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Disparar em sua arriscada caçada

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 146-160)

Encontro uma belíssima provocação escrita por Roland Barthes em seus estudos sobre fotografia. É uma história que eu havia lido apenas em fragmentos na época da minha juventude na universidade, mas que se encaixa perfeitamente na situação. Em certo momento de seus escritos derradeiros, o crítico discorreu sobre o espanto para sempre incontornável sentido por ele ao se deparar com a imagem de Jerónimo Bonaparte, irmão mais novo de Napoleão, constatando com certo humor que encarava os mesmos olhos que viram o Imperador. Diz ele: “vejo os olhos que viram o Imperador! Vez ou outra eu falava desse espanto, mas como ninguém parecia compartilhá-lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões), eu o esqueci”229. Se a ocasião e a sensibilidade da memória impeliram o crítico a desbravar com mais afinco o universo das imagens fotográficas com o entusiasmo de quem se embrenha por um novo bosque, sempre a desconhecer o que enxergará na travessia, acabo compreendendo que minhas incertezas sobre as fotografias, aquelas que apareceram para mim nos monóculos, me colocam em queda vertiginosa na escrita. O que fazer com esses retratos que sobram de uma vida descontínua e rasurada? Foi com essa interrogação que, revirando as pequenas câmaras de plástico, dediquei esforço para ouvir Barthes me advertir, tal qual um oráculo que aponta para o futuro, vindo passado. Esse oráculo barthesiano não me fala dos riscos da travessia pelo passado, mas, como um emissário afetivo, repõe a vontade de continuar a busca por compreender as imagens, desmistifica o medo intensivo, indica um caminho útil para entrar em contato com o passado dissipado, trazer todos outra vez de volta à casa. Quero novamente pensar com Barthes como uma força que vem. Leio apenas citações soltas anotadas no meu caderno, mas o vejo me acenando ao longe, por dentro da livraria em frente. Corro de súbito até suas palavras, às oito e quarenta e cinco da noite de uma quinta-feira do inverno carioca, quinze minutos antes de tudo fechar.

O calendário pregado na parede da sua sala assinala que já passou da metade do ano de 1979. Com o fim do verão e a chegada do outono, outra paisagem começa a ser desenhada lá fora – a coloração da capital francesa ao poucos se torna mais sépia, em tons variados marrom-escuro, o vento faz surgir discretamente tapetes da pele das árvores. Pedaços de natureza morta espalham-se como ruínas pelas imensas avenidas da cidade e, agora longe dos turistas de veraneio, os parisienses voltam a habitar seu espaço comum. De dentro de seu apartamento, ao contrário dos outros, o homem permanece exilado de quase tudo. Sabe que o tempo do seu relógio é descontínuo. Deflagrado pelo luto, Roland Barthes arquiteta a casa como um túmulo simbólico para continuar sobrevivendo com mam. Não abre portas ou janelas para que o espírito dela não se perca, para que o vento não os espalhe para longe de suas mãos. Escreve sobre ela e para ela. A corpo fragilizado do homem confia no futuro apenas pela escrita, sustentando a caneta, segurando papéis em retângulos,. Convive com uma vontade que não cessa pelo correr das horas. Passados três anos da morte de sua mãe, o homem, sem quase sair casa, convive com o luto, reconhece que ele jamais passará por completo porque a morte já foi sentida. Quando a encara pela primeira vez, ela se finca na pele como tatuagem. Ele se agarra, no entanto, à potência que reconhece na criação. Embora passe por contornos confessionais e íntimos, às vezes completamente aforísticos, ele tem consciência de que as anotações do seu descontínuo diário servem à pressa elástica para

chegar aos próximos escritos sobre imagens. Revolve os pertences e os espaços onde sua mãe viveu, altera esses lugares, registra em escrita esse gesto para, como quem operacionaliza um diário, dele não se esquecer depois. Empreende a “construção desvairada do futuro (mudanças de móveis, etc.): futuromania”230.

Foi em março de 1978 que ele grafou, no seu “Diário de luto”, a necessidade de reconduzir o desgosto à escrita. Alguns meses antes, desembaraçando seus pertences, Barthes capturou a si mesmo na armadilha de sua promessa – desejava pensar a fotografia, ou melhor, pensar a partir da fotografia, envolver-se com as imagens. A angústia poderá vir a se tornar escrita, questiona consigo mesmo. Quer dizer a si, ao que parece, que somente o escrever pode substanciar as estases do que o afeta, a incalculável perda da mãe. Às vezes parece escutar ao longe a morte avançando em sua direção, tem medo de morrer. Não tinha como prever que seria atropelado por uma caminhonete daqui a alguns meses. E depois do choque com o automóvel, mesmo permanecendo hospitalizado por algum tempo, deitado numa cama fria a receber a contragosto visitas de escassos amigos, a força do impacto com o carro o levaria à morte passados dois meses. Caso soubesse antes, de modo semelhante aos gregos com seus oráculos, poderia tentar enganar seu destino, esperaria um minuto a mais antes de cruzar distraído a Rue des Écoles, evitaria sair de casa naquela manhã. Costuma-se dizer que alterar o destino é impossível, entretanto, a contragosto dos mitos, não deixa de ser possível uma tentativa. Mas antes disso, Barthes continua a coletar seus escritos soltos sobre fotografia; por enquanto anota obsessivamente seu pensamento sob uma amarelada luz artificial, se lança a esse gesto gráfico como um empreendimento de permanência no luto. Não esconde nunca seu medo de que a morte os destrua por completo. Quer viver até à loucura, insistir até o devaneio, ele mesmo escreve, porém sabe que algo da ordem de uma perturbação o assombra, um especto desconhecido, talvez o tempo da morte que o aguardava em alguma esquina da cidade em pouco tempo. Do início de seu luto em diante, ele irremediavelmente reconhece de longe o significado da morte, do apagamento permanente. Tudo porque já se deparou com a violência desse evento derradeiro, o impacto autêntico do fim, o rompimento dos laços próximos. E isso passa a vir à mente sem controle:

Pensar, saber que a mam. está morta para sempre, completamente (“completamente que não se pode pensar senão por violência e sem que se possa manter por muito tempo esse pensamento), é pensar, letra a letra, (literalmente, e simultaneamente) que também eu morrerei para sempre e completamente.

Há então, no luto (no desta espécie, no meu) uma domesticação radical e nova da morte; porque, antes, este saber era simplesmente emprestado (desajeitado, vindo dos outros, da filosofia, etc.), mas agora, é o meu saber. Não pode doer-me muito mais do que o meu luto.231

Olho para as folhas de papel que compõem o livro de Barthes como quem busca decifrar um mapa, um caminho rumo a um lugar que preencha vazios. Cheiro as páginas novas do livro, tenho pena de rabiscá-las ou sublinhá- las. Devoro-as com bastante dificuldade e encanto. Quando o crítico escreve um longo parágrafo a respeito de noções que não compreendo na hora, passo a experimentar suas palavras por uma perspectiva estrangeira, uma espécie de convívio com uma língua desconhecida. Deixo o livro um pouco de lado, o caminho pode não ser

230 BARTHES, Roland. Diário de luto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 14. 231 Ibidem, p. 128, grifos do autor.

encontrado na intensidade daquele texto-mapa. Há algo de irracional nessa minha insistência nessa leitura crítica, por que, afinal, como poderei decidir o que fazer com as fotografias antigas a partir de um texto sobre imagens? À esquerda do meu sofá, ainda na mesma mesa, os monóculos aguardam qualquer movimento decisivo. Poderia destruí-los para fora da casa de uma vez. Não sei se o esquecimento dessas fotografias, guardadas em uma gaveta qualquer, me livraria da sensação de vacuidade que elas me causam. Volto à leitura e acabo fazendo um destaque em duas linhas do diário de luto de Barthes. Nelas o crítico diz: “Chocado pela natureza abstrata da ausência; e no entanto, arde, dilacera. Daí que compreenda melhor a abstração: é ausência e dor, dor da ausência – talvez, portanto, amor?”232 Permanecer vivendo com seus fantasmas. Ele parece dizer que é necessário amá-las, as pessoas idas, mesmo no vazio profundo, para deixá-las se desfazer. Antes de esquecê-las, no entanto, pode ser lícito conviver pela escrita com formas escondidas de passado. Essas pessoas estão exiladas em definitivo na memória de uma mulher morta. Não sei se eles puderam escolher entre vir ou ficar. Só que eu ainda estou aqui, na mesma casa. Melhor seria estar à beira de um porto, ou na estrada, indo embora da cidade, fechando a residência de uma vez, colocando-a à venda. Fecho o livro e recolho esses monóculos para guardá-los numa das caixas de papelão, caixas de mudança, mas, antes, olho-os mais uma vez. Naquelas pequenas caixas de fotografias em vários tons, ali as imagens aguardarão seu apagamento, guardadas longes dos meus olhos. Novamente ruínas. Posso manuseá-las um dia, vir a escrevê-las, não agora. Por enquanto, suspendo qualquer tarefa inventiva, procuro compreender mais sobre as forças das imagens, e então me envolvo com outras leituras teóricas.

No ir e vir constante com a temática da imagem, o livro “A Câmara Clara”, publicado em 1980, é uma meditação ampla cujo propósito não é empreender uma pesquisa técnica sobre os mecanismos da matéria fotográfica, tampouco uma investigação histórica sobre a origem da fotografia no circuito da arte. O que é então que Barthes se propõe a observar nas imagens? Quer, a princípio, investigar a fenomenologia do fazer da fotografia na sociedade moderna. Para ele, um conflito agudo entre vida e morte é o ponto nevral que sustém o investimento fotográfico. Frente à percepcção histórica da ocorrência de uma crise da morte no século XIX, a fotografia assumiu um lugar paradoxal e conflituoso porque, parafraseando sua escrita, na busca por capturar um instante, os fotógrafos viriam se tornam intensivos agentes da morte. Pela mecanização da imagem de um ser, a fotografia provocaria esse efeito obscuro, sobretudo à medida que o investimento de preservação da vida pela imagem acaba se tornando ambiguamente a conservação da morte. Vejam que Barthes está interessado num viés investigativo que valoriza mais a experiência subjetiva do ato fotográfico (e por consequência do resultado dessa ação) do que qualquer assertividade técnica da fotografia. Esses modos de leitura pelos afetos e efeitos da imagem fotográfica que fundamentam o livro finalizado em 1979 não são novos, começaram a ser pensados bem antes de sua publicação, antecipada pela força inventiva do crítico frente à dor extrema pela perda da mãe233. Não me dou conta de que seus escritos, desde sempre, me ensinam, direta ou indiretamente, a ler a fabulação como forma de resistência, potência de vida na palavra.

232 Ibidem, p. 50.

233 Embora a aposta deste trecho esteja vinculada à ideia de que a assertividade com a qual Barthes desbrava a fenomenologia fotográfica por meio do culto ao Referente tenha origem no encontro com o retrato da mãe, narrativizado em seu diário de luto, registrado entre 1978-1979, foi a publicação de “Mitologias”, em 1957, que fez com que o semiologista francês se introduzisse no universo das imagens. Nessa empreitada originária, sintetizada e rompida anos depois, seu enfoque estava no exercício de uma crítica voraz à cultura de massa

Enquanto objeto histórico e artístico, o crítico se aproxima da imagem fotográfica para decifrá-la em sua construção expressiva, ou, como ele mesmo escreve, em sua ontologia, num sentido abrangente. É no início de suas pesquisas sobre imagem que, mesmo vindo depois a se sentir “cientificamente sozinho e desarmado”234, ele tenta se apropriar de um ser ausente (sua mãe) pela via do pensamento sobre fotografia, com um gesto enlutado de investigação. Produz verbalmente também uma reação poético-intelectual ao tempo presente. Como eu disse antes, o encontro com essa vontade proliferante de se lançar à produção de pensamento sobre fotografia começou no “Diário de luto”, escritos nos quais discretamente o desejo de compreender tais signos de expressão o atravessa ao se deparar com as fotos da mãe criança. Ali, entremeado às meditações sobre a imagem da menina, sobre as formas de colocá-la em presença na escrita, o semiólogo revela o instante inesperado, em 1978, quando o irmão e ele se confrontam com as fotografias da mãe enquanto se desfaziam de suas coisas. Esse investimento comum à melancolia – a interminável apreensão do inapreensível – é o que impulsiona criativamente à atividade intelectual de Barthes junto ao luto. Ele diz que, neste ponto da experiência de contato com a foto da mãe, um luto arrebatador começa de novo, mas agora um luto capaz de ser elaborado, de estender a imagem à escrita. Quer, assim, aproximar-se novamente do rastro deixado por ela para conhecê- la em outra perspectiva, reconhecê-la mais uma vez, criar uma nova visibilidade possível. Esse difícil contato com a fotografia da mãe, em 1878, no Jardim de Inverno de Chennevières, ao lado do seu irmão, incursiona o filho a encarar o luto pela via do trabalho.

Bastante aflito para alcançar o entendimento sobre imagens, o semiologista compulsivamente se fascina com essa fotografia específica da mãe no jardim, como se nenhuma razão impusesse outra vontade a não ser decifrar o sentido latente contido sob o fluxo do tempo naquela imagem. Em todos os níveis do seu diário, a potencialidade do luto enfrentado pelo falecimento materno desempenha um papel fundamental na produção subjetiva do livro subsequente – suas notas sobre a fotografia –, e tal determinação fica clara nas anotações enlutadas, nos comentários que irão permitir que, em meio à mácula do luto que permanece, Barthes possa elaborar um exercício de escrita como rascunho, uma escrita prévia a uma elaboração mais efetiva do discurso sobre a dinâmica das imagens. Porque Barthes entra num acordo consigo, a propósito do encontro com o retrato da mãe, que é na fotografia que o tempo se preserva simbolicamente paralisado – já que os indivíduos morrem, pela reprodução imagética eles se projetam uma sobrevida. Esse princípio fundamental de reconstituição e afetação pela fotografia faz com que o filho se aproxime do corpo-ausente da mãe na busca incessante e melancólica por atribuir-lhe algum sentido pelo que restou do seu corpo infantil na imagem, deslocado do presente e do futuro, um ativo que desdobra em pensamento crítico o passado, como está explícito na nota escrita em dezembro de 1978 no “Diário de luto”:

e, sobretudo, à linguagem da qual ela se apropria. Em uma desmontagem estrutural, o crítico buscou, nessa reflexão primevo sobre visualidades, empreender uma crítica ao seu tempo a partir dos modos de apropriação da matéria fotográfica pela cultura de massa, tomando-a como suporte para disseminação de uma mitologia pequeno-burguesa que descaracteriza e deturpa uma realidade histórica, naturalizando a cultura. Cf. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Boungermino e Pedro de Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

234 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 18.

Tendo recebido, ontem, a foto que mandei reproduzir de mam. quando menina, no jardim de inverno de Chennevières, tento colocá-la diante de mim, em minha mesa de trabalho. Mas é demais, é intolerável, dói demais. Essa imagem entra em conflito com todos os pequenos combates vãos, sem nobreza, de minha vida. A imagem é verdadeiramente uma medida, um juiz (compreendo agora como uma foto pode ser santificada, guiar → não é a identidade que é lembrada, é, nessa identidade, uma expressão rara, uma “virtude”).235

A experiência de Barthes com a imagem da mãe me é muito cara, mas um pouco distinta da minha própria. Eu encontrei os monóculos entre os escombros deixados por minha avó, deles me apropriei porque não reconheço o rosto das pessoas reunidas ali. É difícil explicar minhas sensações, justamente porque os monóculos despertam uma disputa com a memória que poderia ter sido resolvida mais rápido. Talvez eu tenha a intuição de que ao aproximar-me destas imagens sem precisar escondê-las novamente, pela primeira vez de maneira lícita, longe dos olhares inquisitivos da minha avó, o desvendamento da história por um possível exercício de ficção possa produzir uma transgressão ao passado reforçado pelo silêncio das fotografias. Quanto a Barthes, para mim, resignado pela solidão do seu apartamento, trago-o para esta escrita como um personagem. Convivo com suas palavras porque elas me apontam o povir. Ao longo das minhas leituras, sinto que Barthes reconhece a mãe não pela constituição física do seu rosto ou do seu corpo como um todo, mas pelos vestígios daquilo que ele não conhece na imagem da criança revelada na fotografia. Ele encara não a memória que tem da mãe, mas uma menina da qual quase nada sabe. De maneira bastante anestesiada pelo forte abatimento do luto, Barthes enxerga a criança na fotografia não pela semelhança física do corpo, porém pela vivacidade da sua imagem, pelo lugar específico em que se situava aplicado à moldura, pela benevolência sigilosa despertada por um rosto delicado. Entre todos os registros de uma vida, todas amortecidas pelo tempo presente, a imagem da mãe durante a infância posando no jardim, é a única com a qual aceita conviver, a única que o surpreende e o desafia a se aproximar, na posição de filho, da vontade de integrar-se à aventura de desbravamento do passado, conforme escreve enfaticamente: “é essa decepção triste que sinto diante das fotos comuns de minha mãe – ao passo que a única foto que me deu o deslumbramento de sua verdade é precisamente uma foto perdida, distante, que não parece com ela, a de uma criança que não conheci)”236.

Encarar a fotografia daquela menina, antes que fosse a mam., é o único modo possível para fazer surgir algo como um esforço de vida em meio ao luto, um pensamento para encontrar na sua imagem, com sua ternura infantil, um entendimento maior do tempo após a morte materna. Enquanto o luto acontece, Roland Barthes presentifica sua mãe aos poucos nas anotações do diário. Vai ao encontro de suas ruínas, um arqueólogo em expansão pelos terrenos quase-inacessíveis do passado. Há nisto uma relação ainda mais ampla entre o crítico e o horizonte especulativo sobre a fotografia, traço que entrará em cena no início da escrita de “A Câmara Clara”, ocorrido em 1979, quando ele assume uma tentativa de se localizar na ambivalência entre dois tipos de enunciação, ou seja, compreender as fricções entre um pensamento argumentativo e poético. Para realizar esse empreendimento na publicação de 1980, Barthes, a partir de uma seleção de imagens que o afetam, busca

235 BARTHES, op. cit., p. 216. 236 Ibidem, p. 152-153.

entender o caráter originário, ou seja, “a ordem fundadora da fotografia”237. Logo nas primeiras páginas de “A Câmara Clara”, a esse respeito, Barthes escreve:

Conclui então que essa desordem e esse dilema, evidenciados pela vontade de escrever sobre a Fotografia, refletiam uma espécie de desconforto que sempre me fora conhecido: o de ser um sujeito jogado entre duas linguagens, uma expressiva, outra crítica; e dentro desta última, entre vários discursos, os da sociologia, da semiologia e da psicanálise – mas que, pela insatisfação em que por fim me encontrava em relação tanto a uns quanto a outros, eu dava testemunho da única coisa segura que existia em mim (por mais ingênua que fosse): a resistência apaixonada a qualquer sistema redutor. Pois toda vez que, tendo recorrido um pouco a algum, sentia uma linguagem adquirir consistência, e assim resvalar para a redução e a reprimenda, eu a abandonava tranquilamente e procurava em outra parte: punha-me a falar de outro modo.238

Releio intensamente o que escrevi até aqui sobre a relação de Barthes com a fotografia. Ao observar a forma

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 146-160)