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Além das histórias que surgiam no espaço do Cras, eu e os meninos da UNIDADE compartilhávamos com o restante do grupo nossas vivências no decorrer dos anos de oficinas. Também costumava contar as histórias a Carlos, que me pedia para reviver os episódios com os jovens. Um exemplo foi a cena do Pingente de Coração, a qual não permaneceu na montagem de Meninos da Guerra, assim como outras criações. Tratava-se de uma situação em que eu havia presenciado o jovem Diamante ameaçar de morte o jovem Carente na sala de TV da UNIDADE. O motivo foi o fato de Carente ter furtado um colar pertencente a

Diamante. O colar é uma espécie de cordão com um coração de plástico, simulando um metal

acinzentado. Eu senti o ódio de Diamante ao “xingar” e ameaçar de morte o jovem Carente. Com medo, este disse que havia encontrado o colar no chão do pátio. Porém, mais tarde revelou-se a verdade: Carente havia furtado o colar entre os objetos de Diamante. Após

Carente devolver o colar a Diamante, eu perguntei: “Diamante, é só um colar de plástico,

você realmente acredita que faz sentido e é proporcional você matá-lo por isso?” Diamante xingava e respirava alto enquanto afirmava: “Ele é um rato, um ladrão, merece morrer!”. Realizei de forma consciente uma intervenção. Olhei para Diamante e seu colar e disse:

“Diamante, é um lindo colar. Dá ele pra mim?” Ele, surpreso, disse: “Ah não, tia! Porra, o

colar é meu.... faz isso comigo não, tia!”. Mantive meu olhar fixo nos olhos de Diamante e a mão estendida em direção a ele. Guardo o colar comigo até hoje...

O mais importante neste episódio foi a nossa tentativa de transformá-lo e apresentá-lo em Meninos da Guerra. Os dois jovens criaram duas personagens cômicas para contar esta história. Como Diamante tinha um perfil para comédia, trouxe-nos, a partir de um jogo de interação com Carlos, a cena com outra abordagem. O jovem corria pela sala atrás de Carente com um tipo exagerado, uma espécie de bufão, enquanto gritava: “Rato! Rato! Rato!”. O jovem Carente exagerava sua voz em um timbre agudo e respondia: “Socorro! Socorro! Socorro!”. Ao terminar a cena, perguntamos se eles já tinham conversado sobre aquele episódio após o dia em que houve o conflito e nos responderam que não. Foi então que o jovem Carente confessou: “E eu peguei o colar mesmo!” O jovem Diamante respondeu: “Eu sei, eu sei!” Os dois riram da situação.

Para facilitar nosso trabalho e conter as brigas e discussões entre facções existentes no próprio grupo de jovens, Carlos, Clarice, Zé Regino e eu nos dividíamos em pequenos grupos, em que tínhamos a independência de criar a cena, dirigi-la e apresentá-la posteriormente a todo o grupo. Mais tarde, Carlos reuniu todas as cenas e teceu a dramaturgia do espetáculo

Meninos da Guerra, agregando às nossas histórias outras cenas criadas a partir de sua

pesquisa sobre as temáticas abordadas nos ensaios. A dramaturgia tinha um tema recorrente, a violência, fosse ela familiar, policial ou ainda, institucional. Resolvemos assumir nosso tema: a guerra silenciosa travada contra a infância de meninos e meninas, que não são “de” guerra, mas sim, “da” guerra. Esta guerra começava em casa e se estendia nas ruas e nos abrigos.

Acredito que a nossa proximidade e o fato de atuarmos com os jovens em cima de suas próprias histórias trazidas a nós fizeram com que eles compreendessem que gostaríamos de

estar com eles em cena, apesar das brigas, discussões e ausências deles no processo.

Estávamos sempre em alerta ao chegar ao Cras, seja pelos acontecimentos fora das cenas – ameaças, disputas de garotas, ininterrupto desejo de drogas, cigarro e balas, seja também pelo que acontecia nas cenas: uma morte revelada, um “crime”, a vida ameaçada pelo tráfico de drogas. Apenas compartilhávamos nossas reações às histórias e víamos os jovens se emocionarem com um abraço ou um choro espontâneo vindo de nós: o canal era a emoção.

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[…] e a Lívia ligou pra mim e me pediu ajuda, pedindo que eu conversasse com o garoto… o desejo da Lívia era colocar o Diamante no processo. E eu me lembro de pensar: poxa, será que vale a pena insistir com esse menino? Já falei duas vezes… mas a energia da Lívia de falar: vai lá, tenta, pelo amor de Deus, por favor… nisso já tinha dado meu horário de ir embora… e fui pra cima do garoto, criei um monte de possibilidades… e com muita luta, o garoto aceitou no final em ir. Mas o engraçado é que eu tentando, tentando, tentando, eu não acreditava que ele ia de jeito nenhum. E foi uma surpresa quando o garoto aceitou! Ele me surpreendeu. O que a gente percebe nessa peça teatral é que esses garotos, literalmente, nos surpreendem quando a gente age com esta insistência. (Dante – Grupo Focal I – SEDESTMIDH/DF)

Conversei com outros artistas que já tiveram experiências em trabalhos com jovens em

situação de rua e ainda acolhimento institucional. Grande parte das pessoas apontou a

dificuldade de trabalhar a questão da disciplina. Acredito que embora tenha sido desafiante lidar com tantas dificuldades, soubemos esperar o momento certo em que os jovens aderiram à nossa proposta. O momento certo aconteceu até o último dia de apresentação do espetáculo no Teatro SESC Garagem. Enxergo aqui, uma forma de participação mais democrática no processo de criação de Meninos da Guerra, seja pela sensibilidade de Carlos, seja pela minha experiência e convívio preexistente com os jovens.

Uma das críticas mais contundentes a Meninos da Guerra foi o fato de que não colocamos os sonhos, os episódios de alegria e descontração dos jovens, que também preenchem o espaço da juventude. A minha vivência com estes jovens durante aproximadamente oitocentos e cinquenta dias me convence de que o descaso e o abandono

são uma constante, e se não apaga por completo a vivacidade juvenil a ofusca. A tragédia é o

pano de fundo da vida daqueles jovens e, como ocorre no teatro, não descarta elementos de comicidade. Havia situações muito engraçadas, como a história contada por Ouriço, que disse ter levado um frango assado à família para o almoço, em certo dia. Ao ser questionado sobre a origem do frango, esperou que todos o comessem para informar que havia conseguido o frango “da vasilha da macumba na rua”. Perguntei a ele se não tinha “medo de mexer com estas coisas”. Ele me disse que era só “fazer o sinal da cruz e estava tudo certo!” Em seguida afirmou: “Oxi, tia! Já roubei altos um real da macumba! Se eu tô com fome, não vai fazer mal! É só fazer um sinal pra Jesus!”