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Na metade do processo, éramos quatro atores: Clarice, Jeferson, Herculano e eu. Se antes Zé Regino e Carlos estavam conosco atuando, nas últimas semanas, seus papéis como diretores se delinearam mais claramente. A estratégia passou a ser de que nós, atores,

obedeceríamos às instruções dos diretores, a fim de que os jovens nos seguissem. Na maior

parte do tempo isto passou a dar certo, já em outros eles questionavam: “Oxi! Não vou obedecer ninguém não, moço!”. Explicávamos e mostrávamos a importância de se fazer o que pedia o diretor, já que o espetáculo tinha que acontecer com um ritmo certo, seguindo uma

sequência, em silêncio para que o público compreendesse e se tornasse bonito. A palavra bonito era usada várias vezes, principalmente por Clarice: figurino bonito, teatro bonito, texto bonito, rap bonito. Estes eram os conteúdos e princípios do nosso fazer que permitam falar,

de certa forma, sobre a técnica teatral.

Nos ensaios finais levei a Carlos uma sugestão para que os jovens entendessem o que estávamos fazendo e o que eles iriam apresentar. Com o objetivo de mostrar que o público assistiria as cenas de forma colada como um filme, mas ao vivo, montei um painel com vários símbolos que representavam cada um dos momentos – cenas do espetáculo. Este mapa das cenas nos acompanhou até o último dia, sendo que todos nós: atores, meninos, direção consultávamos ele a todo o momento. Ele nos auxiliou inclusive nas coxias, quando

recebemos o auxílio dos dois servidores da SEDESTMIDH/DF, que ajudavam os jovens na entrega de objetos e preparação para cada cena. Apesar de todo o auxílio e aparato, os jovens sabiam seus momentos de entrada e saída e já tinham zelo com seus objetos.

Figura 35 – Amostra do Mapa de símbolos ( para a cena com respectivas fotografias de cena. Símbolo da garrafa para a cena da mãe bêbada e a filha. Símbolo do “baculejo” para a cena do “baculejo”

Fonte: Recortes – Lívia Fernandez; Fotografias: Ricardo Padue.

Com a proximidade da estreia, ficamos bastante apreensivos e passamos a não mais permitir a entrada dos jovens que apenas “criavam algazarra” dentro da sala de ensaio. Para aqueles que eram da UNIDADE, eu conversava antes de entrarmos na Kombi e explicava que estávamos tentando encerrar as cenas e que, portanto, gostaríamos que fossem para o ensaio apenas aqueles que desejavam se apresentar. A maioria nos acompanhava. Ocorre que os jovens que não trabalhavam conosco tinham o hábito de ocuparem o restante da unidade do

Cras, sendo que a própria coordenação, motivada pela reclamação da vigilância do local, restringiu nosso espaço de trabalho à sala de ensaio.

Na tentativa de proteger os jovens e o trabalho que estávamos desenvolvendo, buscamos, principalmente nas últimas semanas, estarmos mais próximos deles. Eram brigas, murros, socos, ameaças entre os jovens. Embora no decorrer do processo isto tenha diminuído bastante, ainda assim ocorriam ocasionalmente discussões entre eles. Além disso, o

desaparecimento dos jovens havia diminuído, e para minimizar os impactos no espetáculo,

nós atores memorizamos todo o texto dos jovens, para cobrir eventuais ausências, o que foi necessário em algumas cenas. Já em outras, Carlos colocou mais de um jovem para a mesma personagem, o que causou certo incômodo, já que os jovens não queriam abrir mão de “suas cenas”. Carlos calmamente explicava a eles que era normal no teatro ter mais de um ator para uma mesma personagem, para evitar que a cena fosse cancelada. Se no início do processo achávamos que quase nenhum jovem fosse permanecer, ao final, tínhamos conosco dezessete jovens perguntando se iríamos viajar com o espetáculo. Conseguimos formar até mesmo uma roda de conversa e motivação, ao final dos ensaios, que passou a se repetir em todos os ensaios gerais e também nas apresentações: era a Roda do Bom dia que havia se transformado em nosso Canto de Guerra ao terminar gritando: “Merda!”

Os ensaios finais de Meninos da Guerra aconteceram dentro da UNIDADE. Montamos a estrutura metálica com a ajuda dos jovens, que ficaram bastante empolgados. Em uma das noites, após guardarmos os equipamentos na sala de teatro, os jovens Tristeza e Gavião disseram a Carlos e a mim que era muito ruim quando íamos embora, já que eles não tinham

nada para fazer e que gostavam de nos ajudar a montar os equipamentos. Perguntavam,

inclusive, se não havia outra vaga para eles na Companhia de Carlos e Clarice, e que Besouro havia se “dado bem” em ter conseguido um emprego na Cia La Casa Incierta. Perguntaram- me se eu não conseguia algum emprego para eles, algo que fosse para “carregar coisas”, pois gostavam.

A atmosfera no pátio e nas salas da UNIDADE ficava diferente enquanto estávamos lá. Nós, artistas do espetáculo Meninos da Guerra, circulávamos na UNIDADE com nossos figurinos, gritos, cantos, berros e brincadeiras. Eu percebia que o fato de estarmos à vontade dentro da instituição repercutia nos horários e movimentação do local. Entrávamos com carros para descarregar materiais, fazíamos nossas ligações para a produtora, pedíamos pizzas. À época dos ensaios de Meninos da Guerra, tivemos total apoio da coordenação provisória da

trabalho, que consistia em estar com os jovens e fazê-los acreditar que era possível estar em cena. Participei de algumas reuniões na direção da SEDESTMIDH/DF onde discutíamos como projetos futuros com a arte e a segurança comunitária naquela seara pudessem ter maior apoio e infraestrutura pelo Estado, pois a nossa fonte de recursos advinha apenas da Secretaria de Cultura. No entanto, com a constante troca administrativa nos órgãos públicos, a continuidade se perde.