• Nenhum resultado encontrado

Código de Menores Mello Mattos (1927): o foco nos cuidados por nutrizes, na institucionalização e na criação solidária

CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA: O DIREITO PELO AVESSO A engenharia construída com o sistema de proteção e assistência, sobretudo,

1.2 Código de Menores Mello Mattos (1927): o foco nos cuidados por nutrizes, na institucionalização e na criação solidária

O Código de Menores (CM) de 192724 se voltava para o atendimento exclusivo dos menores de dezoito anos que fossem categorizados como “abandonados” ou “delinquentes”, descrevendo para tais categorias, situações em geral relacionadas à precariedade das condições de vida de grande parte da população brasileira num contexto de urbanização.

Vale destacar que a falta de “habitação certa” e de “meios de subsistência” relacionados a falecimento, enfermidade, ausência dos pais ou responsáveis pela criança ensejavam a categorização como “abandono” (artigo 26).

O texto da lei inicia regulamentando os cuidados de crianças abandonadas na primeira infância por meio de guarda, soldada ou ablactação (nutrizes ou “amas de leite”), evidenciando o enfoque na saúde e higiene, listando uma série de condições para que não ocorresse a entrega para pessoas que lhes colocassem em risco25.

Marcílio (1998) contextualiza as profundas mudanças no século XIX em relação a Rodas dos Expostos: o fim do uso das amas de leite e a adoção de um sistema aberto de recebimento de crianças que possibilitava conhecer os pais. Ela pontua que a partir da descoberta de Pasteur sobre a fermentação e a microbiologia é que pôde se desenvolver pesquisas médicas sobre a alimentação artificial, a fervedura do leite animal e a industrialização e o sistema de higienização das mamadeiras, chegando-se à pasteurização do leite. Tudo isso foi muito significativo para a nutrição das crianças pobres e o sistema de amas de leite tornou-se obsoleto.

A foto a seguir, tirada no mesmo Asylo dos Expostos, mostra as amas com bebês e crianças na primeira infância (em torno de cinquenta) que estavam sob seus cuidados em suas moradias. A composição das duas fotos (imagem 2 e 3) ilustra o sistema de institucionalização referido no CM 1927, esclarecendo a ausência dos bebês na foto anterior.

24 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943A.htm. Acessado em 02.05.2015. Embora o Código de Menores de 1927 não tenha regulamentado a adoção, dele retomaremos o que se referir à institucionalização e a menção ao apoio sócio familiar.

Imagem 3: Foto com as crianças e as “amas”, Asylo dos Expostos (antiga Unidade Sampaio Viana da Febem - SP), São Paulo, 1919, publicada na Revista Cigarra.

Nesse código o sistema de rodas foi legalmente abolido, abrindo-se a possibilidade para as mães ou terceiros entregassem os “expostos” (até sete anos) diretamente nas instituições (art.14). Para resguardar o sigilo típico do sistema da Roda dos Expostos e, ao mesmo tempo preservar informações que permitissem a identificação da criança, os artigos 16 a 22 detalhavam formas de preservar a identidade materna e garantir o registro detalhado sobre as condições do abandono ou da entrega. Apesar da possibilidade da entrega direta da criança, quando então poderiam ficar mais claras as razões para tal, o texto da lei coloca ênfase na (des)necessidade da mãe se revelar. A nosso ver, embora a intenção fosse de continuar garantindo o anonimato nas entregas de bebês, é muito revelador das dificuldades que temos na atualidade para trabalhar as famílias.

O artigo 15 decretava que “a admissão dos expostos à assistência se fará por consignação direta, excluído o sistema das rodas”. Mas, apesar de decretar o fim dessa prática secular no Brasil, a lei continuou reproduzindo o paradigma do afastamento das famílias no processo de acolhimento de suas crianças.

Si é a mãe que apresenta o infante, ella não é adstricta a se dar a conhecer, nem a assignar o processo de entrega. Si, porém, ella espontaneamente fizer declaração do seu estado civil, que qualquer outra que esclareça a situação da creança, taes declarações serão recebidas e registradas pelo funccionario do recolhimento. (Artigo 18 – Código Mello Mattos de 1927)

Embora a lei de 1927 trouxesse como importante novidade a entrega direta da criança, é possível afirmar que a ambiguidade do texto reforçou a prática de manter a família da “porta para fora”, desconhecendo os determinantes da entrega de seus filhos e consequentemente mantendo o direcionamento das ações com a tendência a romper e não preservar e manter o convívio familiar e comunitário.

Observamos que tal código, por meio da utilização de palavras diferentes, indicava diferenciação entre o abandono e a entrega, fazendo o uso do termo “apresentação” da criança quando a entrega se dava diretamente na instituição.

Além da colocação das crianças sob cuidados de nutrizes com apoio financeiro e da apresentação direta ou indireta nas instituições, o CM 1927 privilegiava a entrega para pessoas que voluntaria e gratuitamente se encarregassem de sua criação (artigo 23).

Apesar de destacar no artigo 25, penalidades para quem, encontrando recém-nascido ou menor de sete anos abandonado, não avisasse a autoridade pública, em vários artigos há indicativos de estímulo à criação de menores de idade por pessoas de seu conhecimento. A ênfase do texto da legislação ressaltava a perspectiva higienista em relação ao fenômeno de crianças na rua, de forma que diante da família “desqualificada” para o convívio, o que importava era que tal situação fosse “resolvida” seja por uma instituição ou uma pessoa voluntária. Não há qualquer menção a apoio sócio familiar para preservação do convívio com a família e comunidade de origem.

Retomando a observação da foto questionamos: Quantas daquelas mulheres entregaram os próprios bebês diante da pobreza, assumindo o cuidado de terceiros para que, com o pagamento, pudessem cuidar dos outros filhos que tinham? Ou mesmo, será que algumas mães, em acordo com as outras, acabaram assumindo os cuidados dos próprios filhos que foram entregues na instituição? A literatura as chama de “mercenárias”. Seriam mesmo? Qual o sentido dessa estratégia utilizada pelas mulheres brasileiras naquele contexto histórico-social-político e econômico?

Na legislação, apesar da preocupação com a preservação da saúde e da vida da criança, fica clara a perspectiva de coisificação e o privilégio ao atendimento da necessidade da autoridade judiciária, a ponto de no artigo 189 se prever a criação de abrigo, situado no mesmo edifício do Juízo de Menores (art. 197), com direção diretamente subordinada ao juiz.

Os artigos 190 a 192 indicavam que tais abrigos seriam compostos por pavilhões e alas, tais como prisões sugerindo grandes complexos de atendimento para “abandonados e delinquentes”, mas com separação em turmas conforme o “motivo do recolhimento, a idade e grau de perversão”. Era previsto que qualquer menor que “entrasse” no abrigo seria recolhido a um pavilhão de observação, sob isolamento, onde permaneceria o tempo necessário até ser inscrito na secretaria, fotografado e examinado por médico e professor (art. 192).

Segundo Rizzini (1997, p.254) as políticas de atendimento à infância se construíram a partir de uma concepção higienista e saneadora da sociedade. Optou-se, portanto, pelo investimento em uma política predominantemente jurídico-assistencial de atenção à infância, em detrimento de uma política de educação de qualidade, de acesso a todos. Na verdade, a preocupação era com a defesa da sociedade e não exatamente da criança. Para a construção de um país civilizado que era o ideário daquela época, não convinha o abandono moral e material que muitas crianças viviam. A ideia de pobreza e degradação moral estava associada e, aos olhos da elite, os pobres não se encaixavam no ideal de nação.

Como vimos, a medida legal da adoção era extremamente restritiva no Código Civil (1916) e não se voltava para o atendimento dessa população, sendo forte o ideário do controle social por meio da institucionalização e dos cuidados por terceiros, pertencentes ou não às relações dos menores. Às famílias das classes trabalhadoras cabiam vários artigos, voltados para a previsão das situações que levavam à suspensão ou perda, do então, “pátrio poder” (aprisionamento, adoecimento, dependência do álcool, práticas contrárias a moral e aos bons costumes, dentre outros). Embora a guarda para terceiros com apoio financeiro do poder público fosse uma alternativa legalizada, não havia previsão desse apoio para os pais.

Foi a partir da década de 1950, com a aprovação de duas leis que alteraram o CC, que o instituto da adoção começou a se evidenciar como resposta “assistencial” para as crianças “carentes ou abandonadas”, ainda que não diretamente voltada para a população acolhida institucionalmente.

1.3 Após quatro décadas: o descompasso entre as mudanças promovidas pelas Leis

Outline

Documentos relacionados