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LIVRO V – DOS ACHADOS NA RUA

Assunto 12 Um buraco na muralha: o projeto Giração

Desde o início de minha convivência com jovens e servidores na UNIDADE, ouvia uma palavra constante, Giração. A UNIDADE por vezes era chamada de Giração ou, ainda, de

Projeto Giração. Durante os percursos com os jovens até o local de ensaio de Meninos da Guerra, eles me contavam seus sonhos, reclamações e compartilhavam histórias de vidas.

Conversando sobre a UNIDADE diziam-se saudosos do Projeto370.

O Projeto Giração corresponde a uma iniciativa do Centro de Referência, Estudo e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria)371, a Petrobras e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal. Inaugurado em 2007, o Projeto tinha o valor de aproximadamente R$ 300.000,00 fornecidos pela Petrobras. Realizei uma conversa com a cofundadora do projeto, Eliena Francisca de Barros, a Tia Eli, a fim de saber informações

370As informações sobre o Projeto Giração foram retiradas de entrevista realizada com Eliena Francisca de

Barros, militante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de rua, desde 1986 e coordenadora do projeto no período de 2007 a 2012. Além disso, serão utilizados materiais disponibilizados pela própria entrevistada e entrevistados do Grupo Focal I – servidores da SEDESTMIDH/DF. Em razão da impossibilidade de se manter o sigilo sobre a identidade da entrevistada diante de sua ação peculiar como cofundadora do projeto, foi realizada por esta pesquisadora, consulta ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/IH), a fim de que fosse autorizada a divulgação da identidade da respondente, com a condição de serem omitidos de sua transcrição, nomes e demais informações que possam prejudicar terceiros ou a própria respondente.

371 O Centro de Referência, Estudo e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) é uma Organização Não

Governamental (ONG). De acordo com informações constantes em um sítio oficial, a ONG foi fundada em 1993 por iniciativa de um grupo de profissionais militantes em Direitos Humanos, tendo como missão a defesa de crianças, adolescentes, jovens e pessoas ameaçadas ou violadas em seus direitos. Constitui-se como um Centro de Pesquisa, capacitação e ações que vislumbrem subsidiar políticas públicas e Organizações da Sociedade Civil. Disponível em: <http://www.salvemascriancas.org/wp/?p=4152>. Acesso em: 5 abr. 2016.

sobre o Giração e sua ligação com a UNIDADE. Além dela, a Conversação com o Grupo Focal I – servidores da SEDESTMIDH/DF trouxe-me fatos históricos que permitiram ter outras compreensões sobre o funcionamento da instituição.

O projeto inaugurou a história do serviço prestado hoje em dia. No ano de 2009, instala- se fisicamente no local onde atualmente funciona a UNIDADE, iniciando a proposta de unir Sociedade Civil e Governo, a fim de que o cuidado e o acolhimento aos jovens em situação de

rua pudessem ser exercidos como política pública. A proposta era transferir a metodologia do Projeto Giração para servidores e Administração Pública.

Conversação Grupo Focal 1 – Servidores SEDESTMIDH/DF

Brunetto – “[...] a ideia é que houvesse a transição de uma metodologia. Que

as pessoas que atuavam dentro desse movimento fizesse essa transição: formasse a equipe de servidores dentro daquela metodologia. A ideia é que esse momento híbrido acontecesse para que a transição se desse.”

Tia Eli – “[...] aí quando nós chegamos no GIRAÇÃO era uma parceria

MOVIMENTO e SEDEST. A SEDEST entrava com aquele espaço, telefone, água e luz e a comida e nós com a metodologia e com os educadores do MOVIMENTO.”

Identifiquei também o consenso entre a cofundadora do Projeto Giração e os servidores da SEDESTMIDH/DF quanto à necessidade do atendimento aos jovens em

situação de rua ser uma política pública:

Conversação Grupo Focal 1 – Servidores SEDESTMIDH/DF

Beatrice – Quando você perguntou se deveria voltar com a ONG, a minha

opinião é que o Estado deve assumir isso. Mas a questão é que a política social tem dificuldade. Se você olhar o SUS não atende o povo brasileiro, ele atende parte. Porque não tem recurso suficiente e investimento suficiente. Porque os Estados e os governantes não assumem essa tarefa dessa política social, de fato. E muito menos da assistência social. Porque na saúde você tem uma pressão da população. A classe média está denunciando, tem uma pressão da demanda, e o Estado tem de movimentar e tem de oferecer alguma coisa. Agora com relação à assistência social, que atende o desvalido, atende o não cidadão, atende aquele que não tem poder de pressão. Então o Estado não sofre uma pressão.

Tia Eli – Nós estamos lutando a vida inteira por política pública! Por que

que a gente acredita na política pública? Ela pode ser compartilhada! É porque os impostos dos trabalhadores tem de servir de volta para os trabalhadores. E é o Estado que detém o dinheiro dos trabalhadores, então é o Estado que tem obrigação. Uma ONG jamais vai cumprir o papel do Estado. Por que? Porque ela não detém o recurso. O Movimento de Meninos

e Meninas de rua sabe trabalhar, sabe articular os meninos, tem metodologia pra isso, mas ele não tem os recursos financeiros.

A importância de entender o Projeto Giração e o trabalho que foi desenvolvido por Tia

Eli e sua equipe de educadores sociais justifica-se diante de sua recorrência na fala dos jovens quanto aos aspectos de vínculo, afeto e sensação de acolhimento, o que não presenciei

em relação à UNIDADE e unidades de acolhimento, conforme episódio narrado por

Pelezinho, em relação à sua estadia:

Conversação Grupo Focal 1II – Meninos, Policial e Funcionária

Pelezinho – Eu fui pro abrigo porque foi o meu salvamento mesmo, porque eu tava na rua, completamente na rua. Aí eu fui pra UNIDADE. Não gostava

muito de lá não, porque tinha gente muito grande e eu apanhava pra caramba, apanhava muito mesmo, muito... Aí eu conheci todo mundo melhor, aí o Besouro não deixava ninguém me bater... Quem me batia, já escafedeu-se já...

Se por um lado os jovens falavam em nossas conversas sobre o carinho e a saudade que sentiam do Projeto Giração, identifiquei uma espécie de contentamento em relação às

unidades de acolhimento, as quais foram mencionadas pelo papel de prover sustento físico e

básico a eles:

Conversação Grupo Focal 1II – Meninos, Policial e Funcionária

Princesa – Aí, a coisa boa é que eles incentiva a gente a estudar, insere a

gente em trabalho: Jovem aprendiz, essas coisas. A gente tem boa alimentação, essas coisas, né?

O Projeto Giração pareceu-me ser bastante agradável aos jovens da UNIDADE que a frequentaram há época. Referiam-se à administradora do projeto, Tia Eli, como a “mãe de todos” e que “cumpria o que falava”. Mencionavam que, caso não fosse possível realizar algo ela “não se comprometia”, sendo, portanto, “diferente do que acontece na UNIDADE”. O nome do Projeto Giração, de acordo com a entrevistada Tia Eli foi uma criação do próprio grupo de jovens que constituía a base do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal. O nome articula com organicidade a vivência dos jovens de rua que possuem o hábito de circular e movimentar:

Tia Eli – Aí os meninos já tavam cansados dessa história de nome. Aí falou

Giração. Por que a ideia de Giração? Que já era que eles girava mesmo,

girava na Rodoviária, girava duma cidade pra outra... e ação porque a gente ia produzir novas ações. Aí ficou Giração! Por isso que são tão ligados neste diabo desse Giração, até hoje...

Entre as informações trazidas pelos jovens sobre o Projeto em nossas conversas e anotadas em meu Diário de Campo destaco:

a) Os quartos eram divididos entre os “caixa baixa” – menores de 12 anos, os meninos, as meninas, as “libélulas” – homossexuais, os maiores de idade da Rodoviária do Plano Piloto e os casais;

b) A comida poderia ser preparada pelos frequentadores, ao contrário do que ocorria na

UNIDADE, onde um dos jovens disse ter sido impedido por um dos servidores pelo

fato de “gastar muito gás”;

c) A equipe do Projeto Giração fazia os jovens “se sentirem em casa”, porque os funcionários eram mais próximos deles e atenciosos; e

d) Havia “assembleias” em que os jovens podiam se manifestar e opinar sobre suas condições de acolhimento e também reivindicar melhorias.