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CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

3. Características dos Privilégios Creditórios e do seu regime legal decorrente do Código

3.1. O carácter legal

Analisando os elementos e características intrínsecas dos privilégios creditórios, desde logo sobressaí o seu carácter exclusivamente legal168, como aliás resulta da noção legal da figura fornecida pelo próprio legislador. Verificamos que a maioria dos privilégios creditórios constituídos no nosso ordenamento jurídico tem em vista a salvaguarda de interesses relacionados com a própria natureza do direito de crédito, como é o caso particular dos créditos tributários.

Porém e em outro tipo de casos, o fundamento por detrás do privilégio assenta na especial relação do crédito com o bem sobre o qual incide o privilégio, como é o exemplo o privilégio creditório conferido ao proprietário do prédio do empreendimento explorado em regime de direito real de habitação periódica169. Já no que diz respeito aos privilégios atribuídos em função da qualidade do próprio credor (os antigos privilegium

personae no Direito Romano), atento o princípio da igualdade entre credores pelo que

se pauta o nosso ordenamento jurídico em matéria obrigacional, foram abandonados pelo nosso legislador. Desta forma, é negada aos particulares a possibilidade de, por ato da vontade, criarem ou constituírem privilégios creditórios para garantia dos seus

168 Dispõe o art.733.º do CC: ”Privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos

credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outro”.(sublinhado nosso)

169 Esta é uma característica “intemporal” dos privilégios creditórios. No antigo Império Romano, a figura do privilégio creditório

subdividia-se nos já abordados “privilegium causae lato sensu” e “privieligium personae”. Sobre a distinção ver supra ponto 1.1 do Capítulo II.

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créditos, circunstância esta que demonstra a exclusividade, a especialidade destas garantias170, bem como a imperatividade das normas jurídicas que compõe o seu regime jurídico.

De facto e enquanto uma garantia das obrigações, o privilégio creditório representa todavia uma derrogação ao princípio geral da igualdade entre credores, decorrente do n.º1 do artigo 604.º do CC, na medida em que concretiza uma prioridade na satisfação dos créditos dos quais é acessório, em face dos demais créditos comuns. Atento o seu carácter exclusivamente legal, as vicissitudes e elementos que norteiam o funcionamento dos privilégios creditórios no tráfego jurídico são definidas pelo legislador.

Neste sentido, a lei define como e de que forma os privilégios se organizam entre si171, quais as regras de prevalência de uns face a outros e ainda, a sua relação com as demais garantias das obrigações.

Logicamente, atentas estas considerações, facilmente se concluí que as características e o regime legal deste instituto não pode ser modificado por vontade das partes. De notar que esta vertente excecional que tanto caracteriza os privilégios creditórios foi expressamente concretizada pelo legislador do CC de 1966, como se pode retirar do disposto no artigo 8.º do Diploma Preambular que aprova o CC172, indicações que tem sido sucessivamente desconsideradas pelo legislador, já que hoje assistimos a uma proliferação dos privilégios creditórios, tendo sido criados pelo legislador variadíssimos privilégios em legislação especial.

Devemos contudo questionar o sentido e alcance desta proibição imposta pelo legislador do CC relativamente à possibilidade de o legislador ordinário criar novos privilégios além dos previstos no CC. Por um lado, não sendo o CC um diploma legal com valor reforçado, poderíamos discutir a validade desta proibição para o futuro,

170 Todavia esta nem sempre foi a regra no ordenamento jurídico português. Antes da entrada em vigor do CIRE, o CPEREF previa

dois casos de constituição de privilégios creditórios por acordo das partes. Desde logo no n.º1 do artigo 65.º do sobredito diploma estipulava a possibilidade de os créditos visados pelo artigo usufruírem de privilégio creditório, desde que o juiz, mediante proposta do gestor judicial com parecer favorável da comissão de credores, os declarasse como contraídos no interesse da empresa e dos credores. Também a alínea b) do n.º1 do artigo 101.º do CPEREF previa a possibilidade de a empresa em dificuldades económicas conceder créditos privilegiados como uma contrapartida da obtenção dos fundos necessários à sua reabilitação, constituindo-se assim privilégios creditórios por vontade das partes.

Já em Itália, como nos explica SANDRO MERZ, ob. cit., págs. 9 e ss a possibilidade de os particulares constituírem entre si privilégios creditórios não põe em causa o carácter legal dos mesmos, uma vez que essa mesma possibilidade é, em exclusivo, definida e determinada pelo legislador.

171 Cfr. art. 745.º do CC.

172 Prescreve o artigo 8.º do DL n.º 47344/66, de 25 de Novembro dispõe: “1. Não são reconhecidos para o futuro, salvo em acções

pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial. 2. Exceptuam-se os privilégios e hipotecas legais concedidos ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, quando se não destinem à garantia de débitos fiscais.” (sublinhado nosso).

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sustentando que o legislador não pode considerar-se por ela vinculado do ponto de vista jurídico.

Não obstante a validade e veracidade destas considerações, sempre se diga que a indicação do n.º1 do art.8.º do Diploma Preambular que aprovou o CC possui uma vinculação teleológico-jurídico, ou seja, embora não retirando qualquer validade e eficácia jurídica às leis avulsas que consagram novos privilégios, ela possui um carácter orientador não vinculativo, sugerindo que o legislador futuro deve abster-se de recorrer injustificadamente à figura do privilégio creditório, atentos os efeitos nocivos que provoca no tráfego e comércio jurídicos.

Neste sentido, concordamos com as palavras do saudoso e malogrado professor ANTUNES VARELA173, quando afirma que “ (…) o grande perigo dos privilégios

creditórios para a segurança do comércio jurídico advém do facto de eles valerem em face de terceiros, independentemente de registo. (…) Assim se explica a orientação vincada no Código Civil (art. 8.º da Lei de introdução – Dec.- Lei n.º 47344, de 26.11.1966) de declarada reacção contra a proliferação de privilégios da legislação anterior (…) Infelizmente, a tendência para usar e abusar dos privilégios creditórios renasceu na legislação posterior, com graves repercurssões para a economia nacional em muitas das acções propostas contra empresas em situação financeira difícil. (…)”.