• Nenhum resultado encontrado

Para não gastar dinheiro, um avarento chamado João de Velós comia somente uma bolacha pela manhã e outra à noite. Assim, reuniu grande fortuna, conseguindo encher duas caixas com moedas de ouro. Tendo- lhe sido proposto um negócio em que devia ganhar muito, foi a uma das caixas e abriu-a, dizendo: — Caixa, empresta-me três contos de réis.

Deixando-o muito espantado, a caixa respondeu: — Este dinheiro não é teu, é de João de Velós.

O avarento desconfiou da história. Aquela mágica da caixa pôs-lhe sal na moleira. Resolveu, por segurança, mudar de terra. Passou o dinheiro das caixas para duas barricas e embarcou para fora do país. Na primeira noite da viagem, quando dormia, o mar se encapelou e quase afunda a embarcação. Diante do perigo de naufrágio, para aliviá-la, o capitão mandou lançar às ondas aquelas duas pesadas barricas, cujo conteúdo julgava sem grande valor, pois o dono declarara estarem cheias de chumbo.

As correntes submarinas rolaram-nas até a costa, levando-as a um curral de pesca dum sujeito que, por coincidência, também se chamava João de Velós, o qual as abriu e, sendo muito caridoso e sem ambição, deu todo o ouro de esmola.

O primeiro João de Velós, na manhã seguinte, quando soube o que o capitão fizera, ficou desapontado e furioso. Tomou um escaler e desembarcou no litoral fronteiro ao lugar onde as barricas tinham sido afundadas, procurando-as como louco. Foi ter, enfim, faminto e esfarrapado, à casa do seu homônimo. Contou-lhe a perda de suas preciosas barricas e o outro não lhe disse que as tinha achado e distribuído o que continham com os pobres. Ouviu-o em silêncio e, penalizado, mandou rechear um pão com moedas de ouro, dando-o ao primeiro João de Velós, quando este se foi embora.

O avarento encontrou no caminho uma comadre do segundo João de Velós que o ia visitar. Ela achou o pão que ele trazia muito fresco e bonito, gabou-o muito e propôs comprá-lo por cinco patacas, pois não queria chegar em casa de seu compadre com as mãos vazias. Levaria, assim, um presentinho. À vista das patacas, o sovina não resistiu e vendeu o pão, ignorando o precioso recheio.

Desta sorte, o João de Velós generoso recebeu de volta suas moedas e o avaro foi, por castigo de Deus, reduzido à miséria.

Este conto é uma como variante bárbara da velha canção portuguesa do sapateiro, que recebeu do rei um bolo com recheio de moedas e dele se não aproveitou, dando razão ao estribilho que repetia:

Ribeiros correm pros rios E os rios correm pro mar Quem nasceu para ser pobre Não lhe vale o trabalhar

No fundo, o conto sertanejo também é parente daquela interessantíssima história de Saad e Saadi, nas Mil

e uma noites, com certeza avó da cantiga portuguesa.

Ver também: O rei e o sapateiro

C10

Ideti — A menina preta que buscava a Deus Zora Seljan (Conto nagô)

Ideti era uma menina órfã que morava com uma tia por nome Adelaiyê e sua prima Omon-Laiyê. Todos os que moravam naquela rua (Ôdé Aiyó), gostavam muito de Ideti e odiavam a prima Omon-Laiyê. Por este motivo Adelaiyê inventou juntamente com a filha que Ideti seria capaz de ir no céu com vida. Imediatamente foram as duas ao palácio do rei Ôba-Laiyê dizer-lhe que Ideti tinha dito ser capaz de fazer uma proeza de que ele ou qualquer outro rei não seria capaz. Perguntou o rei o que dissera Ideti.

— Ela disse que pode ir com vida visitar Ôbá Orun e trazer como prova qualquer coisa de lá. — Respondeu Adelaiyê.

Então o rei mandou chamar Ideti e disse-lhe:

— Sob pena de morte quero que você vá visitar Obá Orun, pois me contaram que você andou dizendo ser capaz de fazer isto.

A moça negou que houvesse dito qualquer coisa parecida. Não sabia como alguém pudesse ir ao céu com vida.

— Ideti, — disse o rei — já dei minha ordem. Agora só resta você pedir o que desejar para fazer a viagem, e que tenha boa sorte!

— Nada preciso, nada quero e nada temo, pois tenho fé em Obá Orun e no espírito de minha mãe. Ideti despediu-se do rei e de todos os que estavam presentes. Foi para seu quartinho, no fundo da casa da madrinha. Encomendou-se a Obá Orun e ao espírito de sua mãe. Arrumou sua trouxinha e saiu a caminho do céu, caminho que ela ignorava.

Andou bastante. Quando já estava muito cansada, sentou-se perto de uma encruzilhada, à sombra de um pé de lôko, que adornava o caminho, para comer um pouco do pouco que levava em sua trouxinha. Foi quando um pássaro pousou perto dela e cantou:

"Ideti Ideti, jála, julo, jála

Obé, aiyê ati arabirin iyá Jála, júlo, jála

Pelo Omobirin - arabirin Jála, júlo, jála, Eke Pin minú I'owó otun Obá Orun féré ú rárá Jála, júlo, jála Ideti."

Com estes dizeres o pássaro dizia o seguinte: "Ideti, sua tia, sua prima e o rei levantaram um grande falso. Tome o lado direito deste caminho que Deus gosta de você e está à sua espera".

A menina recomeçou a jornada sempre pelo lado direito conforme ordenara o passarinho, até deparar-se com um grande portão. Parou e ficou pensando como haveria de atravessá-lo, pois ali findava o caminho. O pássaro tornou a aparecer cantando assim:

"Ideti, Ideti, jála, júlo, jála, Ideti

Agoia ilê iwó ló esó Olorun Jalá, juló, jalá Ideti

Okurin l'owó otun ati osi didê Jála, júlo, jála Ideti

Olorun Agá ijokô Jála, júlo, jála Ideti."

O pássaro voou e Ideti entendeu o seguinte: "Entre, você vai aos pés de Deus. Tem um homem em pé do lado direito e outro do lado esquerdo. O que está deitado entre os dois é Deus (Obá Orun)."

Ela tomou coragem, bateu no portão e este se abriu dando-lhe passagem. Foi andando e avistou uma casa muito grande e muito bonita. Quando chegou mais perto, em frente a uma enorme varanda, alguém veio a seu encontro perguntando:

— O que veio fazer aqui, menina? — Vim ver Obá Orun.

— Você sabe que as pessoas que entram aqui não tornam a voltar?

— Sei. Porém com minha fé e por causa de que fizeram comigo ele me deixará voltar. — Você conhece a quem veio ver?

— Não, mas se me for dado o direito de ver, conhecerei. Levantou-se uma cortina e aquela pessoa perguntou ainda: — Qual desses três é Obá Orun.

— É o do meio.

— Vem cá, minha filha, disse-lhe Deus. Mandaram você fazer todo esse sacrifício e você, confiada em mim, o fez. Receberá a recompensa de tudo isto depois que me catar uns cafunés.

Ela subiu numa espécie de tamborete e começou a catar os cafunés. Deus perguntava sempre:

— Esta vendo alguma coisa? Ela respondia:

— Não, senhor.

Mas via o mar, todo o céu, a terra com todos os seus habitantes, inclusive as casas do rei e da madrinha, o lugar onde ela morava etc.

Então ela começou a chorar pensando que teria de voltar e sofrer mais cativeiro mais ingratidão de sua tia e de morar naquele chiqueiro. Deus consolou-a dizendo:

— Não chore, Ideti, minha filha. Você vai ser muito feliz. Tome este espelho. Quando voltar e tiver de passar nos portões se alguma arárum (alma) tentar impedir, basta mostrá-lo que tudo se arranjará. Tome também estas três caixinhas. A vermelha, você entrega ao rei logo que chegar. A amarela é para sua tia e esta preta é para você. Depois que falar com o rei e com sua tia, vá para seu quartinho e abra a caixinha. Ela pediu-lhe a bênção e ele respondeu:

— Vai, minha filha, meu pai que lhe abençoe.

Dali começou a viajar de volta. Logo no primeiro portão uma porção de araruns ou eguns (almas, espíritos) se apresentaram cortando-lhe o caminho. Ideti lembrou-se do espelho que Olorun Orun lhe havia dado. Mostrou-o e os espíritos saíram da frente. Ela passou sem ter acontecido nada que a fizesse temer. No segundo e terceiro portões aconteceu a mesma coisa, e, por fim, vencendo todos os perigos, depois de uma longa viagem, ela deparou como já referido pé de lôko onde mais uma vez sentou-se para um pequeno descanso: Imediatamente surgiu o pássaro cantando desta maneira:

"Ideti, Ideti, Jála, júlo, jála

Ideti, Olorun Bucunfun-é Jála, júlo, jála

Mo je ararun iyá ré Jála, júlo, jála Pewá bôjutô - onâ ré Jála, júlo, jála Ideti."

Neste cântico o pássaro dizia-lhe o seguinte: "Ideti, Deus que lhe abençoe, sou o espírito de sua mãezinha que foi designado por Obá Orun, a fim de guiar e vigiar seus passos."

Neste mesmo instante o pássaro desapareceu para sempre.

Ideti ficou muito pesarosa, chorou um pouco, depois resignou-se e, levantando-se começou sua jornada, andou, andou muito, até que em uma manhã de um dia bonito ela deu com a cidade onde morava. Quando passou pela casa de Adelaiyê, sua prima Omon-Laiyê, que estava na janela, saiu gritando:

— Mamãe! Ideti voltou e trouxe um "mucado" de coisas. Será que trouxe alguns presente para nós? — É bem possível, minha filha. Vamos nos preparar para recebê-la da volta de sua visita a Obá Orun. Ideti ia andando em direção à casa do rei. Por onde passava, as pessoas paravam o que estavam fazendo e a seguiam dando vivas e saudando a Ideti, a imortal — Ideti a rainha de Odê Aiyó. Quando ela chegou a casa do rei este veio ao seu encontro. Ideti entregou-lhe a caixinha, despediu-se e voltou para a casa de sua tia, acompanhada por banda de música cânticos e toques de atabaques de todos os descendentes de sua raça que ali residiam. Mas junto a casa de Adelaíyê, todos debandaram porque não gostavam dela por causa dos maus tratos causados a Ideti que agora consideravam a sua nova rainha, a rainha imortal. Mal Ideti botou os pés na porta, sua tia veio buscá-la junto com a prima, com os maiores cuidados, levando-a para tomar banho, trocar de roupa e oferecendo-lhe um grande almoço. Porém nada disso Ideti aceitou. Tratou logo de entregar-lhe a caixinha e encaminhou-se para seu quartinho.

Enquanto isso na casa do rei, quando todos saíram, este deu ordem para dizer aos que viessem procurá-lo, que não poderia atendê-los, que não queria ser incomodado porque ia gozar do presente que Obá Orun havia lhe enviado. Trancou-se no seu quarto e abriu a caixinha. Então de dentro dela saíram tantas formigas e de tantas qualidades que deixaram o pobre rei em ossos.

Por sua vez a tia de Ideti ficou bastante satisfeita com o seu presente. Chamando a filha encaminhou-se para um dos quartos da casa e quando abriram a caixinha saíram de dentro todas as qualidade de maribondos que acabaram com a vida das duas.

No seu quartinho Ideti também abriu sua caixinha depois de ter-se sentado um pouquinho para descansar e depois de ter tomado um golinho de omi (água). Nisto deparou-se com um caixão de defunto e desmaiou de susto. Quando voltou a si, estava num palácio grande e bonito, com muitos vassalos e damas de companhia para servi-la. Foi assim que Ideti passou a ser a rainha da Terra do Ôyó (Odê Oiyó). (Em Seljan, Zora. "Conto nagô". Literatura. Rio de Janeiro, outubro de 1959)