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De educação em educação descobre-se um certo iniciar que não tem fim

Qualquer atividade proposta com os jovens da UNIDADE deveria considerar sua intensidade de criar constantemente situações para si, em um campo de grande inventividade e intenso fluxo. Acredito que tal postura está muito fora do que convencionamos como educação formal nas escolas. Como eles frequentemente fugiam de aulas e de explicações de conteúdos como matemática, português, história etc., procurei dialogar com estas circunstâncias e neste sentido, direcionei as práticas artísticas para um caminho que aponta uma pedagogia teatral não repressora ou reducionista.

De que forma isto ocorria? Facilitando de forma imprevista e mais espontânea possível a discussão dos conteúdos dentro dos jogos e situações encenadas, tais como conversas sobre política, distribuição de renda, opção sexual, violência, estudo, desemprego. O teatro corresponde a um grande instrumento pedagógico, um campo epistemológico potente e diferenciado, como apontam Ingrid Koudela e Arão Santana

Hoje a história e estética do teatro fornecem conteúdos e metodologias norteadoras para a teoria e prática educacional. Podemos dizer que a situação se inverteu, sendo que especialistas de várias áreas em vários níveis de ensino da educação infantil ao ensino superior – buscam a contribuição única que a área de teatro pode trazer para a educação. Ainda que possa ser considerado em grande parte utópico, diante da miséria em que se encontra a educação brasileira, o caminho afigura-se talvez como a última possibilidade de resgate do ser humano diante do processo social conturbado que se atravessa na contemporaneidade.291

Em sua maioria, estes jovens são negros e vivem nas ruas dentro dos moldes de uma guerra civil invisível, que, embora não possua a mesma configuração evidente como a Guerra

da Síria,292 traz a morte de vários jovens nas ruas, na Guerra do Tráfico de Droga. Aliciados e perseguidos pelos traficantes, além de vítimas em potencial da violência policial, meninos e meninas pobres, negros e pardos, morrem sob a nossa visão ofuscada. Em novembro de 2014, a Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

291 KOUDELA, Ingrid Dormien; SANTANA, Arão Paranaguá de. Abordagens metodológicas do teatro na

educação. In: CARREIRA, André (Org.). Metodologias de pesquisa em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 65. (Memória ABRACE IX).

292 A Guerra da Síria dura aproximadamente 5 anos. De acordo com as informações da Organização das Nações

Unidas (ONU), delata-se o número de aproximadamente 250 mil mortos, sendo mais de 10 mil crianças De acordo com informações do Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), aproximadamente 1.100 crianças foram recrutadas pelo Estado Islâmico (EI) em um treinamento militar onde são chamados de “os leõezinhos do Califado”, tendo várias já morrido em luta. Disponível em: <http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2015/07/conflito-sirio-fez-quase-250-mil-mortos-segundo-a- onu/#.VfBcsx1YJT8>; <:http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/07/mais-de-50-criancas-soldados-do-ei- foram-mortas-na-siria-desde-janeiro.html>. Acesso em: 7 set. 2015, às 13h25.

(Anced) divulgou o II Relatório Alternativo sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, apresentado ao Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU. O relatório fornece informações sobre a violação de Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil. Destaca-se a informação de que a taxa de homicídios entre a população jovem (0 a 19 anos) passou de 19,6 em 1980 para 57,6 em 2012, representando o aumento de 194,2%. Quanto ao perfil de jovens, o relatório apresenta a informação de que entre os anos de 2002 a 2012, a tendência nos homicídios segundo raça/cor das vítimas é unívoca: queda dos homicídios brancos – diminuiu em 32,3% e aumento dos homicídios negros: crescem em 32,4%. As taxas brancas caem em 28,6% enquanto as negras aumentam 6,5%. Assim, o índice de vitimização negra passa de 79,9% em 2002 para 168,6% em 2012, morrendo proporcionalmente 79,9% mais jovens negros do que brancos.293

Figura 18 – “Uma” turma de teatro, que frequentemente se desfazia, na sala De Profundis batizada pelo Pedagogo Christopher, 2014

Fonte: Adhemar Gonçalves.

293 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 17 ago.

Figura 19 – A autora jogando capoeira com Besouro na Ermida

Fonte: Registro dos próprios jovens

Figura 20 – Educador Social que acompanhou o meu trabalho nas oficinas de teatro tocando berimbau em um dos passeios para a Ermida

Figura 21 – Educador Social toca berimbau enquanto jogo capoeira com Besouro

Fonte: Elaboração própria:

Figura 22 – O diretor de teatro Zé Regino joga capoeira com um dos jovens enquanto eu toco o berimbau

Figura 23 – Mediação do Espetáculo “Solidão” – SESC Taguatinga – Teatro Paulo Autran

Fonte: Espetáculo “Solidão” – SESC Taguatinga – Teatro Paulo Autran.

Obs.: Os alunos assistiram a apresentação do espetáculo de dança e da mediação da professora de Teatro Lívia Fernandez. Setembro de 2014. Fotografia: Produção do Espetáculo.

Figura 24 – Voltando do passeio da Ermida Dom Bosco. Novembro de 2014.

Fonte: Registro pelos próprios jovens.

A aplicação do teatro como recurso pedagógico consistia basicamente em permitir que os jovens pudessem dialogar com suas respectivas realidades. Não bastava mais “viver” no

mundo, e sim “existir” nele e com ele, por meio da realização, como menciona o educador Paulo Freire.294

A pesquisadora Nize Maria Campos Pellanda295 realiza críticas pungentes à pedagogia

tradicional de ensino formal valendo-se das noções pedagógicas que envolvem o pensamento de Humberto Maturana. De acordo com ela, no ensino tradicional não há a promoção do encontro e, por isso, as relações sociais. As relações sociais para Maturana são imprescindíveis ao acoplamento estrutural e por isso, ao conhecer.

Da mesma forma, tais relações sociais e interações que permitam o alcance do inventivo e, por isso do ato de conhecer, pareciam-me bem distantes no âmbito da UNIDADE. Como já narrado, as relações hierárquicas parecem ser recorrentes nos espaços de acolhimento institucional. Os jovens não possuem, dentro do espaço em que tentam construir a dimensão de “um lar”, ações que invistam em sua sociabilidade.

A pesquisa de intervenção como pesquisa de invenção possibilitou delinear com um pouco mais de clareza a política de afastamento social a que são submetidos, pois ao fomentar ações artísticas como participar de um filme, realizar um espetáculo, pude acompanhar como os jovens dedicavam-se ao “cultivo” de novas amizades e interações. Frequentemente, os artistas e pessoas que encontrávamos em nossos percursos observavam suas vontades de compartilhar histórias e interagir.

Ainda valendo-me das contribuições da pesquisadora Nize Maria no que concerne às práticas educativas nas escolas, perfeitamente aplicadas aos abrigos, a imposição de diretrizes a serem seguidas são “inibidoras de desenvolvimento pessoal, atingindo as capacidades perceptivas dos seres humanos.”296 Esta inibição impede a percepção do sujeito, fundamental para o processo de conhecimento, como avalia Humberto Maturana.

Por este motivo, enxergo que minha relação com os jovens em situação de acolhimento

institucional e vínculo crônico com a rua intentou permear também outros cenários que vão além das classificações de educação não formal ou ainda, informal, notadamente pelo vínculo

com os elementos artísticos. Neste sentido, trago a importante contribuição de Maffesoli ao

294 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 2015.

295 A pesquisadora é professora da Universidade de Santa Cruz do Sul e responsável pelo Grupo de Ações e

Investigações Autopoiéticas (Gaia). A obra a que me refiro trata-se de Maturana e Educação (2009). A leitura sobre as questões trazidas pela pesquisadora na seara da educação possibilitou o aprofundamento nas reflexões que realizei acerca do acolhimento dedicado aos jovens “em situação de risco” nos abrigos.

296 PELLANDA, Nize Maria Campos. Maturana e a educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

esclarecer o processo de iniciação em entrevista concedida ao professor e pesquisador Gilberto Icle:

Assim como o modelo educativo era um modelo racional, o modelo de iniciação – que era o modelo das sociedades primitivas, pré-modernas, e, também, pós-modernas, porque muitas coisas da situação pós-moderna vêm da situação pré-moderna – vai se basear nessa expansão. É mais ou menos a mesma coisa que para o trabalho. A criação é uma expansão do trabalho. Para mim a iniciação é um enriquecimento da educação. Trata-se de reintroduzir o que a educação tinha eliminado: o sonho, o jogo, o imaginário297.

Parecia, por isso, tratar-se de um processo de iniciação, no qual os jogos teatrais, as improvisações e imprevistos nos conduziam a um fazer teatral diferenciado em que a cooperação de todos e a participação coletiva passou a ser importante, como condição até mesmo de se estabelecer uma conversação com os jovens, um ingresso para a vida deles, não

por autoritarismo, mas compreensão e escuta. De acordo com Maffesoli, a educação é um

modelo que não funciona mais, enquanto a iniciação é um processo de acompanhamento em que elementos criativos estão envolvidos. A iniciação parece ter o entendimento do que seja

tempo diferenciado da educação. Ela trabalha com o tempo da convivência que é em si atemporal enquanto cronologia, posto que é afetivo – afetos pela presença. Neste sentido, o

professor Gilberto Icle relacionou a noção de iniciação de Maffesoli com a ideia de tribos, cunhadas pelo próprio sociólogo em O Tempo das Tribos onde o estar junto e a empatia se tornam relevantes no processo de compartilhar.

Parece-me que acompanhar o percurso dos jovens da UNIDADE e suas dificuldades no sistema escolástico tenha sido uma forma de evidenciar esgotamento deste próprio sistema, pois os jovens parecem desejar acolhimento de suas dificuldades e habilidades, muito mais afeito ao processo de iniciação. Identifico ainda que o processo de iniciação, descrito por Maffesoli, está próximo das observações tecidas por Humberto Maturana e Verden-Zöller em sua obra Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano, em que a diversidade aparece como legítima e entrelaça com a possibilidade de consenso em prol do que denomina como “projeto comum de convivência”298

297 ICLE, Gilberto; MAFFESOLI, Michel. Pesquisa como conhecimento compartilhado. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 521-532, maio/ago. 2011. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade>.

298 MATURANA, Humberto R.; VERDEN-ZOLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do