• Nenhum resultado encontrado

§

A temporada do espetáculo Meninos da Guerra havia acabado. Os meninos da UNIDADE me chamaram para conversar em uma quarta-feira à noite. Sentamos em frente à sala de teatro, que estava trancada. “E aí tia! Ajuda a gente. A gente não quer mais roubar não.” Aquilo foi como um punhal. Foi o teste do que realmente eu estava fazendo ali. Eu não queria salvar meninos, eu simplesmente acreditei que eles já estavam salvos, pois depois das apresentações, eles pareciam estar mais conscientes da cadeia produtiva de criminosos, afinal, havia eu, o Carlos, a Clarice, o Zé, o Jef, o Herculano e o Gog. Pensei que nossas conversas ressoassem como “palestras” na cabeça dos meninos, envolvendo um discurso de que o crime não compensava. O discurso é fraco, é preciso agir. Meses depois eu estaria cansada e estressada. A estrutura inventada é muito forte. Quando vi que um deles havia sido preso, já maior de idade, na Papuda... aquilo foi forte pra mim... Não aconteceu com todos, mas aquilo foi forte pra mim...

Assunto 8

o

– Meninos e Meninas da Guerra: um projeto na esquina

niciamos o projeto O Renascimento do Herói Abandonado com a parceria inédita entre uma promotora de justiça – Dr.a Luiza de Marilac, um psicólogo da SEDESTMIDH/DF – Alexandre Reis, dois artistas da seara da primeira infância – Carlos Laredo e Clarice Cardell – La Casa Incierta, um renomado palhaço e diretor de Teatro – Zé Regino, e eu. As conversas e reuniões começaram no final do ano de 2013, ano em que conheci Carlos e Clarice. Como as instituições envolvidas – Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), SEDESTMIDH/DF e Secretaria de Estado de Segurança Pública e da Paz Social (SSP/DF) – não tinham recursos próprios para nos apoiar, resolvemos solicitar recursos ao Fundo de Apoio à Cultura do DF,335 o qual acredito ser uma das principais fontes para financiamento de projetos artísticos e culturais no Distrito Federal.

Após conseguirmos a aprovação do projeto e a obtenção do recurso, iniciamos os trabalhos efetivamente no mês de março do ano de 2015. Foram dois meses de visitas em

unidades de acolhimento institucional, instituições públicas ou conveniadas com a

SEDESTMIDH/DF, que prestam serviços de acolhimento às crianças e adolescentes em

situação de risco. Comparecemos, pelo menos três vezes em cada uma das instituições,

335 O Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC) foi criado em 1991 e alterado pela Lei Complementar

nº 267, de 1997, sendo o principal instrumento de fomento às atividades artísticas e culturais da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, oferecendo apoio financeiro a artistas do Distrito Federal mediante editais públicos. A principal fonte de recursos do Fundo corresponde a 0,3% da receita corrente líquida do Governo Distrito Federal. Disponível em: <http://www.fac.df.gov.br/?page_id=54>. Acesso em: 20 fev. 2016.

durante o período de dois meses. A intenção de nossas visitas era conhecer o território, estabelecer contato com as crianças e adolescentes por meio de brincadeiras, conversas ou apenas “estar” com eles e elas, escutando suas histórias, buscando maneiras criativas de nos relacionarmos.

Quando chegávamos aos abrigos, já havia uma espera de “um grupo de teatro que ia fazer uma peça com eles”. Recordo-me que em um dos locais havia crianças muito pequenas. Era noite. Ficamos cerca de três horas com eles e elas. Brincávamos de acordo com o que queriam fazer. Eram aviões de papel, danças, “brigas de mentira” e, por fim, peguei em minha bolsa um frasco de creme hidratante e começamos a passar nos braços e pernas uns dos outros. Foi um momento de imersão em um universo infantil muito carente de contato físico. Foram incontáveis os abraços naquela noite. Os jovens constantemente nos perguntavam se já tínhamos filhos. Ao nos despedirmos, alguns se agarraram em nós pedindo para que voltássemos para brincar.

Quanto aos jovens da UNIDADE, como eu já estava desenvolvendo atividades de teatro com eles desde o mês de setembro de 2013, poucos encontros foram suficientes para apresentá-los a Carlos e Zé Regino, os quais se impressionaram com o potencial artístico dos

meninos.

Terminado o período de visitas, deixamos um convite escrito aos jovens para que comparecessem até o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) – unidade de Ceilândia Sul – nos dias de segunda, quarta e quinta-feira à noite, período em que ocorreriam os ensaios (de maio ao mês de julho). Além disso, entramos em contato com os coordenadores de cada unidade de acolhimento para falar sobre o projeto e mencionar que estaríamos no Cras esperando os jovens.

Após três meses de encontro no Cras tínhamos um grupo de dezessete adolescentes e assim, do projeto O Renascimento do Herói Abandonado surgiu o espetáculo Meninos da

Guerra. Acredito que o meu vínculo e proximidade com os jovens da UNIDADE desde o ano

de 2013 foi um facilitador do trabalho, pois alguns dos jovens que estavam em outras instituições já haviam passado pela UNIDADE e me conheciam. A notícia de que a tia Lívia estava montando um espetáculo espalhou-se por todas as instituições e a cada ensaio, alguém novo aparecia no Cras querendo participar do teatro. Também procurei pessoalmente alguns jovens que já haviam passado pela UNIDADE e estavam em Casas Abrigo convidando-os para ingressarem no projeto.

O fato de ter participado da criação de Meninos da Guerra traz outro aspecto ao meu trabalho, pois deixo a oficina de teatro na UNIDADE e sua peculiar conjuntura como Ateliê e, com um grupo de artistas, passo a buscar um resultado artístico com a efetiva participação dos meninos. Com alguns deles eu já possuía vínculo, mas a maioria, principalmente as

meninas, passaram a fazer parte do meu cotidiano.

Foi um período extremamente difícil e desgastante. A ficha técnica do projeto previa Carlos e Zé Regino como diretores, enquanto Clarice e eu atuaríamos. Na metade do processo entraram os atores Jeferson Alves e Herculano Almeida. Além deles, contamos com o trabalho do músico Gog que, após visitar os jovens e contar sobre sua vida com o rap, encantou-se com o projeto e realizou a trilha sonora, a partir de nossas cenas já levantadas.

Assunto 9

o

– Os ensaios e vivências

Os ensaios eram o extremo da imprevisibilidade. Não há como descrevê-los de forma graduada, como se partissem do zero ao produto final com a criação de um espetáculo. A sensação, na maior parte do tempo, era a de que estávamos sempre retornando ao zero. Quando achávamos que tínhamos algo pronto, automaticamente este algo era destruído. O motivo era o mesmo: a inconstância na presença dos jovens. Se em um ensaio eles construíam conosco uma cena, no outro eles desistiam dela, ou simplesmente não apareciam. Se, durante as três horas de ensaio, trabalhávamos uma ou duas cenas que julgávamos interessante, no outro ensaio descobríamos que os jovens haviam desaparecido do abrigo, seja por expulsão, ou, ainda, espontaneamente. Havia também casos em que alguns deles tinham sido apreendidos pela polícia diante da prática de atos infracionais.

Apesar dos meus convites a alguns dos servidores da UNIDADE para que participassem conosco dos ensaios, podendo ser inclusive inseridos em cena, nenhum deles aderiu, sendo a maioria das justificativas pautadas na indisponibilidade de tempo. No entanto, pudemos contar com um servidor público da SEDESTMIDH/DF e uma funcionária de instituição de acolhimento conveniada à SEDESTMIDH/DF para nos apoiar na coxia, durante as apresentações.

Como já tinha o conhecimento de que a imprevisibilidade era uma constante na vida dos jovens, investi em estar mais presente na vida de cada um deles, o que repercutiu na pesquisa, tanto como fragilidade quanto como riqueza em seu aspecto interativo. Além de atuar e realizar a assistência de direção do espetáculo, nos dias e horários fora dos ensaios, os

jovens podiam me acessar, seja em uma ligação de telefone, seja em uma visita que havia marcado para conversar sobre qualquer assunto. Passei a assisti-los.

Os jovens se interessavam em compartilhar suas aflições, já que muitos se sentiam entediados com a vida que levavam nos abrigos. Foi o momento também de receber muitas reclamações e denúncias de maus-tratos, como a história de Daisy, relatada no Livro II e transformada posteriormente em uma das cenas de Meninos da Guerra336.

Na medida em que ficava mais próxima dos jovens, desenvolvi uma espera por um

resultado que pudesse modificar completamente suas vidas, o que hoje verifico ser

impossível, já que cada um deles, a seu modo, realiza escolhas. E também, a estrutura organizada em torno deles não parece possibilitar, s.m.j., um avanço na perspectiva dos sonhos juvenis e suas concretizações.

Um grande número de jovens compareceu ao Cras para ensaiar, mas nem todos estavam dispostos a trabalhar no espetáculo. Eles não gostavam de ficar muito tempo dentro da sala de ensaio. Esta também era uma recorrente durante meu trabalho com os meninos da

UNIDADE e, por isso, pedimos a eles que escolhessem onde queriam montar um grupo para

trabalharmos: na sala, na quadra ou em qualquer lugar externo do Cras. Já outros jovens que iam para os ensaios confessavam que estavam ali para ocupar a cabeça e sair de dentro dos abrigos, onde não havia nada para fazer. Os interessados em realmente atuar conosco se incomodavam com os gritos, brigas e atitudes descompromissadas de seus colegas.

Conversação – Grupo Focal III – Meninos, policial e funcionária

Menino Maluquinho – Quando eu vi era divertido, mas depois comecei a desacreditar um pouco porque o pessoal era muito bagunceiro. Aí eu olhava aquela bagunça e gente que não queria fazer. Acabou que no final deu certo. (Pesquisadora: Você tá falando do processo de ensaio...) Foi... (Pesquisadora: Como é que era isso? Me fala assim, como eram os ensaios....o que vocês sentiam?) Bom, eu ficava muito agoniado e não entendia como ia sair alguma peça de lá! (risos de todos); Pelezinho: Pior que era, eu também... Menino Maluquinho – (sinalizando com as mãos) Era assim: um ensaio lá, um ensaio aqui, um ensaio aqui, mas era mais pra uma preparação dos atores. Pelezinho: Mais bagunça. Menino Maluquinho: Aí tinha um ator treinando um grupo, outro treinando outro e outro treinando outro. E acabou que a Lívia ficou com a gente. Aí a gente fez um ensaio lá, aí a gente fez uma minipeça. Eu achei estranho, mas deu certo... Aí depois eu descobri que era pra botar, criar uma peça e acabou que o tênis ficou envolvido na peça. E, depois que eu vi que tava tudo... que os ensaios estavam saindo mais legais, eu tava vendo a peça direito, aí que eu comecei a acreditar mais.

336 Livro I, p. 56-57.