto, facilmente destruído.

Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do

244BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2009, p. 94. 245FOUCAULT, Michel, 2011, p. 130.

desejo − como se começa a conhecer − e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. E a partir de um poder sobre o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico247

Este argumento permite que eu flexibilize o meu entendimento e prática do Teatro do Oprimido. O meu foco de atuação passou a ser não apenas a revelação das estruturas de

poder, mas também, a constituição de um saber individual pelos próprios jovens e conhecimento comum-compartilhado entre o grupo, por onde seria possível imprimir suas

impressões sobre si e o mundo, utilizando os recursos do som da palavra e da imagem.

A mudança de entendimento de que o jovem também detém poder e conhecimento pode representar uma ameaça ao poder estatal e de instituições de vigilância? A saída do campo da ignorância implica no questionamento das forças e estruturas sociais impregnadas de preconceito e pré-julgamentos? A questão seria: como agir diante delas? Como se posicionar diante disso? A consciência das relações, antes invisíveis aos olhos ofuscados e adormecidos, já permite, por si só, parte do caminhar direcionado à revelação de suas autonomias já existentes?

247 Ibid., p. 148.

Parte Específica