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Perfuraria a epiderme de cada palavra

A narrativa preliminar a esta seção é um exercício interrompido de escrita ficcional, com objetivo de fôlego crítico, rascunhada no final do mês de outubro de 2018. Naquela época, além do resultado caótico das eleições presidenciais e do prognóstico para a política brasileira, a doença me atacava com força e me fazia ler compulsivamente textos e mais textos sobre luto e melancolia. Me punha constantemente a escrever sobre ecos e traumas enfrentados no descuido de permanecer sozinho numa casa herdada após a morte da minha avó. O espaço vivo do papel servia como engrenagem viva de acesso à memória, mantendo-se erguido como um ermo espaço entre a concretude física e a imagem imaterial do passado. Quem escreve reminiscências imerso numa casa intensamente carregada de uma história obscura, tal qual a mim naquela época, estaria fadado a permanecer enfermo. Sem conservação e cuidado, a casa e o corpo decompunham-se juntos. Era como se o luto já tivesse sido superado, a perda de quase todas as referências familiares já haviam sido compreendidas, no entanto, ainda assim, o escuro de dentro da casa, suas fissuras na parede, suas marcas de tinta lascada projetavam em mim uma espécie de assombro, um torpor, um vazio, uma respiração cansada pelo medo da repressão dos dias porvir. Comecei a escrita, como tantas outras, mas não a terminei.

E agora, ironicamente, não penso em concluir essa narrativa que rascunhei — a força do projeto de ficção, percebo em vários instantes, estava contida na tentativa de me deslocar pela realidade sem enlouquecer. Escrever servira para ficar, insistir, permanecer vivo, mas não a qualquer custo. De que valeria continuar uma narrativa até sua conclusão, se ela encerraria, em si mesma, o fim incontornável do processo? Lidar com o vazio do texto encerrado, de uma outra vida projetada em um corpo artificial, poderia ser outro acidente no percurso, talvez com danos ainda mais violentos. Aflição diante das coisas que duram, disse Nuno Ramos, questionando-se em seguida sobre para quem elas durariam37. Reparar no tempo de duração das coisas aflige, por si só, porque

carrega a suposta ideia melancólica de que se está irremediavelmente diante do vazio horizonte do fim. E permanecer nesse interstício é uma pausa agitada de uma coisa não ser outra, como completou Nuno. Porque, neste instante em que minha mudança de casa já foi concretizada, o estado de abandono da narrativa rascunhada servirá como um abrigo, e a casa será apenas um cômodo responsável por resguardar um enredo escrito pela metade e que, em afirmação legítima, ainda é capaz de me desestruturar.

Foi com Giorgio Agamben que passei a maior parte daqueles dias. Eu não pude evitar sua influência, pois foi com ele que aprendi quase tudo que sei hoje sobre o vínculo entre melancolia, luto, arte e vida. Ora, a intensidade dos seus escritos me tirou da minha permanência inerte, em meio ao abatimento, e comparece aqui como forma de intercessão entre meu objeto-obra e a legitimação da tese. Ler Agamben me incentiva a pensar criticamente enquanto escrevo, ou escrever enquanto penso criticamente. Em seus estudos, na esteira das reflexões sobre a cisão que ocorre no seio da metafísica ocidental entre poesia e filosofia, o filósofo percebeu a noção de estância não só como organizadora do espaço físico, mas, sobretudo, como evento poético, ligado aos poetas do século XIII. A estância designa, em um só sentido, o formato da obra e o conteúdo que está nele veiculado. Escreveu o filósofo que os poetas stilonovistas chamavam estância o núcleo da sua poesia, tendo em 37 RAMOS, Nuno. Cujo. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011, p. 31.

vista que ele mantinha iluminada a alegria da paixão amorosa, considerada o único objeto da poesia, presente ao lado de todos os demais elementos da forma da canção. Diante disso, Agamben se questiona e centraliza a ênfase de sua discussão na seguinte interrogação: o que vem a ser, de fato, esse objeto considerado fundamental à poesia? Se for examinada a interpretação que ele faz, observa-se que a dificuldade de resolução desse questionamento assalta seu pensamento porque, inevitavelmente, não renuncia e reconduz suas reflexões sobre a objeção entre palavra poética e palavra pensada, no sentido de que, nessa perspectiva de fissura e abismo, tal divisão testemunharia a impossibilidade de a cultura ocidental possuir de modo pleno o objeto do conhecimento. Ocupando lugar central na genealogia da crítica, a poesia seria, como já dito aqui, aquela que possui o objeto sem o conhecer, ao revés da filosofia, que, por sua vez, conhece o objeto sem conseguir possuí-lo. Essa noção de perda inevitável está no cerne da ideia freudiana de melancolia.

Se na tradição do pensamento ocidental o desmembramento anunciado entre poesia e pensamento crítico provocava tensionamentos intensos, isso só era possível porque uma obra incluiria em si, a princípio, um caráter dúplice e paradoxal de afirmar algo ao mesmo tempo em que estaria em autonegação. Parece confuso, mas o que há de indagador, a meu ver, nessa condição conflituosa entre afirmar e autonegar é que, atualmente, a crítica cria uma zona de identidade com o objeto para provocar certas indagações, a partir dele, acerca dos limites do conhecimento, sem evidenciar que isso só pode ser feito por meio de sua negatividade38 absoluta. Enquanto

sujeito e objeto, na ciência do homem, identificam-se profundamente a fundação dialética de uma ciência sem objeto. Irrompe a possibilidade para que se possa pensar que à crítica restou hoje a dissimulação da consciência de que, como me parece cada vez mais frequentemente, o objeto não pode ser encontrado, elegendo-se, assim, por seu caráter de inacessibilidade, o movimento de autêntica busca como condição vital para sua permanência. Com esse pensamento é possível seguir escrevendo.

Bastante afeito a investigação histórico-filosófica, é nesse ponto específico que Agamben assinala que a cisão entre arte e filosofia atingiria seu ápice, à medida que se fundamentaria, pois, segundo uma interpretação tradicional, na incompatibilidade da crítica em não resolver a incongruência entre o regozijo de um objeto que, paradoxalmente, não pode ser possuído e a conservação de posse de um objeto cujo gozo não é capaz de ser alcançado. Com o pensamento de Agamben podemos ver anunciado que o limite dessa tensão entre a apreensão e o gozo do objeto se encontra na sugestão de que a crítica ainda não alcançou a superação de sua limitação central. Se lermos a partir dessa chave, sem conseguir representar seu objeto ou mesmo compreendê- lo, a operação crítica converte-se, ela mesmo, em compreensão da representação: “à apropriação sem consciência e à consciência sem gozo”, comenta Agamben, “a crítica contrapõe o gozo daquilo que não pode ser possuído e a posse daquilo que não pode ser gozado”39. Justamente por isso, a vacuidade, o nada da crítica —

seu objeto ausente e inapreensível — torna-se, paradoxalmente, o imperativo valioso daquilo que reside na estância e provoca um exercício de negatividade, uma espécie de traço melancólico.

38SigmundFreud compreende o negativismo como o “desejo geral de negar, que é apresentado por alguns psicóticos, e que deve

provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão das pulsões da libido”. In: METZGER, Clarissa; SILVA JUNIOR, Nelson da. Sublimação e pulsão de morte: a desfusão pulsional. Psicol. USP, São Paulo , v. 21, n. 3, p. 567-583, Set. 2010.

39AGAMBEN, Giorgio. Estâncias — a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed.

Em sua argumentação, de outra parte, Julia Kristeva escreve que, para os indivíduos devastados pela melancolia, experimentar uma escrita sobre ela só faz sentido caso esse escrito surja também da melancolia. Que fique claro: melancolia e depressão são articulações distintas. No entanto, distante de esgotar um exaustivo caminho já percorrido pela teoria e crítica histórica, filosófica e psicanalítica, o que me interessa neste ponto é oxigenar os conceitos a partir de um exercício de pensamento. O que me resta, neste movimento de produção que se quis expandida, é pensar pontos de contato, furos e dobras que possam servir de abertura para correlacionar melancolia a gestos artísticos contemporâneos. Escrevendo nesse território da melancolia, ao lado dos artistas que intercedem minha relação com a arte, percebo que a introjeção cabal é a marca de um corpo estranho na pele do sujeito acometido. Conquanto tenha recebido teorização mais profunda na cultura europeia a partir da publicação do livro “The Anatomy of Melancholy”40, escrito por Robert Burton em 1621, associado ao sentimento

radicalmente oposto aos progressos científicos da época do renascimento cultural europeu, o passeio pelas veredas da antiguidade como possibilidade de resgate e contraponto de visões que direcionem luzes antes ao melancólico, do que à melancolia por si, é o meu desejo primeiro. Escrever sobre o melancólico conjuraria a inevitabilidade de saber que esse indivíduo, por seu suposto traço pesaroso, obscuro, taciturno — além de exilado de si por não aceitar uma ausência incompreensível — é aquele cuja legitimidade da escrita se faz adensada por esse pesar, haja vista ser portador de um sentimento inominável, irrepresentável por outrem:

A lista das desgraças que nos oprime todos os dias é infinita... Tudo isso me proporciona bruscamente outra vida. Uma vida insuportável, cheia de tristezas diárias, bebidas amargas, tristeza solitária, às vezes escaldante, às vezes incolor e vazia. Em suma, uma existência sem vigor, ainda que às vezes exaltada pelo esforço feito para continuar, pronta para naufragar a cada momento na morte.41

Apesar de reconhecer a relevância das leituras mais tradicionais, a meu ver a melancolia não se resume à carência, tampouco se reduz ao abatimento absoluto. De modo contrário, aposto mais na noção de guinada melancólica na arte contemporânea, que se fundamenta como um gesto de levante ativo ao tempo tensionado pela aceleração. Mais do que ler a melancolia enquanto fenômeno corporal de paralisia, interessa intensamente sua figuração na estrutura temporal, muito mais como um gesto melancólico no campo simbólico do que como afecção de um indivíduo. Enervação entre literatura, filosofia e psicanálise – retorno, em larga escala, ao diálogo com Agamben. Onde estaria, neste tempo de espera, na produção artístico-literária sobre o presente, o objeto 40 A publicação é citada por Moacyr Scliar em seu livro a respeito da melancolia. Nesse estudo, Scliar empreende com afinco a tarefa de

organizar um audacioso mapeamento do conceito melancolia e ressalta, com base na concepção de Robert Burton (1621), a transmutação da conotação de pecado capital para tristeza, abatimento e doença, ligadas à noção de genialidade artística e intelectual: “De outra parte, e como doença, a melancolia escapa ao estreito círculo da teologia e passa a ser abundantemente estudada, tanto por médicos como por pensadores, no contexto do interesse pela mente característico do século XVI, o século que vê o nascimento da palavra 'psicologia'”. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 76.

41 Tradução livre para o trecho: “La lista de desgracias que nos abruma todos los días es infinita... Todo esto me proporciona bruscamente otra vida. Una vida insufrible, cargada de penas cotidianas, de tragos amargos, de desconsuelo solitario, a veces abrasador, otras, incoloro y vacío. En suma, una existencia sin vigor aunque en ocasiones exaltada por el esfuerzo realizado para continuarla, dispuesta a naufragar a cada instante en la muerte”. KRISTEVA, Julia. Sol negro. Depresión y melancolía. Traducción por Mariela Sánchez Urdaneta. Caracas: Monte Ávila Editores Latinoamericana, 1997, p. 9.

ausente por ele questionado? Ora, a melancolia, em sua genealogia, veio a ser o emblema de teor ambivalente no que se refere, em teoria, à incessante busca em paradoxo por apreensão de um objeto inapreensível por seu princípio de incorporeidade. Documentos do período medieval, a propósito, nos revelam a existência do que seria uma praga silenciosa, considerada à época pior do que a peste negra – doença que dizimou um terço da população europeia no século XIV. Dessa praga melancólica, como argumenta o filósofo, restava a reflexão de que ela vinha a ser um mal segundo o qual, de acordo com a crença dos eclesiásticos enclausurados, acolhia a sombra da morte no espírito do sujeito menos vigilante ao exercício da fé.

A menção ao período medieval parece necessária. De fato, o mal-estar que, a princípio, abatia os habitantes da morada da vida espiritual recebeu variadas interpretações: ascedia, tristitia, taedium e desídian foram algumas denominações as quais o demônio que se instalava ao meio-dia42 recebeu à época, numa primeira e insuficiente

tentativa de compreender o fenômeno conhecido como melancolia — mal que conduziria à morte da alma, incorporar-se-ia à tristeza e, entre os oito pecados capitais da antiga tradição patrística, despontaria como o vício mais mortal, para o qual não haveria perdão. Demônio de paradoxos — cambiava os homens entre a apatia e o êxtase. Seria, portanto, chamada de ascedia a sensação de ausência diante de algo que não foi perdido, antecipando o desespero da condenação, ainda em vida, de um pecado cometido involuntariamente. A respeito desse acometimento, a condição física dos nocauteados por esse espírito maligno, na caracterização feita por Agamben para os monges medievais, compreendia uma acentuada dificuldade para dormir, inexistência de apetite, súbita e leve euforia seguida de um desejo profundo de entregar-se à morte. A correlação entre acídia e preguiça seria, ainda, redutiva diante da especificação pensada pelos doutores da Igreja acerca da “essência” do mal que tem como herdeiras:

Em primeiro lugar malitia, o ambíguo e irrefreável ódio-amor pelo bem como tal, e rancor, a revolta da má consciência contra os que exortam ao bem; pusillanimitas, o “animo pequeno” e o escrúpulo que se retrai assustado diante da dificuldade e do empenho da existência espiritual; desperatio, a obscura e presunçosa certeza de estar já condenado antecipadamente e o complacente aprofundamento na própria ruína, como se nada, nem sequer a graça divina, pudesse salvar-nos; torpor, o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos pudesse curar; e, por fim, evagatio mentis, a fuga do ânimo diante de si e o inquieto discorrer de fantasia em fantasia que se manifesta na verbo sitas, a tagarelice que gira inutilmente sobre si mesma, na curiositas, a insaciável sede de ver por ver que se perde em possibilidades sempre novas, na

instabilitas loci velpropositi [instabilidade de lugar ou de propósito] e na importunitas mentis, a petulante incapacidade de estabelecer uma ordem e um ritmo para o próprio

pensamento.43

42 A noção de “demônio meridiano”, na doutrina moral cristã, com base na tradição patrística da Idade Média, está apresentada no

capítulo primeiro da obra Estâncias — a palavra e o fantasma na cultura ocidental, de Giorgio Agamben. Essa penetração psicológica de um espírito maligno que invadia os religiosos em clausura no mosteiro encontra-se no Salmo 90 da Bíblia (na tradução de São Jerônimo), cuja acepção é assemelhada à sensação de preguiça, mas não uma preguiça costumeira. Trata-se, nesse excerto, de uma preguiça espiritual, específica da vida nos mosteiros e abadias medievais da qual, quando contraída, era responsável pelo abatimento total do monge, seu desejo de não pertencimento à sua realidade, as lamentações intermitentes pelo insucesso na realização dos exercícios de oração e de prática da vida cristã e, por fim, a sensação de vazio que recai sobre si e o deixa inerte.

Personagem-chave para a filosofia escolástica, Tomás de Aquino — doutor da igreja que exercitou um movimento considerado herético ao conciliar o pensamento aristotélico à fé cristã — na famosa Summa Teológica44 refletiu

brevemente sobre a questão melancólica ao tratar a autodesvalorização como uma das marcas da descrença que desassocia e aparta o objeto desejado do indivíduo que o deseja. Precisamente por não ter acesso, ou por este estar atravancado e ocluso, a persistência para alcançar o objeto desejado assalta o sujeito com uma espécie de morte em vida, uma não-vida, uma brecha vazia da existência, ainda que, de certa forma, paradoxalmente, o próprio desejo permanente torne o objeto impossível de ser apreendido para si. Novamente, ao retomar o contexto escolástico, a discussão entre o objeto ausente e o desejo de apreendê-lo ganha evidência na discussão agambeniana. O mecanismo de entendimento da acídia como filiada a um pecado imperdoável gera um motor dúplice e circular da relação do homem acidioso/melancólico com o divino. À medida que ele se repugna diante do descompromisso com Deus, o desejo de alcançar esse contato com o celestial e com o sagrado proporciona outro sentimento de perda e falência cuja existência retroalimenta, por assim dizer, o círculo de afetações dos enclausurados religiosos. A persistência e a exaltação de um desejo inalcançável criam uma retratação do acidioso: sem conseguir eclipsar e enfraquecer as forças eminentes da vontade de possuir algo inominável, o melancólico perscruta incessantemente a procura impossível de um objeto que tornado inatingível para si. Enquanto não consegue alcançá-lo, procura com lamento e autoflagelo um objeto que sempre o escapa:

A ambígua polaridade negativa da acídia se torna o fenômeno dialético capaz de transformar a privação em posse. Já que o seu desejo continua preso àquilo que se tornou inacessível, a acídia não constitui apenas uma fuga de..., mas também uma fuga para..., que se comunica com o seu objeto sob a forma da negação e da carência. Assim como acontece com as figuras ilusórias que podem ser interpretadas ora de um, ora de outro modo, assim também cada traço seu desenha, na sua concavidade, a plenitude daquilo de que se afasta, enquanto cada gesto realizado por ela na sua fuga testifica a manutenção do vínculo que a liga a ele. 45

Em estado de quase-contradição, estaria aí a dialética do afastamento e da aproximação do objeto. Somada à noção de Aquino, a abrangência semântica medieval situada em torno da acídia, por sua vez, abriria margem para assinalar os reclusos monges acometidos por esse mal como imaginativos por excelência. Essa injunção trazia em seu bojo um tópico a par do pensamento aristotélico: “Por que todos os homens que foram excepcionais na filosofia, na vida pública, na poesia e nas artes são melancólicos, alguns a ponto de serem tomados pelas enfermidades oriundas da bílis negra?”46. Na tradição da cultura grega, o vocábulo “melancolia”

carregava a priori a nomeação da afecção descrita pelo excesso de humor atrabiliário. A teoria dos quatro

44 Cf. AQUINO, Tomás de. Questão 6: Do voluntário e do involuntário. Art. 5 — Se a violência causa o involuntário. In:______. Suma Teológica. Disponível em <https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf> Acesso em 05 jan. 2018. No fragmento citado, Tomás de Aquino afirma que há inclinação da natureza “relativo à ação, como quando alguém quer fazer alguma coisa; noutra, relativo à paixão, como quando alguém quer sofrer alguma coisa, de outrem. Por onde, sendo a ação causada por algo exterior, e permanecendo, no qual sofre, a vontade de sofrer, não há, no caso, violento em si; porque, embora o que sofre não contribua para a ação, contribui contudo, querendo sofrer e, por isso, não pode ser considerado involuntário” (s.p.).

45 AGAMBEN, op. cit., p. 32.

humores do corpo humano47 expõe que a melancolia seria uma síndrome fisiológica a qual, para além das

questões orgânicas, teria consequências temperamentais nocivas, apresentadas pelo miserável homem em cujo organismo prevalece de bílis negra, tais como ser “triste, invejoso, mau, ávido, fraudulento, temeroso e terroso”48, além de sua correlação ao planeta Saturno49. Não obstante, no conjunto das antigas aporias

aristotélicas, essa desordem humoral foi pensada também como provocação e paradoxo de ser, a um só tempo, negatividade e afirmação, ou seja, causar afetações biológicas e temperamentais, ao passo que o caráter positivo vinculava o melancólico à plena habilidade de exercício poético, artístico e filosófico.

Como dito, Aristóteles concebe em “Problema XXX” o princípio basilar segundo o qual a melancolia, extraída do campo patológico das ideias hipocráticas e redimensionada à natureza, seria o ponto de contato entre todos os homens inclinados à criatividade excepcional nos campos da arte, literatura e ciência. Jackie Pigeaud,