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Capazes de criar ruínas com suas imagens

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 143-146)

“Rostos conhecidos concentram-se aos poucos num único rosto.” Nuno Ramos Recebo a notícia de que minha avó morreu durante uma tempestade, sem metáfora alguma. Os dias depois disso se tornaram uma névoa espessa, uma percepção muito pequena do que acontecia ao meu entorno. Semanas posteriores a esse evento diluíram-se quase todas na minha memória, ainda que, carregadas de certa intensidade, permaneçam guardadas lá. Não li nem escrevi quase nada nesses dias, acredito eu, o que não necessariamente é uma verdade a ser atestada. Creio, no entanto, que tenha sido nesse intervalo de tempo que encontrei os monóculos fotográficos preservados por ela. Tudo ia razoavelmente seguindo, e muitas coisas foram acontecido nestes dias sem que eu me lembre com precisão de tudo – a casa começou a ser desmontada, destroços para todos os lados, a maioria das fotografias foram encaixotadas, de súbito silenciadas todas as vozes do ambiente. Os fluxos dessas semanas se opacizaram de tal maneira que não consigo recuperá-las com precisão, e está aí a beleza da memória desses dias. O que pouco sei é que, desde então, na minha mesa de estudo estão alguns monóculos coloridos, aglutinados ao lado do computador, em fronteira com as anotações dos endereços possíveis de destino para as coisas da minha avó. Não há com quem partilhar os objetos, deixados como herança unidirecionada. Penso em vendê-los, os pertences todos, os móveis e os utensílios, dar cabo enfim às ruínas, mas essa decisão me apavora um pouco. O que ela teria feito com meus pertences caso quem tivesse morrido fosse eu? Ela nunca falava sobre as mortes, nem dela, nem de outrem, nem dos que já haviam ido, nem das plantas, até batia na boca ao citar a palavra, eufemizava tudo, retraía-se, não o mencionava nem quando parecia um evento próximo a nós. Nem assim ela mencionou a morte, era um tabu, um evento isolado que não precisava de explicações. Por vários dias, olho para esses objetos, esses esconderijos de imagem, seriam eles pequenos túmulos? Ou, ao contrário, pequenos oásis da memória no deserto desta casa empoeirada? Não houve portas que impedissem a morte de entrar na casa. Por isso, há de se ter cautela para revisitar o passado pela fotografia. Nunca se sabe o que pode irromper dali. Como um castigo, ainda pior, não se sabe o que pode ser feito depois de tudo com as memórias despertadas, com as provas do crime.

Passo o dedo para tirar a poeira dessas caixinhas sem abri-las, sem tirar as frágeis tampas que escondem e sepultam as fotos. Forço um pouco para que não se desencaixassem do suporte, conduzindo o mesmo gesto a todos os monóculos, decisões efetivas para evitar perdê-los antes do tempo. São estes, por assim dizer, os rituais que envolvem o cuidado com escombros escondidos em minúsculas caixas de plástico, prontas para serem descobertas com um só olho clínico, um só olho analítico, um olhar torpe direcionado à imagem opaca dos homens-ruínas, sobreviventes do apagamento das coisas. Como era de esperar, recuo à história: uma vez, aos dez ou onze anos, lembro que descolei todas as fotos dos álbuns da minha família, remontei-as em lugares separados, inventei pequenas narrativas para cada um. Uma vez ali, na desmontagem praticada, o homem atrás dos óculos, o sujeito que mais aparecia nas imagens, ganhava nome, origem, futuro. À mulher de manta no rosto, cujo nome só descobri anos depois, dediquei uma história de amor com o homem de óculos. Onde foi exatamente que começou a briga ninguém sabe, eu tinha volta dos onze anos, uma criança no auge da rebeldia,

e foi por causa disto ou daquilo que, tão distante, fui deixado de castigo fora da casa por horas a fio, à sombra de uma árvore enorme, banido de todos para repensar no meu erro. Que erro, eu ainda me pergunto até hoje. Depois de alguns minutos fora de tudo, minha avó se encaminhou a mim e me questionou se eu gostaria de saber por que eu não conhecia aquelas pessoas das fotografias. Qual é a mais parecida comigo, perguntou, e eu ia dizer aquela do véu, mas a conversa antes mesmo foi interrompida por minha própria avó, ela mesma que iniciara o diálogo e que nunca tinha ido tão longe ao falar do passado. Apropriar-me de algo sem permissão, alterar vestígios com autoridade inventada, usurpar à força um cargo que não cabe a mim: tudo isso não me fez ser trancado em um cômodo, mas banido da história. Todos das fotografias já estavam mortos, eu tinha certeza, divinizados por minha avó, deveriam ser respeitados em seu lar. Eu era um estrangeiro nativo, nascido longe da origem de tudo, forasteiro dentro da própria família. Mas agora, alguns anos depois, eu os aceito na minha vida de qualquer modo, pela energia de suas ruínas frente à morte. Eu inventei histórias naquela época, ou quis inventar, deveria ter inventado. Seja como for, talvez pela segunda vez, posso a eles dedicar uma escrita prosa porvir, dar-lhes corpos novos.

Escrevo para preencher um vazio abismal. Não era necessário resgatar o passado profundo, acredito agora, pois poderia simplesmente fingir que nada anormal tenha existido. Mas a memória daquele álbum não haveria de se dissipar nem em cinquenta anos. E ainda que eu não pudesse hoje encostar o olho no círculo e enxergar lá no fundo as fotografias, eu reconheceria as pessoas de longe, de uma só vez. Que história poderia restar, afinal, depois de tantos anos? Os monóculos fotográficos vieram até a mim nessas semanas indecifráveis como um chamado oportuno. Objetos muito antigos, uma função era quase lúdica, um elemento puramente ótico, a simples provocação era enxergar a superfície das imagens fotográficas com um certo efeito de profundidade. Todos já se foram, repete minha avó de dentro da minha cabeça, deixe tudo como sempre esteve. De tanto escondidos na memória da minha avó, quando a morte avançou, essas pessoas ficaram em completo anonimato. Identidades em suspenso, em papéis esvaziados de todas as cores. Para aquele que morre, as únicas marcas que insistem numa sobrevivência simbólica, um não se obliterar, seriam a narrativa, a memória, a fotografia. Destas hipóteses, a fotografia é aquela que, neste instante, nas atuais condições, individualizam estes sujeitos que resistem em conviver comigo sem que mutuamente saibamos quem somos. Queria conhecê-los uma vez, em outro lugar, livre da sombra do passado. Melhor seria deixar como está, minha avó insistiria ríspida, enquanto manuseio por escrito estas vidas endividadas comigo. Esperei muito tempo por minha vez. Diante dos rastros do passado, o medo se infiltra invisível e silencioso. Contra os perigos possíveis, o enlouquecimento ao revolver as ruínas, a irremissível angústia de tornar vida e morte profundamente indiferentes, o certo seria enterrar as imagens, fazer uma sepultura sem nome para cada monóculo, ritualizar a morte e preservar o anonimato. Minha avó talvez não quisesse sua história para sempre em silêncio, mas, questiono, não queria contá-la para que alguém de longe a escrevesse um dia?

Com tudo o que nunca me contaram sobre as pessoas da imagem, e que não paro de imaginar enquanto olhos esses pequenos monóculos, dou certa coloração às fotografias que precisaram ser feitas para garantir a constância e estabilidade do real. Como devolver as palavras à boca dessas pessoas? Como introjetar um passado para cada corpo-morto sem ter uma âncora para apoiar a história? Como resgatar e escrever as lembranças que se inscrevem na pele desses corpos desconhecidos, em suas cicatrizes guardadas? Estranho gesto de poder olhar

a imagens sem nada conseguir falar delas, com elas, para elas. Figuras de pessoas que possuíram meu passado sem terem deixado a mim como herança. Fotografias de histórias silenciadas. E apesar de servir à memória, este é o preço que se paga pela captura imagética de cenas da realidade: a melancolia de uma falsa interrupção temporal. Por isso se compram flores artificiais, que imitam de maneira assombrosa as naturais; elas não apodrecem. Ou por isso se presenteiam as crianças com brinquedos realistas, que possuem rostos cada vez mais humanos; eles não envelhecem nunca, permanecem irretocáveis. Por isso se capturam fotografias, que fixam as pessoas eternamente de olhos abertos, para avançar o poder do corpo sobre o fluxo voraz do tempo. Produção intensiva de ruínas. Enterrados em terra batida, lançados ao mar, queimados pela chama – os corpos mantêm- se materializados intactos pela memória. Das fotografias, penso eu, permanece a ruína. Observo apenas com um olho esses rostos desconhecidos, por dentro da pequena câmara, quase sempre sem tonalidade mais. Essa narrativa anti-estruturada corresponde ao tempo que se ocultou com minha avó. No registro fotográfico, esses corpos de olhos escancarados e vigilantes, que encaram quem de frente os vê, como se estivessem em meditação, parecem inconscientemente preservar aceso o desejo de manter a ordem das coisas, uma eterna vigília que não deixa de ser uma forma de imobilizar o tempo, permanecer firme contra a força da morte – na imagem, a bem da verdade, a existência real dos mortos se assemelha à dos vivos. São domínios distintos e entre si incompatíveis, apenas uma fantasmática presença. Somos, eles e eu, imagens no espelho, corpos- fragmentados de origem semelhante, em tempos-espaços de uma só vez inconciliáveis.

Existe uma memória coletiva por trás de tudo que remonta as histórias familiares, sob a cobertura da poeira que quase sempre o tempo insiste em encobri-las. Esses micromundos constituem a matéria que faz com que os indivíduos se tornem portadores de um domínio anterior a ele, donos de um prolongamento da vida de terceiros, da qual a conservação seguramente se torna um dever em nome dos mortos e dos vivos. Do Líbano, reconheço somente imagens pesquisadas pelo computador. Quase nada conheci da minha história compartilhada, dos ritos de travessia, dos trânsitos dos meus antepassados, não tenho afeição às pessoas que de antes porque nada sei sobre suas histórias. Conservadas e banidas da boca e escondidas na memória da minha avó. Essa gestualidade de banimento, que parece ter paralisado os relógios desta casa para nela experimentar o luto, foi a decisão da minha avó para ocultar o acervo de um passado que certamente existiu, mas, se não alterado, silenciado será mantido. De sua imagem emergem figuras das pessoas escondidas no monóculo fotográfico, desses personagens enredados em um sistema familiar que não existe mais, mas que escapa aos dedos, aos olhos, ao pensamento. Coerentemente com a dinâmica de ocultação do passado, o não- enfrentamento da morte fez com que a memória familiar virasse uma terra de ninguém, a impregnou de uma melancolia intensiva, resquícios da construção de um passado ancestral negligenciado aos herdeiros. Estar diante à ruína dos monóculos, se ainda enxergo bem, me revela outra perspectiva do meu passado. Tantos anos depois de recriar os fragmentos mnemônicos do álbum, episódios de inventividade infantil, a presença desses materiais fotográficos me permite encostar no tempo antigo sem penetrar nele como fora. Mas, por estarem aqui, perto de mim, dentro da casa, desmantelam as paredes, arrancam o telhado, fazem erodir o terreno para que dele, vinculado à presença da morte, seja construída uma nova planta em outra temporalidade. Esta terra de ninguém, como disse, talvez pela invenção possa um dia ser de novo habitada.

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 143-146)