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Em capturas íntimas do outro

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 160-162)

“A dor é a coisa mais importante de minha vida. A palavra ‘escrito’ não seria adequada (...) Encontrei-me diante de uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que não ousei tocar, e comparada à qual a literatura me envergonha.” Marguerite Duras Desde 2013 leciono língua portuguesa. Se menciono isso agora, talvez tardiamente, é para ainda em tempo dizer que minha relação com a palavra escapa à leitura por pura devoção. Evitei crianças durante muito tempo, acreditando que seria melhor me manter à distância do novo. Quase tudo mudou de significado, hoje me encontro diariamente com elas, medio seu contato com a palavra. Escrevo também, de quando em quando. Escrevo poemas avulsos, sempre em verso livre e sem rima, em horas vagas redijo algumas narrativas interrompidas, reflexões disformes, relatos de experiências inventadas. Entretanto, meu ofício primeiro é lecionar, como se me dedicasse exclusivamente à sala de aula. Costumo escrever quase sempre em janeiro, começando um projeto de livro durante as férias, disposto a dirigir o tédio para outro trecho da vida, outra vida. Escrever nas férias, com a cabeça menos cansada, retira a sombra do ofício de escritor, dilui a obrigatoriedade. Era uma brincadeira, sim, escrever começou como uma distração, uma espécie de jogo de esconde-esconde para me refugiar sozinho, desobrigar-me a sair de casa quando menino. Quase sempre vivo a mesma cena: pela manhã início alguma anotação para um texto futuro. Comecei a escrever de fato, com maior grau de interesse e intensidade, há pouco tempo, no instante em que vi que o ato pode não ser cura, mas cuidado. Anotar certas ideias em cadernetas, todas abandonadas, na verdade, durante muito tempo, me atordoou com uma sensação de fracasso não compreendido, uma angústia por quase nunca terminar meu diálogo com os interlocutores ausentes que eu inventava para meus textos. De toda forma, a literatura, assim como as artes plásticas, mediam minha forma de ler os outros, ou melhor, minha relação de amor com o mundo, me aproximam de um fazer literário, de mesmo modo que busco realizar diariamente com meus alunos.

No começo de tudo eu insistia na escrita à força. Em meados de 2015, eu ainda morava quase em frente a uma livraria e sempre me dava prazer abrir a primeira página de romances mais antigos, ler com lentidão a primeira frase da narrativa, anotá-la no caderno. Era um hábito de andar pela superfície inicial dos textos dos outros, algo que, com ambição, fazia sentido para mim e me colocava em contato com os pares. Fosse como fosse, eu voltava à casa, transcrevia essa anotação para o computador, e, à minha maneira, essa era uma forma de utilizar a literatura como motor e fornecer energia para que escrevesse meus próprios textos. Essa antologia de frases, é verdade, tornou-se uma espécie de museu, espaço onde até hoje admiro as citações copiadas e coladas ao lado de tantas outras, frases embaralhadas, convivência entre gerações. Recorte e cola, como a criança com palavras. E assim, à luz dessas ideias-citadas, voltei a escrever ficção depois de tantos anos. Por muito tempo não escrevi absolutamente nada, a não ser textos críticos, resenhas de livros, trabalhos acadêmicos na época da graduação. Seja como for, acreditando que as leituras possibilitam outros modos de se aproximar da vida pela escrita (tal qual um professor busca que o aluno redija reflexões sobre o que leu), meus impensados gestos de anotação em torno das minhas leituras desembocavam numa escrita muito esburacada, incoerente, fragmentária. Não é

só porque dissemino práticas de leitura na minha profissão, mas porque, além disso, o fundamento da literatura, para mim, constrói-se, como em toda aventura, com os riscos da falha, da rasura evidente, dos discursos repartidos. E acolhida essa ideia, insinuando-me nas letras de Roland Barthes, novamente ele, me acerco de suas anotações – percursos talvez inconclusos – para construir aqui, enquanto não tranco a casa de vez, um espaço afirmativo de convivência com minhas leituras: “Esse espaço é, em toda parte, o mesmo, pacientemente adaptado ao prazer de pintar, de escrever, de classificar”260. Retorno, então, a ler tudo o que escrevi até aqui na tese e tenho a sensação de que estou falando a mesma coisa, sempre igual, como a imagem circular do cão em torno do seu próprio rabo. Cego pela admiração pelos artistas com quem escolhi caminhar, além de viciado pela perspectiva unilateral de repensar laboriosamente a própria escrita, encontro na lógica da repetição certa dose de humor. Checo em Barthes que tudo isso pode ser afirmativo e saudável:

De palavra em palavra, esforço-me para dizer de outro modo o mesmo da minha Imagem, impropriamente o próprio do meu desejo: viagem ao término da qual minha última filosofia só pode se reconhecer – e praticar – a tautologia. É adorável o que é adorável. [...] Assim, o que fecha a linguagem amorosa é aquilo mesmo que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinação não pode nunca, no fim das contas, ultrapassar este enunciado: “estou fascinado”. Ao atingir a extremidade da linguagem, lá onde ela não pode serão repetir sua última palavra, como um disco arranhado, me embriago de sua afirmação: a tautologia não é esse estado inusitado, onde se acham misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice, a explosão do sim nietzschiano?261

Quando tudo se estilhaça feito um vidro frágil, resta ainda isto: a fascinação pela escrita. Acerto os ponteiros do relógio do texto. Ainda não consigo escrever narrativas mais minimalistas, tudo é muito dramático, os narradores gritam, e nessa insistência existe certo narcisismo. Há um intento libidinal contante por me encontrar, por me olhar no espelho. Narcisismo e melancolia estariam de certa forma entrelaçados, não estariam? Talvez esteja em triunfo esse vocábulo incontornável – a melancolia, novamente ela – subjacente a tudo o que escrevo dentro e fora desta tese, antes ou depois, como gesto responsivo à opressão do presente. Do encontro de multíplices e diversificados textos, com variantes vozes em câmbio contínuo, não isentas umas das outras, o corpo abalado de afetos de leitura se presentifica na escrita para que, com ele, e somente com ele, seja possível atribuir certa potência ao fracasso do percurso. Escrita se dá no fracasso? Roland Barthes, meu oráculo, ao falar sobre seu projeto de escrita, assumiu publicamente: “Pode ser bem que o Romance fique em – seja esgotado e realizado por – sua Preparação”262. Quem sabe, com ele, sem a pretensão de me fundir a sua escrita, seja possível mover- me nesse caminho através a força da anotação. Quem sabe, aliás, os escritos possam desviar do tom professoral que poderiam vir a ter, ou que de fato possam ter adquirido aqui, com o intuito de que, integrados à fonte de energia emanada de Barthes, seja vital se entregar em anotação, em resto, em fracasso, mas também em fricção com a pele, em contínua preparação, em potência forte, em rearranjo infinito.

260 BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 50. 261BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, p. 15. Quando Barthes faz referência ao “sim nietzscheano” parece querer correlacionar ao seu texto a noção de niilismo, conceito chave do pensamento de Nietzsche. Em uma das quatro formas de niilismo sistematizadas por Deleuze, o niilismo ativo seria a superação do próprio conceito, que se dá na negação da própria negação. O dizer-sim à vida faz com que cesse a oposição à própria vida, deixando-a disponível para sua guinada e para a consequente manifestação da energia vital nos corpos.

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 160-162)