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LIVRO II – DOS CANTOS NOS ABRIGOS

Assunto 4 o – De teto e paz

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Hoje, às 4h30, ao retornar para a UNIDADE para devolver os oitos jovens, após gravarmos a cena do filme “Kaligrafia Maldita”, fui surpreendida com questões como:

206 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro com meninos e meninas de ruas: nos caminhos do grupo Ventoforte.

São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 125. (grifos nossos).

207 FOUCAULT, Michel, 1987, p. 158.

“Professora, por que eu sou feio?” “Eu vou morrer sozinho?” E também, fui arrebatada por casos como: “joguei água quente nele porque batia em mim e na minha mãe e não me arrependo, não guardo ódio dele”. Havia constatações como: “casa é qualquer lugar onde se tenha um teto e paz”.

A UNIDADE, chamada por alguns jovens de “casa”, trata-se de uma instituição

peculiar, pois não se caracteriza como acolhimento institucional, tampouco como casa lar,

uma vez que os jovens que ali habitam não estão sob medida protetiva jurídica, ou seja, não houve por parte do juízo da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal decisão proferida, determinando o acolhimento institucional deles. É qualificada internamente como uma instituição de transição para o jovem que ainda possui um vínculo crônico com a rua e não consegue ainda se fixar em uma unidade de acolhimento.

Para tanto, o intuito seria trabalhar com estes jovens a constituição de vínculo, a fim de

que possam sentir-se aceitos e serem direcionados ao acolhimento institucional. A par disso,

há jovens na UNIDADE que entram e saem com frequência, passando longo tempo na rua ou na casa de familiares para depois retornarem. Há também aqueles que a adotam como residência, pois moram nela há alguns anos, não tendo sido ainda transferidos para unidades

de acolhimento por não aceitarem. Em razão de não estarem sob acolhimento institucional, os

jovens podem permanecer ou deixar livremente a unidade.

Para prestar este serviço, a UNIDADE conta com a seguinte tabela de funcionários e serviços:

Tabela 1 – Funcionários e serviços

Cargos/Serviços Números

Psicólogos 2 (sendo 1 assessor técnico)

Pedagogo 1

Educador Social de rua 1

Abordagem social de rua 1 equipe

Cuidadores 13

Educador do meio ambiente 2

Educador de social 1

Assistentes sociais 1 (gerente da unidade)

Coordenador 1 (cargo ocupado pelo Assistente Social) Assistência à coordenação 1 (cargo atualmente ocupado pelo servidor

psicólogo) Funcionários de limpeza e conservação 5 (empresa contratada) Veículos 1 (Kombi) Agente administrativo 1

Alimentação 1 (empresa contratada)

Vigilantes 8 (empresa contratada)

Fonte: Informações enviadas pela UNIDADE em 28 de julho de 2016.

A experiência por cerca de dois anos e meio na UNIDADE – período de setembro de 2013 a dezembro de 2015 – possibilitou-me a percepção da existência de normas de

convivência não escritas, porém praticadas e estabelecidas pelas coordenações com as quais

mantive contato:

1) Não é admitida a entrada no estabelecimento se o jovem estiver sob o efeito de drogas;

2) Não é admitida a entrada no estabelecimento de drogas lícitas ou ilícitas trazidas pelos jovens, sendo que, para se manter o vínculo e confiança, alguns servidores optam por não revistarem os jovens, mas estes são alertados de que tal atitude não é permitida. Outros servidores optam por realizarem revista nos jovens;

3) Não é admitida a entrada de meninas no estabelecimento (aproximadamente, a partir do 2o semestre de 2014);

4) Não é permitido presentear apenas um dos jovens para que outros não se sintam rejeitados (a partir de outubro de 2015);

5) Não é permitida a entrada de agentes da Polícia Civil ou Militar no estabelecimento (a partir de outubro de 2015);

6) Não é permitido dormir na sala de televisão;

7) Punição de não poder entrar na UNIDADE por no mínimo 24 horas em caso de descumprimento de algumas normas, como provocar brigas com outros jovens (em vigência na coordenação dos anos de 2013 e 2014);

8) Não é permitido o exercício de trabalho voluntário por terceiros, sob o argumento de que requer normatização para tal situação (informação verbal pela coordenação atual, a partir de setembro de 2015).

Quanto à estrutura física, no período em que a pesquisa se realizou, a UNIDADE funcionava na área central de Brasília, apresentando as seguintes características:

1) Área externa cercada, com uma guarita e dois vigilantes na entrada; garagem ampla; área verde com árvores e um depósito de materiais usados – espaços nos quais não foram observadas as práticas de atividades pedagógicas, culturais e educativas no decorrer da pesquisa, com exceção da realização de confraternizações entre servidores e jovens diante da proximidade de datas festivas;

2) Área interna com os seguintes compartimentos: três cômodos destinados a dormitórios coletivos, sendo aproximadamente três a quatro jovens por cômodo, com a ressalva de que o número máximo de jovens que presenciei convivendo no mesmo período dentro da unidade não ultrapassou a dez. Dois cômodos destinados ao quarto dos jovens apresentavam banheiro. Durante o breve período em que foi permitida a estadia de meninas na UNIDADE (de outubro de 2013 a aproximadamente final do primeiro semestre de 2014) um dos quartos era de uso exclusivo delas; Sala de informática com aproximadamente oito computadores; Lavanderia com máquinas de lavar para manipulação dos jovens, os quais a utilizavam em sistema de rodízio; Sala de televisão com dois sofás e uma TV LCD; Sala de teatro e atividades lúdicas – De Profundis;209 Sala para o

plantão de cuidadores com uma televisão, armários, uma cama, mesa e geladeira, em que permanece o livro de ocorrências da unidade; Cinco salas destinadas à administração da UNIDADE (psicólogos, coordenação, administrativo, assistência social, pedagogos e enfermagem); Refeitório; Banheiro coletivo danificado – torneiras com mau funcionamento e chuveiros estragados em consequência, às vezes, de vandalismo praticados pelos jovens; Sala para os funcionários da limpeza do local e guarda de materiais de limpeza; Sala com armários com chave utilizados pelos jovens, com a supervisão dos cuidadores, sendo que, em determinado período da pesquisa as portas dos armários haviam sido danificadas pelos próprios jovens; Paredes sujas, contendo pichação e rabiscos nas paredes.

209 A sala de teatro da UNIDADE foi batizada de Sala De Profundis pela psicóloga e o pedagogo que

acompanhavam o meu trabalho, a partir de uma atividade desenvolvida por eles junto aos meninos com a exibição do filme de animação De Profundis, de Miguelanxo Prado.

Em relação aos horários e atividades cotidianas, a coordenação da unidade, no período de setembro de 2013 a meados de março de 2015,210 apresentou diferentes tentativas de organizar as atividades de rotina dos jovens. Em geral, não havia impedimento para que os jovens despertassem mais tarde, no entanto os cuidadores eram sensibilizados sobre a importância de se aproximarem dos jovens e tentar fazer com que eles despertassem e também fossem dormir mais cedo. Entretanto, havia muita resistência por parte dos jovens, já que a maioria tinha o hábito de dormir tarde, seja assistindo TV, seja conversando. As refeições eram servidas em média quatro vezes ao dia: desjejum, almoço, lanche da tarde e jantar. Os passeios dependiam das relações de vínculo e afinidades entre jovens, cuidadores e técnicos e a disponibilidade por parte destes últimos.