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O trabalho de dissertação de mestrado de Diego Silva Vieira,71 aponta um cenário sobre a dificuldade do emprego do cuidado nos trabalhos com os acolhidos, o que entende precipuamente ser em razão da falta de gestão de emoções por parte dos cuidadores da unidade pesquisada por ele: Unidade de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (Unac). O pesquisador afirma: “O trabalho de cuidado é por sua própria natureza carregado de forte envolvimento emocional”.68 Grande parte das dificuldades apontadas pelo pesquisador

70 Nota de Diário de Campo da autora.

71 SILVA VIEIRA, Diego. “É enxugar gelo”: o cuidado de crianças e adolescentes em uma unidade de

acolhimento do Distrito Federal. 2013. 113 fl. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

parecem similares às questões que vivi durante estes anos de convívio com os jovens da

UNIDADE e unidades de acolhimento institucional. “É um trabalho complexo que exige

muita intuição.” Esta frase anotei em meu Diário de Campo, sendo de autoria de um dos profissionais que atuou comigo durante grande parte do período de realização do trabalho na

UNIDADE. Talvez seja a frase que mais me impacta. Entendo que o intuitivo foi um

importante elemento para o trabalho nas oficinas e produções artísticas com os jovens, não apenas por traçar a cada instante um novo caminho, mas também por permitir evocar e controlar o envolvimento emocional, o que, certamente, foi muito complicado, tendo em vista que me propus a realizar uma imersão. Quantos de nós estamos preparados para lidar com esta intuição e emoção que nos guia e nos alerta?

A impressão que tenho é a de que os jovens estavam sempre testando os nossos limites: realmente estamos atentos e presentes? Todas as minhas atividades previamente planejadas e organizadas tinham de ceder espaço ao imprevisto. Fora isto, havia as perturbações: pedidos constantes de dinheiro e cigarro. Por vezes, posicionava-me perante eles de forma contundente, ou, como no linguajar deles próprios: “dando uma dura”. Não abri mão do meu objetivo de ressaltar neles a autonomia e consciência sobre o lugar em que estavam e o lugar que queriam construir. O convívio trouxe-me mais do que o esperado, pois além de pretender algo, dispus-me a estar com eles, aproximando-me, talvez, do que Virgínia Kastrup denomina de atenção intuitiva, em que não se procura informações ou algo definido, pelo contrário, há um consentimento pleno.73 Apenas o convívio poderia permitir que os encontros e trocas

imprevisíveis se tornassem possíveis.

Independentemente dos vícios, das reclamações sobre a comida estragada, da tentativa de atender aos pedidos dos jovens que gostariam de entrar no mercado de trabalho, das inúmeras investidas já frustradas de antemão em suas respectivas escolarizações, um item me pareceu de extrema relevância: o envolvimento emocional. Durante o período da pesquisa, em meu convívio com funcionários da UNIDADE, psicólogos, cuidadores, pedagogos, assistentes sociais, sempre recebi o feedback de que o trabalho de teatro era diferente, pois permitia maior aproximação com os jovens. Compreendo tais assertivas e impressões, visto que as atividades artísticas trabalham com o lúdico e a espontaneidade, tão próprias da infância.

O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) elaborou o documento Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, no qual reúne uma série de textos de estudiosos e resultados de pesquisas sobre as políticas de assistência social. Na

73 KASTRUP, Virgínia; TEDESCO, Silvia; PASSOS, Eduardo. Políticas da Cognição. Rio de Janeiro: Editora

abertura do documento há um diagrama em que a convivência apresenta-se como forma da qual o vínculo é o resultado.69 Durante os anos de 2013, 2014 e 2015 mantive o compromisso de comparecer à UNIDADE pelo menos uma vez por semana, preferencialmente às quartas- feiras, para estar com os jovens e lhes oferecer minha atenção e escuta. As oficinas se assemelhavam a ateliês, as quais propiciavam a invenção de um espaço-tempo, em que o brincar era uma constante, tendo implicado na criação de vínculos.

Foi ao conviver com os jovens, atenta aos seus problemas e me oferecendo para ajudá- los e apoiá-los, que percebi estreita ligação de minhas ações com o trabalho de cuidado. Para alguns deles me tornei a tia que trazia balas, chocolates, pendrives; já para outros, uma pessoa disposta a ouvi-los; ou, ainda, uma professora que brincava e jogava. Havia também aqueles que me consideravam uma Paivea, pai e mãe, na gíria dos jovens de abrigo.

Quando iniciamos os trabalhos de ensaios de Meninos da Guerra (2015), eu já tinha alcançado um grau de maior intimidade com os jovens, pois já tinham contato comigo desde o ano de 2013, em razão de nosso vínculo construído nas vivências artísticas das Oficinas de Teatro e também em trabalhos como o filme Kaligrafia Maldita (2014). Deixei transparecer o meu envolvimento afetivo não só com os jovens, mas principalmente com o trabalho artístico. Ao dividir o palco com eles na condição de atriz, em Meninos da Guerra (2015), criei cenas artísticas, a partir de episódios reais que vivenciei nos plantões da Delegacia da Criança e do

Adolescente (DCA),70 por compreender que os assuntos que os levavam até lá, nas noites de plantão, não se tratavam, muitas vezes, de assuntos de polícia.

Escrivã: A gente não é tudo igual não! E você também não é bandido, nem ladrão, nem traficante… Quando foi a primeira vez, hein? Você era um moleque de 4 anos. Chegou aqui chorando. Cê se lembra disso? Os três irmãos… Pareciam que tinham chegado da Etiópia: sem camisa, sem chinelo. Um de 4, um de 7 e o outro de 9 anos, o que morreu. Com fome, raquíticos, chorando com os olhos cheio de remela e o nariz cheio de meleca. A tua mãe não tinha com quê cozinhar. Cê lembra disso? A gente fez uma vaquinha entre os policiais para pagar o botijão que vocês roubaram. Mesmo depois da vaquinha vocês ainda choravam. Ainda me lembro dos teus

69 Disponível em: <http://goo.gl/TLTL70>. Acesso em: 25 mar. 2015.

70 A DCA faz parte da estrutura administrativa da Polícia Civil do Distrito Federal, conforme artigo 5o do

Regimento Interno – Decreto no 30.490, de 22 de junho de 2009, que prevê duas unidades: DCA – I e DCA – II,

às quais fazem parte do Departamento de Polícia Especializada. A existência de um serviço especializado ao adolescente coaduna com o disposto no item 12.1 das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores – Resolução no 40/33, de 29 de novembro de 1985, conhecidas também como Regras de Beijing. O referido item das Regras recomenda a especialização dos serviços de polícia para jovens que

pratiquem atos infracionais. Soma-se a isto as previsões no ECA (Lei no 8.069/1990), especialmente o artigo 88,

inciso V, que estabelece como uma das diretrizes na política de atendimento à integração operacional para otimizar o atendimento aos adolescentes para fins de aplicação imediata da medida socioeducativa pertinente, obedecendo também aos princípios do artigo 100 do ECA.

soluços, eles ainda ressoam na minha cabeça, nos meus sonhos, nos meus pesadelos. Nem todos os policiais são iguais não!

Márcio: E nóis? Os bandido? Não somo tudo igual não! Hoje é meu aniversário. Cadê meu presente?71

Atriz. Vivencio o afeto no campo das Artes Cênicas.72 Quando reflito sobre minha atuação na UNIDADE percebo que me mantive disponível para afetar ou ser afetada, a partir do que reverberasse de meu corpo, ou ainda, do corpo dos jovens. Assim, permitia-me agir, seja em uma afecção alegre, seja triste. Estar com os adolescentes me exigia preparo físico e disponibilidade para ouvir e agir no espaço – correr, dançar, conversar, brincar, jogar futebol, improvisar cenas, questionar, abraçar, chorar, sorrir etc. Estas ações físicas me aproximavam da atuação cênica, em que não se tratava de representar uma personagem, mas sim no sentido que atribui o ator e pesquisador Renato Ferracini:

A ação física é relacional. A suposta “humanidade” e presença percebidas em uma ação física constroem-se nessa relação. Ela não mergulha em um suposto interior emocional do ator, ou se conecta com alguma essência humana profunda e interna. Muito pelo contrário, a ação física se conecta com o fora, ela é um corpo integrado – e por isso relaciona todo seu universo “interno” em fluxo e projeta esse fluxo na relação com o mundo.73

§ “Mas o que eu sinto falta mesmo é das nossas conversas, essas conversas que são boas pra minha cabeça tia.” Pelezinho74

Havia momentos em que eu não estava mais no cotidiano dos jovens, como é o caso de

Pelezinho, que saiu da UNIDADE e foi para uma unidade de acolhimento institucional, e

assim já não podia mais participar dos encontros de teatro às quartas-feiras.

Era a minha atuação no tempo, e não mais apenas nos espaços físicos, que produzia afetos e permitia que uma rede de interações possibilitasse a aprendizagem na experiência. O pedagogo Paulo Freire afirma que a “afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade”.75 Tinha ciência de que a exposição de minha sensibilidade para experimentar o afeto poderia repercutir de forma conflituosa na estrutura arquitetônica, administrativa e relacional da

UNIDADE. No entanto, intuí que apenas a exposição do sensível acrescida de minha fragilidade faria acessar a intensidade de cada um daqueles jovens, possibilitando que os

aprendizados para ambos acontecessem.

71 Trecho da cena O garoto que queria voar, do espetáculo Meninos da Guerra. Texto: Lívia Fernandez – Dramaturgia final: Carlos Laredo.

72 Vide nota de rodapé no 9 da Introdução sobre o entendimento adotado quanto ao termo afeto. 73FERRACINI, Renato. Ensaios de atuação. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 116.

74 Trecho de Diário de Campo da autora – espetáculo Meninos da Guerra, em 6 de agosto de 2015.

75FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e

A atitude de maleabilidade pactuada entre facilitadores e a professora Lívia se pauta em permanecer numa posição de correspondência à situação, sem tentar adequá-la ao programado. Ser receptivo ao que ocorrer – pela força interna (perseverança) aliada (afeto).76