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2 REFERENCIAL TEÓRICO

3.4 As funções discursivas dos MON na narrativa

3.4.2 Iniciar a narração

O Gráfico abaixo mostra os MON cuja função é iniciar a narração.

Gráfico 15: A função de iniciar a narração

Os MON Um dia/Certo dia/Uma vez/Outro dia mostraram ser os mais frequentes no padrão discursivo narrativo, com a função de dar início à narração. Aparecem tanto na Orientação (85) quanto na Complicação (86), ao iniciar um novo episódio do mesmo fato.

(87) [...] Um dia, em uma de suas viagens, um conhecido seu matou um urubu para ele comer. [...]

(86) [...] Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido... [...]

Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

Os MON Vou contar/A história começa assim são o segundo mais frequente nos corpora examinados. Aparece tanto em Lendas, quanto em Relatos de experiência oral,

sempre no lócus Resumo, algumas vezes após uma pausa (marcada muitas vezes pelo MON Bom/Bem), ou após um comentário. Assim, ao mesmo tempo em que o narrador anuncia o início da narração, chama a atenção do interlocutor para o fato que vai ser por ele narrado. Algumas vezes os MON Bom e Vou contar ocorrem juntos, cumprindo a função de chamar a atenção do interlocutor para iniciar, em ato contínuo, a narrativa.

(87) [...] bom... vou contar uma história que é triste... mas ao mesmo tempo é engraçada... eu tinha sempre o costume de ir na casa de um colega meu que morava num... determinado lugar ali... na Engenhoca... ali no João Brasil... perto de uma favela... [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Discurso e Gramática/Niterói.

(88) [...] Vou contar para vocês como surgiu Shãwã Bake, a arara nova misteriosa. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(89) [...] é:: assim é ... eu vou contar um ... um ... um acidente que aconteceu comigo em setenta e três né ... uma coisa que marcou muito ... na minha vida [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Discurso e Gramática/Natal.

O MON (No) outro dia, o terceiro em frequência, tem como lócus preferido a Complicação e aparece sempre precedido do determinante no (no outro dia), quando se trata de língua escrita, como nos Contos e nas Lendas. Tem claramente a função de sequenciador temporal da ação narrada.

(90) [...] No outro dia, o homem passou do bom e do melhor. [...] Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

(91) [...] No outro dia, encontraram o pessoal que tinha matado a arara encantada. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

Na única ocorrência identificada em língua oral, em um Relato de experiência do

corpus Remanescentes Quilombolas, na sua variante Ôto dia, essa instanciação parece

estar ocupando o lugar de Um dia.

Para melhor visualizarmos isso, transcrevemos abaixo um trecho maior do

corpus aludido. Observe-se que a narrativa se inicia como um argumento para provar

que o “canto” ao qual a narradora estava se referindo era realmente encantado. Nesse caso, o uso de Outro dia (Ôto dia) parece ser mais adequado do que o tipo Um dia.

Assim sendo, levamos em conta os trechos de diálogo para mostrar como o contexto de uso, além da modalidade, do lócus e do padrão discursivo, conforme a função discursiva, pode influenciar nas escolhas das instanciações que vão ser usadas pelo falante em uma situação de interação. Vale ressaltar que esses fatores também podem influenciar o uso dos demais MON.

(92) [...] E: Talvez... aí porque é que se encantava, Aldízia? [...] É purque era incantada...

[...] Incantava esse canto...

E: Sim! ... o canto é encantado... mas o que é/ quem é que encanta? [...] O que é? ... e eu sei? ...eu num sei nẽi isplicá...

E: Por que ainda hoje não tem canto encantado?

[...] Tẽi! ... tẽi! ... aí, bẽi! ...Carlim... ôto dia... aconteceu... que o minino tomô uma cachaça... aí toda vida que tomava essa cachaça... tĩa aquele sentido de i pra esse canto... aí desceu... quano desceu presse canto... aí a criatura ia buscá ele... [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Remanescentes Quilombolas.

Os MON Uma vez e Certa vez também têm mesma função discursiva de marcar o início da ação narrada. O primeiro é mais frequente, aparecendo no Resumo, na Orientação e na Complicação, em Contos e Relatos de experiência, enquanto o último só foi identificado na Complicação, apenas em Relatos de experiência. Em (96), isso fica bem claro, pois o falante parece ter oscilado ao escolher entre essas instâncias,

como se pode ver pela interrupção da enunciação de Uma vez e sua imediata substituição por Certa vez.

(93) [...] ũa véis inventaro de arrancá um aqui nessa casa véia do finado Juvenço [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Remanescentes Quilombolas.

(94) [...] Uma vez, ao passar por uma rua, ouviu alguém cantando. [...] Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

(95) [...] aí uma vêis viro quele foi carregá a mandioca de Geraldo Petronino...andava cum uma baladêra... [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Remanescentes Quilombolas.

(96) [...] Diz que ũa pessoa viu que no lugar dessa peda tĩa ũa/ ...certa vêis... eu num sei se é exato não... como é que diz?... apareceu lá ũa muiézona dessas bunita mermo... diz que o minino andava cum ũas cabra e diz que quano ela apareceu aí o cabra correu... teve medo... né? ... e há bẽi da verdade quẽi num tẽi medo de ũa coisa dessas... se vê aqui no Pega só tẽi rente pretĩa e do nada aparece ũa muiézona assim... dessas assim... cumo é qu eu digo ... dessas assim ... cê sabe ... né? ... inda mais branca!?... A rente pensa logo que é ũa assombração dessas bẽi assombrada mermo... né não?... [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Remanescentes Quilombolas.

O marcador Era uma vez foi identificado em Contos, no lócus Orientação, sempre com a função de marcar o início da narração, apresentando o tempo (embora indefinido), o cenário e/ou os personagens. Como acontece com as Unidades Pré- Fabricadas – UPF (OLIVEIRA, 2012), alguns marcadores podem incorporar partes de outros. Assim, Era uma vez poderia ser desmembrado em Era e Uma vez, conforme a situação comunicativa, ou ampliado, como veremos, em Era um belo dia ensolarado.

(97) [...] Era uma vez um homem muito circunspeto e cioso de sua personalidade. [...]

(98) [...] Era uma vez em um reinado uma princesa que o rei só daria em casamento a quem se submetesse a uma rigorosa prova. [...]

Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

O marcador Era cumpre, portanto, função semelhante a Era uma vez. Nos

corpora, só foi identificada em Lendas. A função discursiva de indicar o início da

narração, descrevendo cenários e personagens, também se manteve nos dados analisados.

(99) [...] Era um homem chamado Yawa Xiku Nawa. Era só ele e a mulher dele. Não tinha nenhum filho. Yawa Xiku Nawa vivia só com sua mulher. Os outros parentes não faziam mais roçado, não plantavam mais. Só comiam o que esse casal tinha. Os parentes tinham acabado com seus legumes e começaram a passar fome. Não tinham mais nada. Não comiam mais nada. O fogo também não tinham mais. Foi o bacurau que apagara o fogo. Era tudo apagado. Eles viviam na miséria. Não tinham aonde conseguir o fogo e nem alimentação. Só conseguiam, e com a maior luta, deste homem, Yawa Xiku Nawa [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

Ampliando o MON Era e juntando-se com o MON um dia, foi identificado em Relatos de experiência escritos, o MON Era um belo dia ensolarado, também com a função de marcar o início da ação narrada.

(100) [...] Era um belo dia ensolarado, quando eu estava no muro de minha casa. Derrepente, passou o caminhão do Almir Rangel anunciando que no campo do Mundial, ( é um campo que se localiza defronte à minha escola ) haveria distribuição de ingressos para ir ao parque VI centenário, é o parque do Almir Rangel. A distribuição foi marcada para as 3:00 hs. Quando faltavam poucos minutos para as 3:00hs eu tomei meu banho, me arrumei, me perfumei e fui a tal distribuição. [...]

Fonte: Relato de Experiência/Corpus Discurso e Gramática/RJ.

Os MON Contam os antigos antepassados que/Contam que aparecem com a mesma frequência (2%) nos corpora, embora a primeira tenha sido identificada em Lendas e a segunda, em Contos. O fato de o primeiro tipo (Contam os antigos

antepassados que) aparecer com o sujeito explícito talvez seja para reforçar o caráter

evidencial das Lendas, o que contribui para a valorização e a perpetuação da cultura de um povo.

(101) [...] Contam os antigos antepassados que existiam dois grupos, duas comunidades Huni Kui que moravam separadas, mas próximas uma da outra. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

(102) [...] Contam que no princípio do mundo havia apenas escuridão. [...]

Fonte: Conto/Corpus Contos Brasileiros.

Finalmente, transcrevemos um trecho com A história começa assim, identificado apenas nas Lendas, no lócus Resumo, marcando discursivamente o início da narração do fato. Do ponto de vista da função discursiva, esse tipo tem o mesmo valor de Vou

contar, motivo pelo qual, consideramos essas instanciações como variantes do MON A história começa assim/Vou contar.

(103) [...] Tua Yuxibu é o sapo, o canoeiro, o que mais tem. Ele sempre canta no verão. Vai desovar na praia. E as pessoas comem este sapo.

A história começa assim: tinha um homem que ficou encantado de Tua Yuxibu. O nome

desse homem era Ixã.

Ixã caçava no mato e nunca encontrava a caça. Não matava nada! Os filhos começavam a chorar muito. Queriam comer caça. [...]

Fonte: Lenda/Corpus Lendas do Amazonas.

3.4.3 Marcar a evidencialidade do fato narrado

Aikenvald (2004) defende a existência de um sistema evidencial gramaticalizado no Português Brasileiro, assim como ocorre no Espanhol da América do Sul. Diz que teria, portanto, para Casseb–Galvão (2010), o mesmo valor funcional da expressão “Era uma vez” e seria um recurso pragmático para qualificar o enunciado, atenuando a sua carga assertiva e, ao mesmo tempo, construindo o mundo no qual o enunciado passará a ter validade comunicativa.