• Nenhum resultado encontrado

Quanto aos servidores, durante as oficinas de teatro, procurava convidá-los para participarem das atividades. Com isto buscava incentivar o entrosamento do grupo que convive diariamente naquele ambiente. Percebi que durante os jogos e exercícios qualquer gesto dos jovens julgado pelos funcionários como mais “exasperado” era motivo de repreensão, mesmo silenciosa, com a finalidade de que “se comportassem”. Há uma “microfísica do poder” aplicada diretamente ao corpo. Foucault menciona que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.”211

Acredito que o contrassenso desta situação está no propósito do serviço social e da política de assistência social. Divulga-se a mudança de paradigmas de uma política que seria

assistencialista para a de acolhimento e empoderamento. Dentro desta lógica, o livre-arbítrio

e a escolha poderiam preponderar. Não identifiquei de forma coesa tal situação, salvo iniciativas pontuais de alguns servidores, como tentar conseguir bolsas de estudo de idiomas e atividades desportivas para os jovens. Porém, os servidores facilmente desistem ou adoecem

por estresse e depressão.

Em uma análise mais apurada, os jovens me parecem permanecer dentro da UNIDADE e das unidades de acolhimento nas quais estive sendo objetos de direito e não sujeitos, como

210 Refiro-me ao mês de março do ano de 2015, pois foi neste mesmo mês que eu encerrei as oficinas regulares

na UNIDADE e passei a me dedicar com exclusividade ao processo de montagem de Meninos da Guerra, o qual envolvia outras instituições de acolhimento além da UNIDADE, sendo os ensaios realizados no CRAS da Ceilândia-DF. Ressalto ainda que, mesmo encerrando as atividades de teatro na UNIDADE, eventualmente a nossa equipe de Meninos da Guerra realizou ensaios, vivências e visitas no interior dela.

pretende a legislação vigente. Não há uma ação política que trabalhe diretamente e de forma contínua a consciência e a autoestima. O atendimento é pouco efetivo, pois não vislumbra a

autonomia dos sujeitos, que são controlados para criar um clima de tranquilidade. Há por

parte de alguns cuidadores o interesse velado de exercer adestramento, ocupando-se em adequá-los a um comportamento socialmente esperado, sendo-lhes apontados frequentemente os “erros”.

Conversações – Grupo Focal III – Meninos, policial e funcionária

Princesa – Eu acho que as pessoas que trabalham com a gente, técnico, essas pessoas assim… Eles deveriam enxergar mais a gente, porque lá a gente não é visto. A gente não, não… Sei lá como é que fala! Eles não prestam muita atenção na gente… Só quando a gente faz alguma coisa errada, que eles enxergam a gente mesmo. Quando a gente faz o certo eles não enxerga! Acho que tinha que melhorar isso… Só isso.212

Concordo com o pesquisador Diego Silva213 quando menciona a imprescindibilidade da gestão emocional para a realização de qualquer trabalho com os jovens em situação de

acolhimento institucional e vínculo com a rua. Percebi que grande parte dos servidores,

especialmente os cuidadores, oscilavam suas condutas entre a vigilância ou a infantilização dos jovens. Em um caso ou em outro, a atitude apontava para um temor incrustado naquela relação que envolvia o jovem, a UNIDADE e o servidor.

A preocupação com o “funcionalismo social” do jovem propiciava um ambiente de vigilância. Parecia pairar a questão: “Como torná-los mais úteis e funcionais para a vida?” Assim, concordo com o pesquisador Vicente de Paula Faleiros que, em seu artigo intitulado

Desafios de cuidar em Serviço Social: uma perspectiva crítica, traz à tona a prática reiterada

do Serviço Social ainda sob a abordagem “funcionalista e adaptativa, centrada no indivíduo”.214 Com isto, compromete-se a autonomia dos sujeitos e o trabalho de cuidado parece ainda centrar-se sob uma perspectiva puramente assistencialista. Sob outro prisma, há o movimento de reconceituação do Serviço Social já sob a análise crítica na estrutura e história do capitalismo, articulando o poder e o saber. De acordo com Faleiros, há no exercício do cuidado a prática do “descuidar capitalista”, refletindo que há a “integração” dos sujeitos em um processo de trabalho com oferta de obra e obtenção do lucro, ou ainda, o exercício do domínio, o qual considera como “valor” a resignação dos sujeitos215.

212 Livro Anexo – Conversação 3 – Grupo Focal III. 213 Ibid, p. 106.

214 FALEIROS, Vicente de Paula. Desafios de cuidar em Serviço Social: uma perspectiva crítica. Revista Katálysis. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Florianópolis, v. 16, n. esp., p. 83-91, 2013. 215 Ibid., p. 87.

A busca de uma utilidade ou ainda de resignação dos jovens por parte dos cuidadores, pareceu-me algo muito claro no cotidiano da UNIDADE.

Ao realizar uma análise no Edital de Seleção da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest) do ano de 2008 verifiquei que o propósito do serviço social pautado na autonomia dos acolhidos consta como uma das atividades descritas no cargo de Cuidador Social, como se segue:

2.1.2. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DAS ATRIBUIÇÕES: executar atividades de proteção social especial em unidades de alta complexidade, relacionadas ao acolhimento, e assistência às crianças, adolescentes, famílias, idosos e pessoas com deficiência sob seus cuidados; e importância das normas de convivência comunitária; exercer papel de mediador de conflitos; participar e contribuir para o processo de reintegração familiar dos usuários e colocação em família substituta, ou similares; participar da vida escolar dos assistidos; zelar pela integridade física, emocional e mental das crianças, adolescentes, famílias, idosos e pessoas com deficiência; auxiliar na construção da autonomia e da autogestão dos usuários; participar de programas de treinamento; executar outras atividades de interesse da área216

Entretanto, como atesta a socióloga Analía Laura Soria, as tarefas de cuidadores em instituições de longa permanência assumiram a característica de Taylorização, o que se torna conflituoso, considerando que o trabalho de cuidado possui dimensões complexas que perpassam os campos afetivos, cognitivos, morais, não admitindo esta simplificação das atividades.217 Os caminhos para o acolhimento precisam considerar a relação entre acolhido e cuidador, construindo espaços de inclusão e escuta, com atenção à diversidade e alteridade. Assim, os especialistas Vicente de Paula Faleiros e Analía Soria parecem confluir, sendo que esta última afirma a necessidade de se investir em formação técnica contínua, inclusive considerando que o trabalho de cuidador não é considerado uma profissão, pois há uma confusão do trabalho doméstico com o trabalho de cuidado.

Neste sentido, Faleiros argui que dois movimentos serviram para a crítica do cuidado e do entendimento do Serviço Social. O primeiro é o movimento feminista com a exigência de que as políticas sociais devem ser adaptadas aos novos papéis exercidos pelas mulheres e por isso, há uma crítica severa à “masculinização” das políticas públicas e relações familiares.218 Já quanto ao movimento de Direitos Humanos, o autor afirma que o cuidar é fundamentado na

216 Edital nº 1 do Concurso Público nº 02/2008 – Sedest, de 15 de dezembro de 2008. Disponível em:

<https://www.pciconcursos.com.br/concurso/sedest-df-180-vagas>. Acesso em: 18 jul. 2016. (grifo nosso)

217 SORIA BATISTA, Analía; ARAÚJO, Anna Bárbara. Intimidade e mercado: o cuidado de idosos em

instituições de longa permanência. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 26, n. 1, abr. 2011.

dignidade da pessoa humana e, por isso, é propício sua expressão em um sistema de proteção social, onde a cidadania implica em também ter assegurada pelo Estado os direitos por meio de pactos políticos, leis e normas219.

No período em que esta pesquisa ocorreu – setembro de 2013 a dezembro de 2015 – na maior parte das vezes, salvo raras exceções, como festas e eventos comemorativos, percebi que o ambiente é de desânimo, isolamento, fechamento e de controle. Alguns cuidadores pareciam agir como se temessem os jovens, evitando conversas e interações mais próximas.220 O clima de vigilância era reforçado pela presença de um livro de ocorrências, usado para registrar preponderantemente fatos negativos, tais como, atitudes exasperadas dos jovens, situações de furto, agressões dentro da UNIDADE, condutas que desagradem a coordenação por parte de servidores e jovens.

Na medida em que o meu convívio com os jovens ficou frequente, mais eu os ouvia reclamarem das instituições, apesar de enxergarem nelas uma espécie de refúgio ou salvação. Agradeciam por aquele lugar existir, diante da situação de vida em que levavam com a família ou ainda nas ruas.

Até mesmo os objetos de higiene pessoal que recebiam eram controlados e medidos: sabonetes cortados, tendo no máximo aproximadamente 3,5cm de cumprimento; pedaços de pano, muito próximos ao tipo TNT, xampus e cremes distribuídos em pequenos copos descartáveis. Estes fatos faziam com que a minha observação quanto à UNIDADE fosse próxima de estruturas pertinentes às instituições de controle de condutas em caráter

semiaberto. Com isto, o entendimento do que seria uma instituição de acolhimento e engajamento juvenil tornava-se dissonante do que presenciava no local, dia após dia. A

convivência naquele ambiente, tentando fazer com que servidores e jovens se motivassem, impactou-me de forma direta. Era impossível, em certos momentos, não ser militante por melhores condições de vida para os jovens. Algumas reclamações sobre as condições que desgastavam os jovens eram levadas à coordenação e direção da SEDESTMIDH/DF diretamente por mim. Houve uma reverberação no local quanto a isto.

219 Idem, p. 85.

220Na obra Racionalidade das leis penais e legislação penal simbólica os autores Hommerding e Lyra analisam,

partindo das contribuições de Foucault e Deleuze (contemporaneidade), que enquanto na sociedade disciplinar (Foucault), o controle era empregado no corpo, com o intuito de corrigi-lo, na sociedade de controle (Deleuze), a

Conversações Grupo Focal I – Servidores SEDESTMIDH/DF

Dante – O que acontece com a Lívia é que ela trouxe um discurso teatral muito claro de luta pela repressão. É um trabalho muito claro. Olha temos de discutir o oprimido, o embate de poder, e isso é um discurso muito claro que inevitavelmente você vai chamar a polícia. Paulo Freire fala que o papel da polícia é de guardar o capital, então na relação de poder, que é a discussão da Lívia, ela traz que as pessoas são importantes. Eu não acredito que o papel policial da Lívia foi predominante no início do trabalho dela. No início do trabalho dela eu acredito que ela incomodou mais porque ela estava suscitando questões de opressão, e eu acredito que isso machucou muito a nossa coordenação quando ela se viu questionada nas atitudes dela de oprimir o nosso acolhido. Muitas vezes quando o acolhido era colocado pra fora da unidade por uma suspensão, e aí a Lívia fez intervenções com adolescentes que tinham sido colocados pra fora e: como é que foi esse negócio, quem é que foi que fez isso… porque a questão dela era entender a opressão, o oprimido, e quando a coordenação percebeu esta atuação da Lívia, que ela estava de forma indireta colocando em xeque aquelas opressões, a coordenação ficou incomodada. (grifo nosso)

Este quadro me leva a crer que a situação de jovens que, de certa forma, optaram por

viver na rua deva ser avaliada com certa cautela. A especialista em teatro em comunidade e teatro para o desenvolvimento, Márcia Pompeo Nogueira, menciona que a rua é um espaço

onde se sobrepõe liberdade e violência. Se por um lado a liberdade atrai o jovem, a violência o espreita, já que está sujeito às represálias do tráfico e da polícia.221

Na obra Meninos de Rua, de Rosa Maria Fischer222, há o depoimento de um jovem quanto à liberdade que a rua propicia:

Em casa eu estava melhor do que hoje, não tinha medo. Mas eu não volto pra casa. Eu gosto dessa vida, moro na rua, vou pra onde quero, ninguém me manda. Mas em casa eu estava melhor do que hoje. Nesta vida não tem feriado, é sempre vida de trabalho. Quando a gente acostuma é fogo, é um vício.223

Acredito que a busca pela liberdade obstrui o entendimento e resposta dos jovens dentro da UNIDADE às regras ou normas, as quais podem conter traços de violência

simbólica. Há um grande esforço e tentativa de se estabelecer horários para eles se

alimentarem, utilizarem a sala de informática de forma mais adequada, sendo que, a atividade mais flexível corresponde a assistir televisão. Os jovens passam horas na sala de televisão

221 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro com meninos e meninas de ruas: nos caminhos do grupo Ventoforte.

São Paulo: Perspectiva, 2008

222 FERREIRA, Rosa Maria Fischer. Meninos da rua. São Paulo: CJP. 1979. 223 Ibid., p. 90.

assistindo novelas, filmes etc. Foram muitos os momentos em que eu chegava à UNIDADE e a televisão estava ligada, mesmo que não houvesse ninguém na sala.