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2 REFERENCIAL TEÓRICO

3.4 As funções discursivas dos MON na narrativa

3.4.3 Marcar a evidencialidade do fato narrado

evidencial das Lendas, o que contribui para a valorização e a perpetuação da cultura de um povo.

(101) [...] Contam os antigos antepassados que existiam dois grupos, duas comunidades Huni Kui que moravam separadas, mas próximas uma da outra. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(102) [...] Contam que no princípio do mundo havia apenas escuridão. [...]

Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

Finalmente, transcrevemos um trecho com A história começa assim, identificado apenas nas Lendas, no lócus Resumo, marcando discursivamente o início da narração do fato. Do ponto de vista da função discursiva, esse tipo tem o mesmo valor de Vou

contar, motivo pelo qual, consideramos essas instanciações como variantes do MON A história começa assim/Vou contar.

(103) [...] Tua Yuxibu é o sapo, o canoeiro, o que mais tem. Ele sempre canta no verão. Vai desovar na praia. E as pessoas comem este sapo.

A história começa assim: tinha um homem que ficou encantado de Tua Yuxibu. O nome

desse homem era Ixã.

Ixã caçava no mato e nunca encontrava a caça. Não matava nada! Os filhos começavam a chorar muito. Queriam comer caça. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

3.4.3 Marcar a evidencialidade do fato narrado

Aikenvald (2004) defende a existência de um sistema evidencial gramaticalizado no Português Brasileiro, assim como ocorre no Espanhol da América do Sul. Diz que teria, portanto, para Casseb–Galvão (2010), o mesmo valor funcional da expressão “Era uma vez” e seria um recurso pragmático para qualificar o enunciado, atenuando a sua carga assertiva e, ao mesmo tempo, construindo o mundo no qual o enunciado passará a ter validade comunicativa.

O Gráfico 16 mostra os MON com função de marcar a evidencialidade do fato narrado:

Gráfico 16: A função de marcar a evidencialidade do fato narrado

O MON Diz que aparece tanto nos Relatos feitos pelos remanescentes como nas Lendas dos habitantes do Amazonas. O lócus de ocorrência é predominantemente no início da narrativa, mas também aparece como sequenciador e como finalizador do tópico narrado.

(104) [...] Diz que chegou um repiquete e alagou tudo. A água carregou essa mulher, que não teve por onde escapar. A alagação cobriu mato, terra, tudo. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(105) [...] diz ..ele/ ele era munto duente da garganta ... e pegô um sapo e passô a barriga do sapo assim na garganta dele... pur fora... né? ... e diz que ficô bom... e diz...

[...]

Fonte: Relato de experiência oral/Corpus Remanescentes Quilombolas

A função desse marcador parece se enquadrar no que Aikhenvald (2003, 2004) classifica como evidência relatada, ou seja, aquela que dá a entender que a informação foi fornecida ao falante, no caso, o narrador, por um terceiro, a qual a autora classifica em dois sub-tipos: hearsay6 e evidência por suposição. As ocorrências (106) e (107)

enquadram-se, ao nosso ver, nesse primeiro sub-tipo, já que se trata de uma informação não necessariamente precisa, e aberta a interpretações pelo ouvinte.

Assim como acontece com o MON Diz que, o MON Contam que também é formada a partir de um verbo de dizer, ocorrendo também em terceira pessoa (Contam), como acontece em diversas línguas estudadas por Aikhenvald (2011). O valor de evidencial cumpre função semelhante, isto é, trata-se também de uma evidência relatada do tipo ouvir-dizer.

No trecho abaixo, o fato de estar explícito o sujeito do verbo contar (antigos

antepassados) intensifica o valor de verdade e a força cultural do fato a ser relatado.

Vale salientar também o uso do adjetivo antigos acrescido ao substantivo antepassados, o qual intensifica a distância temporal entre o narrador e o fato narrado.

O distanciamento temporal e espacial do falante em relação ao evento narrado, é, como explica Casseb-Galvão (2010) marcado pelo Diz que. Assim também, acrescentamos, esse distanciamento é marcado pela instanciação Contam que, conforme a ocorrência a seguir.

(106) [...] Contam os antigos antepassados que existiam dois grupos, duas comunidades Huni Kui que moravam separadas, mas próximas uma da outra. De vez em quando, pessoas de um grupo visitavam o outro para tomar conhecimento. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

6 Tradução: ouvir dizer.

O MON Dizem que foi assim é uma variante do MON Diz que. Aparece nos corpora examinados apenas nas Lendas e em posição final do evento narrado. Parece ter valor semelhante à expressão ‘I kan sey you namoore’ estudada por Bybee (2011). Essa expressão seria usada como um artifício retórico para concluir a narrativa, fechando o tópico narrado com o argumento de autoridade trazido do conhecimento de mundo, fruto da cultura.

(107) [...] A velha Yushã Kuru animou-se. Aceitou o convite do seu genro e voltou para casa. Quando estava chegando em casa, bem na chegada, o pessoal, que já estava esperando, matou a velha Fêmea Roxa. Dizem que foi assim.

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

O MON Com nossos antepassados aconteceu assim, também usada como artificio retórico, aparece exclusivamente nas Lendas. O que o diferencia do anterior é o seu lócus de ocorrência, já que se repete tanto no início como no fim da narrativa, conforme veremos nas ocorrências (108) e (109) a seguir, que fazem parte de uma mesma Lenda.

(108) [...] Com nossos antepassados aconteceu assim:

Era um homem chamado Yawa Xiku Nawa. Era só ele e a mulher dele. Não tinha nenhum filho. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(109) [...] E conseguiu se sentar nos galhinhos bem fininhos. Os outros se enxugaram e se separaram também. Por isso, até hoje, os pássaros são separados. Com nossos

antepassados aconteceu assim... [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

O MON (Aí) eu sei que tem seu lócus de ocorrência nos Relatos de experiência tanto do Corpus Discurso e Gramática quanto nos Remanescentes Quilombolas. Não aparece nas Lendas. Costuma iniciar ou sequenciar a narrativa e introduz uma nova informação sobre o tópico narrado. Tem como verbo matriz o verbo saber, que é semanticamente um verbo de cognição. Conforme Garcia-Miguel e Comesaña (2004, p.41),

[...] o significado de verbos de cognição envolve um conceptualizador (normalmente um sujeito) concebendo ou acessando um evento, normalmente representado por uma frase complemento na lacuna sintática de objeto.[...]

Nesse caso, vale destacar o fato de que o sujeito do verbo, ao se colocar como narrador, assume também a postura de personagem, ou seja, é parte do fato narrado e, portanto, tem um certo grau de responsabilidade em relação ao que narra, diferentemente das ocorrências anteriores. Funciona como marca de evidencialidade relatada, não necessariamente testemunhada visualmente, mas cognitivamente, já que o narrador narra o que sabe e até onde sabe, ou por ter ele mesmo vivido realmente o fato, ou simplesmente por ter tomado conhecimento do fato através de outrem.

Conforme Bezerra Oliveira (2011, p. 17), é possível que

[...] o uso do verbo saber (sei) na construção passaria mais confiabilidade sobre o fato narrado para o possível interlocutor. O narrador teria realmente certeza de que o fato teria acontecido. [...]

Talvez isso venha a explicar o fato de esse MON não ter aparecido nas Lendas, as quais são geralmente atribuídas a um narrador mais distante e não necessariamente testemunha do fato narrado. Eis uma das ocorrências:

(110) [...] ... eu sei que a gente parou em Santa Catarina ... parou em Santa Catarina como se fosse um pássaro ... ((riso)) [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Discurso e Gramática/Natal.

Os MON Assim aconteceu, E assim foi e E assim é até hoje têm em comum em sua composição o advérbio assim, cuja função discursiva parece ser garantir para o interlocutor a veracidade do fato narrado, conforme vemos nas ocorrências seguintes:

(111) [...] O pai começou a voltar, mas o caminho já estava cerrado. A mata já tinha crescido e ele nem sabia mais o caminho por onde era. Seguiu na direção contrária de onde tinha vindo.

Assim aconteceu a história da arara misteriosa de nosso povo antepassado.

(112) [...] Yushã Kuru, a Fêmea Roxa, deu muitos conselhos e surgiram os remédios. Uns eram venenos para matar: olho forte, Beru Paepa. Mijo amargo, Isü Muka. Outro para coceira, Nui. A velha Fêmea Roxa observava bem as folhas e os pés das árvores: ─ Esse mato não é remédio forte.

E assim foi. Surgiram muitos remédios, todos os remédios que têm na mata. Remédio

bom que cura as pessoas. Bom para picada de cobra, picada de escorpião, aranha, reumatismo e fígado. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(113) [...] Aquele monte de gente encantada que veio ajudar o filho dela no roçado desconfiou da mulher e saiu correndo. No que correram, a mulher agarrou o marido dela, que era encantado de sapo. Pedia para ele não ir junto.

Nessa hora, o marido virou uma mutuca bem azulzinha. Quando a mulher quis pegar o marido encantado, a mutuca escapuliu da mão dela. E assim é até hoje... [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

O MON E é o que sempre acontece também funciona como evidenciador e, ao mesmo tempo, avaliador do fato narrado. Foi identificada no lócus Coda, embora essa parte da estrutura narrativa não estivesse concentrada no final, mas diluída ao longo do texto. A ideia de evidencialidade paralela à ideia de Avaliação do fato narrado fica clara, se observarmos o uso do advérbio sempre que modifica o verbo acontecer.

(114) [...] E lá no seu leito, a moribunda sentenciou:

— Aranha, filha ingrata, nunca poderás terminar teu trabalho. Será ele sempre desfeito por alguém, principalmente pelas empregadas arrumadeiras.

E é o que sempre acontece.

— Cigarra, filha ingrata, cantarás, cantarás, até rebentar pelas costas.

E é o que sempre acontece.

— Abelha, filha boa, que tudo deixou por mim, os homens nunca saberão o segredo do fabrico do mel...

E ainda hoje, mesmo colocada em caixa de vidro, a abelha tapa tudo com cera e não deixa ver fazer o mel... [...]

3.4.4 Focalizar a atenção do interlocutor em determinado trecho da