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Estilhaçar corpos de papel

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 162-173)

“Seis meses se passaram desde que tudo isso começou. Eu era um homem, não este amontoado de trapos.” Nuno Ramos As fotografias dizem muito por si só, exibem seu referente, mas nunca podem capturar o todo. O caminho percorrido por Roland Barthes ao realizar sua incursão pelo território fotográfico fez com que o crítico se lançasse na produção de uma escrita que abrisse mão de um cotejo somente conceitual para se aproximar da imagem fotográfica pela via do sensível. Em outras palavras, colocando-se na posição de espectador, o semiologista foi ao encontro das imagens para compreendê-las a partir de uma experiência sensorial (o afeto) que elas provocam em seu corpo enlutado à época. Se existe um estímulo em forjar essa estratégia discursivo-analítica, esse expandir-se do corpo à fotografia passa a ser fundamental para exercitar qualquer leitura imagética a ser empreendida nesta tese, movimento fora do meu domínio. Não à toa, ao marcar suas sensações e seus afetos frente as imagens, com suas complexidades inerentes, Barthes, naquele momento específico da sua vida, torna indissociáveis a incursão crítica e a experiência subjetiva de análise fotográfica, abrigando ambas, no limite, sob a escrita ensaística que exercita na sua derradeira teoria.

Esse gesto intensivo de devolver o olhar às fotografias que lhe cercam opera, por vezes, como uma plataforma de lançamento do corpo rumo a uma experiência muito singular: a recusa ambígua de um espectador universal das imagens ganha espaço frente às sensações orgânicas do próprio Barthes, com suas histórias e particularidade. Dessa dinâmica de se colocar como um espectador particular e específico, o critico é certeiro ao falar que as fotografias o “advém”263, como se de fato o convidassem para uma aventura. Esta mesma tensão entre imagem e corpo faz com que crítico francês se dirija a ela para se interrogar: “O que meu corpo sabe da fotografia?”264. Pensando nessa seleção vocabular, a opção pelo vocábulo “corpo” já configura a noção de afeto provocado pelo punctum: força incontestável que atravessa o corpo, mesmo que não seja isso que o olhar procura. O corpo de Barthes enquanto expectador torna-se um personagem criado por ele mesmo. É com o estímulo que vem da iluminação desses pensamentos de Barthes sobre a fotografia que eu reposiciono meu corpo em afetação disponível, nessa trama sensível de afetos, fluindo em direção à leitura das imagens alocadas à narrativa “Minha Fantasma”, escrita por Nuno Ramos.

Eis a aposta que gostaria de colocar à prova neste ponto: a literatura e as visualidades mantém como condição fundamental a convivência entre concretude e precariedade, entre vitalidade e mortificação. Com isso, de volta ao diário “Minha fantasma”, incluído na edição de “Ensaio geral” publicada pela Editora Globo em 2007, Nuno Ramos apresenta o projeto fotográfico de Eduardo Ortega insinuado entre a massa verbal da narrativa. Incluídos a partir do gesto de intercalar imagens entre alguns parágrafos ao longo do texto, a série visual forma um conjunto de oito imagens do apartamento de Nuno Ramos vazio e do seu corpo nu, deitado no chão, coberto,

263 BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 36.

em quase toda sua superfície, por poeira ou fuligem negra. Uma corporalidade que cria zonas de vazamento e passagem com o fora, com a casa, com os destroços ao redor. Se as figuras fotográficas não se desmembram do texto, mas, ao contrário, incluem-se na confluência entre as linguagens verbal e imagética, elas parecem servir não como mera ilustração do texto, ou fotografia-documental, mas, sobremaneira, como pequenas metonímias visuais do todo pela parte, um plano figurativo para a atmosfera de cansaço do corpo e de morte iminente de um corpo cadavérico. A conjugação entre os artefatos verbo-visuais, corroídos os limites entre eles, produz um plano de contiguidade: a ausência de ação do corpo da mulher-personagem do conto, que sofre em apagamento paulatino, reverbera na cena do apartamento desabitado de móveis, que conduz a leitura, com uma potência perturbadora, para o enquadramento da máquina fotográfica, um espaço aberto ao devaneio e à loucura. Por outro lado, a dissecação da imagem do homem nu, o suposto narrador do conto, deitado com uma sombra difusa que paira sobre seu corpo esquálido, cria um amálgama entre matérias, o que faz assomar a imagem da sobrevivência de um corpo frente ao tempo de sua duração antes da morte. Uma das tarefas das fotografias invasoras, nos trabalhos plástico-verbais de Nuno Ramos, é acumular a imagem num gesto de generosidade com as palavras, de extensão de linguagens, um movimento de fusão e acolhimento não-hierarquizado, uma consubstanciação permanente: “Acho que tem um processo ali”, o artista escreve em entrevista, “um corpo entrando em outro. Uma coisa viva que morre e ao morrer se funde a outra matéria, um pouco assim como virar matéria, ir a outros estados da matéria”265.

Embrenhar-se pela arte fotográfica, conforme Nuno Ramos afirma em entrevista, não é um movimento confortável para ele. Embora tudo se misture com espantosa integração a partir do contágio do artista com diversos materiais, a fotografia em si solicitava uma ramificação para o código imagético produtor de uma mensagem enquadrada, impulso com o qual ele não se sentia à vontade para aceitar. Duas exceções, em contrapartida, se instalam no interior das interseções artísticas de Nuno ao lidar com a fotografia autônoma: primeiramente, o modo como se fundamenta o projeto “Mácula”, realizado em 1994, exposto na XXII Bienal Internacional de São Paulo, instaura uma potência espectral da imagem, com certos movimentos com que o material fotográfico era conduzido para a construção uma espécie de gesto de fracasso da representação. O material único que Nuno manipulou na composição dessa série visual, apesar da unidade fundamental ser a mídia fotográfica, contorna quaisquer relações da imagem com seu referente, ou com o espelho do real. À diferença disso, a película fílmica usada nas antigas câmeras fotográficas convertia, na proposta do artista, a representação em desfoque, em sequestro da nitidez, tal qual uma potência de destruição. Em vez de apontar a máquina fotográfica para um plano representativo, o artista abandonou a ideia de índice e ambicionou a captura específica da imagem do sol, cujo produto é autoexplicativo para a tecnologia da época: uma fotografia pouco nítida devido aos raios luminosos que incidiam sobre as lentes.

Poucas coisas são tão características da obra de Nuno Ramos como a modificação de materiais originários e, sem contrapor-se a esse fundamento, a relação exteriorizada com a fotografia impulsionou o artista a abrir a máquina e expor o filme, danificando os negativos – operação de duplo cruzamento de captura da luz. Convertida agora em imagem desestruturada e desestruturada da reprodução do referente, com uma arquitetura desencarnada

265 RIBEIRO, Gustavo Silveira; SANTOS, Tatiana de Almeida. Foto, mácula, memória: uma entrevista com Nuno Ramos. Revista de Estudos Linguísticos e Literários da UFBA, Salvador – BA, n.49, jan./jul., 2014, p. 153.

do sol, o jogo de transformação matéria tencionava-se na possibilidade desse negativo ser revelado e ampliado, expondo artisticamente um resultado que se dá na contenção de um material imagético em matizes alaranjadas, contornos disformes, sem nenhuma analogia com o referente originário. Nesse sentido, pode-se pensar que o referente era aderido e diluído em uma consubstanciação de formas excêntricas e cores brilhantes. Sob essa imagem quase abstratas, Nuno Ramos imprimia seus textos em braile, protuberâncias no papel, comum à leitura de deficientes visuais. Produzido para homenagear o ilustrador Oswaldo Goeldi e impressas em 2003 num catálogo produzido pelo Clube da gravura do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o segundo projeto artístico de Nuno Ramos com a fotografia se fundamenta em sua vontade intensiva de colocar sua produção em sobreposição à do desenhista Goeldi. Postos de maneira fundamentalmente relacional, Nuno realizava capturas fotográficas por paisagem da cidade de São Paulo com o intento de registrar imagens parecidas com as gravuras e os desenhos do artista homenageado.

Embarco nessas nuances imagéticas na obra de Nuno Ramos para poder chegar com mais firmeza em “Minha Fantasma”. Esses trabalhos visuais trataram-se de uma experiência de misteriosa simplicidade para tentar seguir o rastro deixado por esboços de gravuras e tentar reproduzi-los em outra matéria, a fim de apresentá-los um sobre o outro, obrigando o espectador a reparar no que há de semelhança, diferença e confluência entre as imagens. O que esse novo trabalho de fotografia autônoma intitulado “Mocambos (paraGoeldi 3)”266 produziu foi uma cena de sequestro das gravuras para replicá-las a seu modo e emoldurá-las conjuntamente, sem apaziguar as diferenças, denunciando, então, no sentido total do projeto, uma necessidade de preocupação com o índice presente na formação das imagens. O mais curioso desse projeto é o acentuado tom de tristeza e monotonia, comum as imagens de Goeldi, que Nuno a rigor almeja encontrar nas janelas, chaminés e igrejas que compõem a espacialidade irrefreável da metrópole paulistana. Experiência intensiva de tempos e materiais diferenciados que se amalgamam, o circuito percorrido por Nuno exclusivamente pela matéria fotográfica vai desembocar em um dos componentes mais ostensivos presente na constituição de sua poética: o discurso plástico-verbal entre fotografia e poesia.

Como a crítica vem apontando até aqui, o livro “Junco”, publicado em 2011, talvez seja o mais emblemático na produção de um movimento plástico-verbal agudo, que justapõe imagens da carcaça um cachorro morto à margem de uma estrada e de troncos de árvore caídos com poemas sobre a transformação da matéria, discursivas construções plásticas escritas durante décadas. A descontinuidade e o inacabamento são impressões intensivas que dão à publicação a mesma operação metamórfica de trabalhos outros: o livro pode ser lido como um longo poema dividido em mais de quarenta fragmentos, ou, com uma originalidade inacabável, lido como quarenta e três poemas intercambiáveis. O resultado, nesse caso, só pode ser fruto de uma experiência de criação desdobrado em um sistema complexo de complementaridades entre as fixas fotografias e o extraordinário movimento da série verbal composta por versos curtos, tudo isso realizado através da mediação simultânea do olhar. O quase vazio das imagens opacas, a contrapelo do jorro verbal de cada bloco poético,

266 De acordo nota de rodapé relacionada à introdução explicativa da série de fotografias intitulada “Mocambos (paraGoeldi 3)”, presente no livro “Ensaio Geral” (2007), Nuno Ramos menciona outros dois trabalhos anteriores dedicados a homenagear o artista Goeldi. Ele explicita brevemente quais são: “A exposição ‘paraGoeldi 1’ foi realizada na Galeria As Studio, São Paulo, em 1996, e a ‘paraGoeldi’ na Casa Vermelha, Curitiba, em 1999”. RAMOS, Nuno. Agouro e libertação (Oswaldo Goeldi). In:______. Ensaio geral: projetos, roteiros, ensaios, memórias. São Paulo: Globo, 2007, p. 189.

transforma a sequência de páginas em uma dinâmica contínua de leitura dos poemas para que toda potência capturada não se perca mais.

As peças fotográficas que ilustram matérias mortas – e por isso estáticas – estão a serviço de uma velocidade maquinal com a qual os poemas podem sem enfrentados, mas sem que entre eles, palavra e imagem, exista qualquer desequilíbrio que impõe os textos como subjacentes ou ornamentários do conteúdo das fotografias, ou vice-versa. Embora exista a predominância da presença da matéria verbal – são 18 fotografias entremeadas aos 43 poemas – ocorre uma ambivalência equilibrada entre imagem e poesia no que diz respeito ao valor atribuído a elas no livro, sobremaneira por terem sido pensadas juntas desde a gênese de “Junco”. Não se deve estranhar, então, que o programa estético revindicado pela feitura das obras produza um modo de leitura que se fundamente nessa operação mútua de enfrentamento conjunto das imagens e da palavra, ainda que as fotografias, em certa medida, possam vir a ser encaradas como instrumentos de ressemantização amplificadora de cada verso. Desde a opacizada capa do livro, cuja imagem do tronco caído se centraliza e recebe iluminação, as formas fotográficas não se tornam passivas para um gesto contemplativo de leitura, mas, concorrentes entre si, conjugam uma força extensiva que compõe uma construção binária de linguagens, tal qual a maior parte das obras verbo-visuais de Nuno:

Sempre pensei um pouco as duas coisas juntas mesmo [fotografias e textos]; conforme os poemas foram saindo, foram poemas muito lentos – eu demorei 12, 13, 14 anos para fazer o livro – fui fazendo essas fotos tanto dos cachorros como dos juncos, sempre pensei os dois inseparavelmente. Mas não considero aquelas boas fotos, não é isso. Não tem nada a ver com o clique, com a imagem final. É o conceito o que me interessa. Não sei, acho que não tenho o menor jeito para fotografia: é engraçado, para enquadrar, para disparar, não me sinto bem fotografando. Então, eu não o considero um trabalho fotográfico, no sentido de haver ali uma experiência específica com a fotografia. Tudo está muito ligado mesmo à concepção e aos conceitos propostos.

Mas também não se trata de ilustrações ao texto. Acho que tem um processo ali, um corpo entrando em outro. Uma coisa viva que morre e ao morrer se funde a outra matéria, um pouco assim como virar matéria, ir a outros estados da matéria, algo que eu acho que é o tema geral dos poemas. 267

Justapostos nas fotografias, a matéria animal (o cadáver do cachorro) e vegetal (o tronco tombado) permitem uma intensiva abertura do livro ao corpo de quem lê, ao olho de quem observa a página, um investimento entre linguagens que organiza um espaço reinventado em sua poética. Nuno mesmo chega a comentar em entrevista que o diálogo da poesia com a imagem em Junco “é mais uma ideia, um conceito do que um trabalho com a linguagem da fotografia”268. Nasce, assim, com os poemas as imagens-mortas que se concebem como uma experiência performativa – o que está em evidência na proposta do artista paulistano não são os atributos técnicos minuciosos da fotografia, conforme ele diz, mas a promoção de um efeito gerado pelo regime da estranheza das equivalências imagéticas capturada pelas lentes de sua câmera. Procura produzir, assim, na captura do espaço real de duas matérias mortas, um estímulo intensivo, uma provocação para que o espectador

267 RIBEIRO & SANTOS, op. cit.., p. 153. 268 RIBEIRO & SANTOS, op. cit., p. 154.

dedique olhar atencioso à experiência do apagamento, que, longe de ser falseada pela ficção, expõe-se no asfalto que engole o bicho e na areia que incrusta o tronco lançado ao chão.

O afeto que se desdobra a partir da captura da imagem da decomposição, no confronto em relação à desestruturação das matérias, será recuperado na produção escrita como um discreto gesto de acionar formas de compreensão dos ciclos de transformação da matéria que tudo abarcam – antropomorfização e animalização. Por visualidade que se vale da decomposição, a compreensão da vida em larga extensão se dá na semelhança do humano com o animal morto, em um jogo anunciado em poema: “Aqui tudo começa/ e fica/ parecido com.269”. E à medida que esse eu-poético, a partir da relação intertextual com a “Máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, conscientiza-se da melancólica impossibilidade do seu desafio subjetivo- epistemológico de encontrar a semelhança em tudo, aceita a experiência intensificadora de abnegar a totalidade para mover-se pelo limite do inacabado que estrutura o mundo. Embora em “Cujo”, livro anterior, o sujeito- enunciador já houvesse anunciado seu interesse em encontrar uma fração de entendimento que lhe revele o sentido da transformação, não há como não dizer que em Junco essa analogia interferente entre fracasso e potência não se insinua, mas se revela impassível. Essa operação criativa, modulada pela melancolia, fica evidenciada na orelha do livro: “Não é preciso adivinhar a referência à busca do sentido do mundo, à ‘total explicação da vida’ que espantosamente se abre aos olhos de um caminhante solitário”, observa a crítica Flora Süssekind, para quem o empreendimento plástico-discursivo de Nuno Ramos se realiza em signos do desaparecimento fundadores de um “movimento largamente expansivo”270.

A fenomenologia da animalidade humana, expostas em multifários modos e rearranjos da matéria orgânica, faz com que o procedimento literário-escultórico de Nuno, na figuração plástico-discursiva de “Junco”, concentre- se em uma expressividade da inconstância das coisas, irrompida numa linguagem de construção inacabada, ou, talvez, de destruição concluída. Essa ambição acumulada, infinitamente incapaz de ordenar o mundo pela discursividade ou visualidade, condiciona a enunciação do artista a assumir esse papel de especulação e tentativa, feito uma linguagem em movimento, evidenciada no encadeamento pensado pela teoria da literatura ainda hoje, onde confluem poesia, artes plásticas e além. Em “Junco”, esses problemas e limites da expressão ficam evidentes num poema: “Se aumento/ o número de palavras/ o mundo, meu mundo, este mundo/ que me abraça e que respiro/ este conjunto de bolhas e besouros/ estoura. / Notícia/ poema, samba/ coração cenário/ grafado num tronco:/ a cusparada/ da chuva sabe mais”271. O que depois desse breve mapeamento por alguns trabalhos de Nuno Ramos interessa expor nesta escrita é o jogo de forças em atrito que sustenta a relação do artista plástico com a fotografia. Mesmo lá, entre as palavras, onde elas parecem estar em contínuo desaparecimento, resta às imagens do constructo “Minha fantasma” a formação de uma linha figurativa da fotografia e da literatura, afetadas pelo que está fora dela: a perda de si, a perda do outro.

269 RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011, p. 55.

270SÜSSEKIND, Flora. Apresentação. In: RAMOS, Nuno. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011. 271 RAMOS, op. cit., 2011, p. 71.

RAMOS, Nuno. Minha fantasma. Digitalização das fotografias da primeira edição do texto de Nuno Ramos.

Uma contínua procura e, em certa medida, dilacerante busca pela ilusão a respeito da compreensão da totalidade da vida e das coisas do mundo, verbalizada e exercitada nas produções de “Cujo” (1993) e de “Junco” (2011) não se furta no constructo verbo-visual “Minha fantasma”, no qual Nuno Ramos aborda a depressão da esposa e, como consequência, os impactos que a afecção geram em sua vida como um todo. Se dentro e fora do apartamento procura um sentido para as coisas, um modo de vida que afaste a doença da sua companheira, há um certo torpor alucinante que faz com que o narrador desse diário-conto se envolver em um circuito contínuo com o apagamento pela morte, seja na parte verbal, seja nas fotografias. Seu escopo propositivo, acima de tudo, é o sofrimento e a busca por um substitutivo a ele. Tudo ali, fotografias e blocos descritivo-poéticos, parece se estruturar como um texto-escultura, ou um texto-monumento, tal qual produz Roland Barthes no seu diário de luto – uma espécie de ritual verbal de preparação para a morte. Dou a mão aos dois, Nuno e Barthes, para seguir um pouco mais adiante, acumulando minha linguagem às suas.

Penso que para dar espaço alegórico-visual ao projeto “Minha fantasma”, esse sujeito cujo corpo é transformado em materiais e texturas diversas – “um caule murcho, tombado, quase a terra onde o tronco vai beber novamente”272 – em uma ação imóvel prototípica da fotografia precisaria reverberar no texto. Inicialmente, Nuno cogitou fotografar a própria esposa, epicentro do diário, entretanto, para além do caráter fúnebre renegado, impunha-se a ele uma outra força criativa, a originalidade de momentaneamente sair da posição de sujeito enunciativo e tornar-se objeto de captura. Dada a ambivalência relacional entre Nuno e a produção de fotografias, cada imagem presente no diário é provenientes de uma origem de outra ordem, feita com um distanciamento de Nuno em relação ao comando da máquina fotográfica, mas se incluindo corporeamente no ato. Nesse sentido, Eduardo Ortega, fotógrafo e amigo pessoal do artista, incorporou-se ao projeto do livro, registrando nove imagens contundentes e poéticas: seis de um apartamento vazios e três de Nuno Ramos deitado no chão, completamente nu, coberto de cal. O que pode a imagem nos trabalhos de literatura? Essa questão recorrente da crítica contemporânea, no diário de Nuno Ramos, torna-se ainda mais violenta porque,

No documento Ou ensaios reunidos para um roteiro do acaso (páginas 162-173)