• Nenhum resultado encontrado

Canto III – Duas experiências de “resultados”: Kaligrafia Maldita e A Roda do Mundo e

Assunto 7 o – O cuidado como questão de segurança

Eram constantes os pedidos de objetos como roupas, aparelhos eletrônicos, tênis, bonés, óculos escuros e dinheiro pela maioria dos meninos. Grande parte dos atos infracionais cometidos por adolescentes envolve a esfera patrimonial como observei em minha experiência vivenciada como Escrivã de Policia na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), nos anos de 2010 e 2011.

A necessidade de possuir bens para sentir-se incluso e aceito em um grupo específico é evidente e acentuada entre os adolescentes, o que contribui também para a prática de atos infracionais, principalmente entre aqueles que nascem sob condições de precariedade econômica e social. 328

O professor David Harvey, em palestra ministrada sobre o tema “A economia política da urbanização”, em 14 de novembro de 2014, no auditório do Museu da República em Brasília, reforçou a prática capitalista de especialização em coisas que quebram rapidamente ou são obsoletas.329 Independentemente do sistema político, reflito que talvez práticas como a da performance Roda do Mundo e das Coisas pudesse ser uma iniciação para a reflexão pelos

meninos da UNIDADE, com os jovens atores do filme Kaligrafia Maldita, sobre a nossa

necessidade de consumo, cada vez maior, veloz e ininterrupta. Eu tinha informações, a partir de minha experiência, de que este quadro repercutia para o incentivo de condutas delitivas por parte de classes não empoderadas economicamente, muito embora, não concorde que isto seja determinante, como venho esclarecendo no decurso deste trabalho.

O intuito era estimular os jovens a perceberem as histórias e relações que os jovens atores construíram com seus objetos. Mesmo se tratando de coisas havia entre eles uma relação de afeto – táctil e afetos – sentimentos, contrapondo a ideia de propriedade comercial. Os objetos eram extensão de quem os tinha e poderiam agora ser extensão também dos

meninos da UNIDADE pelo ato de partilhar histórias.

Os objetos eram e foram feitos nas histórias de vida dos atores e agora estariam relacionados e em interação com os meninos da UNIDADE no ritual performático da Roda.

328

Os relatórios da Unicef dos ano de 2002 e 2011 indicam que o grupo de jovens é o mais atingido por situações de desigualdade e iniquidade social. Disponível em: <http://www.unicef.org.br>. Acesso em: 1º nov. 2014.

329

O geógrafo britânico David Harvey realizou conferência no Brasil, entre 14 e 19 de novembro, sobre o tema "Economia Política da Urbanização: acumulação do Capital e Direito à Cidade". O debate ocorreu dentro do evento Pensando o Direito, promovido pelo Ministério da Justiça e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Era um chamado para a constituição do objeto não como coisa pertencente a um sujeito, mas sim, em relação inseparável do próprio sujeito.

Peterson Andrade: Esta camiseta não é uma camiseta qualquer. Esta camiseta me acompanhou em muitas entrevistas de emprego. Minha amiga quem me deu. Ela me ajudou muito. Eu gostaria de dar ela para o meu amigo

(urso carinhoso) pra que ele persista e não desista de seus sonhos na vida. 330

Figura 29 – A “Roda do Mundo e das Coisas” na UNIDADE, em maio de 2014. Roda com atores e jovens da UNIDADE do Filme “Kaligrafia Maldita” apresentada a funcionários da Unidade e convidados

Fonte: Ricardo Barbosa.

A “rebeldia” é uma palavra recorrente para classificar os jovens em risco, como ocorre àqueles com quem convivi na UNIDADE. Em grande parte, saíram de suas casas em busca da liberdade e da experimentação de um mundo sem normas, o que descobririam mais tarde ser impossível, já que a rua possui um habitus próprio.

Existem dois lados opostos da vida na rua, um atrai e o outro repele. De um lado, a rua é um espaço de liberdade; de outro, um espaço de violência. É preciso estar sempre atento, saber “quando a barra sujou”, quando alguém

330 Fala do ator Peterson Andrade durante a apresentação da performance A Roda do Mundo e das Coisas,

“sumiu” com o gravador e a polícia está atrás. Mas é inegável o aspecto de liberdade, de não ser mandado por ninguém, de não ter horários rígidos.331

A partir do meu convívio com os meninos da UNIDADE, fui percebendo que nossas subjetividades estavam sendo moldadas por cada encontro, em um movimento de compreensão e respeito. Eu tinha em evidência o meu propósito de ter uma relação social com aqueles jovens, por intermédio do teatro e outras atividades artísticas, compreendendo os caminhos possíveis para a insurgência de suas respectivas autonomias diante da vida.

Como dito anteriormente, havia encontros em que os jovens me pediam para desenhar e já em outros, apenas ouvia as músicas que eles traziam em seus pendrives e dançávamos rap, ou simplesmente conversávamos. No entanto, em outros momentos, eu jogava assuntos polêmicos e fazia questionamentos para provocá-los a uma discussão sobre trabalho, drogas, violência, polícia, vida na rua etc.

Figura 30 – Jovem realizando o exercício de pintura “Quem sou eu?” a partir do contorno do próprio corpo. Dezembro de 2013

Fonte: Elaboração própria.

331 NOGUEIRA, Márcia Pompeo. Teatro com meninos e meninas de ruas: nos caminhos do grupo Ventoforte.

Figura 31 – Jovem Artesão e o Educador Social Pina (esquerda).

Exercício do “Quem sou eu?” realizado a partir do contorno do próprio corpo (2013).

Fonte: Elaboração própria.

A experiência trouxe-me o entendimento de que formávamos um coletivo de heterogêneos, o que ficou mais evidente quando nos propúnhamos a construir juntos A Roda

dos Mundos e das Coisas332 e o espetáculo Meninos da Guerra333. Todavia, um caminho

anterior havia sido traçado: oficinas, conversas, passeios, lanches, atendimento a ligações por telefone, simplesmente a troca episódios de vida, em que não se buscava solucionar nada, mas mesmo assim, propunha-se agir e não apenas observar

Ter um mundo às mãos é comprometer-se ética e politicamente no ato do conhecimento. É intervir sobre a realidade. É transformá-la para conhecê-la. Há uma dimensão da realidade em que ela se apresenta como processo de criação, como poiesis, o que faz com que, em um mesmo movimento, conhecê-la seja participar de seu processo de construção.334

Esta impressão de que a rua não havia deixado os meninos estava constantemente em meus apontamentos. Os meses se passaram: alguns foram embora, seja para a rua, ou para a casa de parentes, outros foram cumprir medidas socioeducativas em unidades de internação.

332 RODA DOS MUNDOS E DAS COISAS. Direção: Lívia Fernandez. Produção: Intermedia Caliandra.

Fotografia: Rafael Moura. 2014. 1DVD (90 min), son., color.

333 MENINOS DA GUERRA. Direção: Carlos Laredo. Produção: Intermedia Caliandra e La Casa Incierta. 2015.

(80 min), color. Disponível em: <https://goo.gl/2XHXXM>.

334 KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal. Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, maio/ago. 2013. Disponível em: <http://goo.gl/FgyQvl>.

Os novos chegaram e todo o processo reiniciava: abertura para que eles me conhecessem e eu a eles.

Figura 32 – Painel montado pelos servidores com auxílio dos jovens para minha recepção ao retornar de férias – Ano de 2014

§

O Neymar entrou na roda, olha lá o Neymar! No ano de 2013 e 2014, os jovens abrigaram na UNIDADE um cachorro vira-lata chamado Neymar. Neymar era muito querido por todos nós, mas após sofrer uma agressão muito forte, dentro da própria UNIDADE, Neymar não deixava ninguém se aproximar. Parecia que algo no corpo dele havia se quebrado. Ao estendermos nossas mãos para acariciar Neymar, ele nos mordia. Todas as vezes em que eu chegava à UNIDADE observava o comportamento de Neymar. Aproximava-me dele com carinho e lhe dava um biscoito de cachorro. Neymar virou um fã. Todas as vezes em que eu me aproximava com o meu carro no portão, lá estava Neymar. No dia em que fomos apresentar a “Roda do Mundo e das Coisas” consegui fazer com que Neymar entrasse em meu carro e o levei até um Pet shop para um banho. Neymar ficou limpo e recebeu uma gravata. Quando chegamos, ele entrou na UNIDADE para se apresentar com os meninos. Todos comentavam que ele estava contente e manso. Quis muito que Neymar estivesse ali e naquela noite ele passeava amistosamente por todos os cantos. Parecia não se assustar mais com o toque. Os jovens que antes gostavam de assustá-lo e fingir que iriam bater nele se disputavam para acariciá-lo. Dois meses após o dia da apresentação, Neymar sumiu e eu o procurei nas áreas próximas e no canil, sem sucesso.

Figura 33 – Eu e Neymar a caminho do Pet Shop