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CAPÍTULO III – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS COMO UMA GARANTIA DO

3. Privilégios Creditórios em matéria tributária

3.1. No Código Civil

No n.º1 do artigo 736.º do CC, o legislador concede ao Estado e às autarquias locais privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos tributários devidos por impostos indiretos e impostos diretos. Já supra nos debruçamos sobre esta distinção pelo que a esta parte procuramos especificar o restante conteúdo deste preceito. Desde logo coloca- se a questão de saber se o limite temporal previsto no preceito para os impostos diretos – só serão privilegiados os créditos inscritos para cobrança no ano corrente da data da penhora e nos dois anos anteriores – se aplica também aos créditos devidos a título de impostos indiretos.

A esta questão a generalidade da doutrina e da jurisprudência considera que essa limitação não se aplica aos créditos tributários devidos a título de impostos indiretos279, todavia, mesmo que o limite temporal ínsito no preceito em causa não se aplique a estes créditos, não podemos esquecer, os prazos de prescrição280 previstos no artigo 48.º da LGT relativos ao direito de cobrança dos créditos tributários.

Neste sentido, o legislador especificamente prevê que os créditos tributários devidos a título de impostos indiretos devem ser cobrados no prazo máximo de oito anos contados a partir do termo do ano em que se verificou o fato tributário281, sob pena de se

279 Na doutrina sustentam esta posição, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., pág. 757, e ainda CARDOSO DA COSTA,

“Curso de Direito Fiscal”,2.ªEdição, Coimbra, 1970, Almedina, págs. 35 e 36; Em sentido contrário MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág. 291 sustenta que o privilégio mobiliário em causa deve ter como limite o pressuposto de que o crédito tributário devido por impostos indiretos se tenha constituído ou seja relativo à data da penhora, na medida em que ao adotar-se uma solução contrária, ser posto em causa o princípio da confiança constitucionalmente consagrado. Na jurisprudência vejam-se os Acórdãos

do STA de 18/5/11 (disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/72321be3b18012bd8025789a003f3ece?OpenDocument&Expa ndSection=1#_Section1) e de 23/5/12 (disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1a1b1604bac83cd480257a0e004f7c5d?OpenDocument); em sentido concordante com a posição de MIGUEL LUCAS PIRES, vejam-se as conclusões do Ac. do TRL de 6/12/11 (disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8f1bf69e2a995dc38025798900412e4a?OpenDocument).

280 Quanto à distinção entre a caducidade do direito à liquidação dos tributos e a prescrição do direito que assiste ao credor

tributário de proceder à sua efetiva cobrança, vejam-se as considerações de JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições…”, ob. cit., págs. 431 e ss.; e ainda, para uma análise destes temas enquanto garantias a favor dos contribuintes, cfr. CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob.cit., pág. 340.

281 Cfr. o n.º1 do artigo 48.º da LGT. Destarte, o artigo 49.º da LGT prevê ainda os casos em que a contagem do prazo de prescrição

previsto no artigo anterior se suspendem. A esta parte importa ainda o vertido no artigo 45.º da LGT referente ao prazo de caducidade de quatro anos para o direito de liquidação dos tributos que assiste à Administração Tributária, cuja contagem se inicia, nos impostos periódicos, “a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário”.

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verificar a prescrição do direito da Administração Tributária de cobrança do crédito tributário.

Ainda quanto à ratio legis por detrás desta distinção entre impostos diretos e impostos indiretos, em análise à solução legal que fora adotada pelo ordenamento jurídico italiano para a mesma matéria, escrevia VAZ SERRA, ainda em 1957: “ (…)

Esta distinção entre contribuições directas e indirectas parece razoável. No primeiro caso, trata-se de impostos que todos os anos são devidos e lançados com base em relações nominativas, e, por isso, há necessidade de limitar o número de anos de imposto que gozam de privilégio a fim de que este não assuma proporções extraordinárias e grandemente lesivas dos outros credores, tanto mais que o Estado tem o dever de cobrar rapidamente os impostos de cada ano. (…) No segundo caso, não teria lugar a mesma limitação, porque não se verifica a razão que a determina no primeiro (…). Todavia, não se afigura, em princípio pelo menos, razoável, que o privilégio se mantenha, com prejuízo eventual de outros credores, por um largo espaço de tempo. (…) ”282.

Neste sentido, se para a cobrança dos créditos tributários relativos a impostos indiretos o legislador não prevê qualquer limite temporal para a eficácia do privilégio, o mesmo não se verifica no caso dos créditos tributários relativos a impostos diretos.

Voltando ao texto do preceito, contata-se a preocupação do legislador em limitar a eficácia temporal do privilégio associado a estes créditos, apenas valendo o privilégio mobiliário geral face aos créditos “inscritos para cobrança no ano corrente na data da

penhora, ou ato equivalente, e nos dois anos anteriores”.

Já anteriormente nos debruçámos sobre o conceito de “ato de apreensão judicial de

bens”, reconhecendo que a penhora e o arresto (desde que posteriormente convertido em

penhora) são exemplos desse tipo de atos que sendo praticados têm como consequência fazer “despoletar” a eficácia do privilégio creditório283. No fundo a relevância destes

atos face ao privilégio traduz-se na determinação temporal da sua eficácia, ou seja, vão determinar o espaço temporal em que o privilégio liberta a sua eficácia, e

282 Cfr. VAZ SERRA, “Privilégios”, in BMJ n.º 64 (1957), págs. 107 e 108. A distinção entre impostos diretos e impostos indiretos foi

alvo de expressa menção legislativa no Anexo I do D.L. n.º 26/2002, de 14.02, (disponível em

http://www.dgo.pt/legislacao/documents/DecLei_26-2002-14FEV.pdf).

283 Cfr. neste sentido as conclusões do Ac. do STA de 25/09/13, processo n.º 01153/13, disponível em

(http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/758dd6fc1496549980257bf8004e5823?OpenDocument&Exp andSection=1).

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consequentemente, especificar quais os créditos tributários abrangidos pela preferência de pagamento deste decorrente.

Porém a eficácia temporal dos privilégios creditórios previstos no artigo in questio compreende ainda um limite imposto pelo legislador no n.º1 mediante a expressão: “inscritos para cobrança”284.

Aqui a lei refere-se expressa e inequivocamente ao momento em que a obrigação tributária já se venceu, resultando em consequência uma dívida tributária certa, líquida e exigível e face à qual se verifica a eficácia plena do privilégio creditório. No fundo, o tributo encontra-se em fase de pagamento, podendo este ser realizado voluntariamente pelo contribuinte ou coercitivamente285 Não obstante, dúvidas se têm suscitado na jurisprudência sobre a interpretação deste limite temporal imposto à eficácia do privilégio creditório face aos créditos tributários.

Podemos resumir a questão da seguinte forma: para efeitos do disposto no n.º1 do

artigo 736.º do CC, devem considerar-se abrangidos pelo privilégio os créditos tributários inscritos para cobrança durante os dois anos anteriores ao ano civil em que é feita a penhora, independentemente da data em que o fato tributário ocorreu? Ou se, por outro lado, devem considerar-se abrangidos pelo privilégio apenas os créditos relativos a impostos diretos que se tenham constituído e sido inscritos para cobrança nos dois anos anteriores ao ano da data em que se efetuou a penhora?

Note-se que a diferença entre estas posições se traduz numa maior ou menor amplitude do crédito tributário, na medida em que a segunda posição impõe um maior limite à eficácia temporal do privilégio face ao crédito, apenas admitindo a eficácia deste face aos créditos tributários constituídos durante os dois anos anteriores ao ano civil em que a penhora se realizou. Já para os defensores da primeira corrente interpretativa, os créditos tributários abrangidos pelo privilégio podem ter-se constituído em data anterior ao limite dos três anos, desde que a data em que foram inscritos para cobrança se verifique dentro desse limite. Na doutrina, a corrente maioritária tem defendido a primeira posição, encontrando suporte na interpretação do elemento literal por detrás do preceito. Destacamos as considerações de SOUSA FRANCO sobre esta

284 SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 133, sustenta que “Impostos inscritos para cobrança são aqueles em que ela já não

depende da prática de atos tributários, salvo o de recebimento, o que tradicionalmente tem sido designado por impostos à boca do cofre.”; Cfr. ainda sobre este aspeto CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob.cit, págs. 308 e 309; e JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, ult. ob. cit. págs. 205 e 206;

285 Prescreve o art. 78.º do CPPT que “A cobrança das dívidas tributárias pode ocorrer sob as seguintes modalidades: a) Pagamento

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matéria, em defesa da primeira tese: “ (…) Parece certo – uma vez que o legislador

resolveu reportar a eficácia do privilégio à inscrição para cobrança – que não releva para tal o efeito de o facto constitutivo do imposto esteja fora do período do ano da penhora, ou dos dois anos anteriores, ou que a esse período não se reportem os rendimentos ou outras manifestações de riqueza tributária: importa, sim, confrontar o momento do início do período de vencimento do imposto, após a inscrição, com a data da penhora. (…) ”286. A jurisprudência sobre esta matéria tem vindo a pronunciar-se maioritariamente neste último sentido, ou seja, de que os créditos tributários abrangidos são os que se encontrem inscritos para a cobrança, independentemente da data da sua constituição, no ano civil da data da penhora, desde que se reportem, no máximo, ao período compreendido entre a data da penhora e os três anos anteriores, como aliás resulta das conclusões do Acórdão do STJ de 7/11/00287.

Mas no CC encontramos ainda outras disposições que conferem aos créditos tributários privilégios creditórios. Falamos a esta parte dos privilégios creditórios especiais conferidos aos créditos tributários devidos a título de IMT, de Imposto de Selo e ainda de IMI, conforme resulta do n.º2 do artigo 738.º do CC e ainda, do artigo 744.º do diploma citado. Sobre a eficácia temporal destes privilégios, valem as considerações por nós supra tecidas sobre o n.º1 do artigo 736.º. Destarte, por razões de coerência expositiva, devemos desde logo fazer as necessárias ressalvas ao texto da lei no que diz respeito à terminologia dos tributos utilizada.

Assim, no n.º2 do artigo 738.º, é conferido privilégio creditório mobiliário especial aos créditos tributários resultantes do “imposto sobre as sucessões e doações”. Na atual

286 Cfr. SOUSA FRANCO, últ. ob. cit., pág. 95. Também neste sentido, consultem-se as posições de SALVADOR DA COSTA, últ. ob.

cit., pág. 133, e de RODRIGUES PARDAL, “Os Privilégios Fiscais segundo o novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 102, pág.

29. Em sentido contrário, pugnando pela segunda posição, MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., pág. 294;

287 Disponível em Revista CJ/STJ, ano VIII, tomo III, pág. 101, no qual se pode ler: “(…) O legislador na determinação do período de

tempo que é abrangido por privilégio creditótio que garanta o pagamento de dívidas fiscais, usa, por vezes, como factor determinante, a data da inscrição para cobrança da respectiva obrigação fiscal. É o que acontece com o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário previstos, respectivamente, nos arts. 736º, n.º1 e 744º, n.º1, ambos do Cód. Civil. Ora, se o legislador quisesse que a determinação dos 3 últimos anos referidos naquele art.104º A que corresponde o actual art. 111º. do CIRS fosse balizada pela inscrição em cobrança do IRS, após a liquidação, tê-lo-ia dito expressamente. Ou então, teria feito uma remissão para os citados preceitos do Cód. Civil, ou outros no género. Mas tal não aconteceu (…)” Neste sentido, veja-se ainda o Ac. do STJ

de 27/03/07 (disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a1b3d3ad8cc479ad802572ab003b8ca2?OpenDocument.), e

ainda os Acórdãos do TRP de 02/03/10 (disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/568c793dabd8359d802576f1005c383f?OpenDocument), o

Ac. do TRG de 13/10/04 (disponível em

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configuração do sistema tributário português, sabemos que o imposto sobre sucessões e doações deixou de existir, tendo sido “substituído” pelo Imposto de Selo288.

Porém, como nos elucida SALVADOR DA COSTA, o privilégio creditório mobiliários especial previsto no n.º2 do artigo 738.º do CC passou a aplicar-se aos créditos tributários resultantes de Imposto de Selo, visando os bens móveis que sejam transmitidos gratuitamente.289

De notar que estes mesmos créditos gozam ainda, em conjunto com os créditos tributários relativos ao IMT, de privilégio creditório imobiliário especial, nos termos do n.º2 do artigo 744.º, incidindo tal garantia sobre os bens cuja transmissão deu origem à liquidação do imposto. Por fim, centramos a nossa atenção para o privilégio imobiliário especial concedido aos créditos tributários relativos “à contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais”, incidindo esta garantia sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos a esta contribuição. Sobre este preceito normativo tecemos duas breves notas analíticas.

Em primeiro lugar e no seguimento do que já referimos também sobre a SISA e o imposto sobre sucessões e doações, sempre se diga que a referência à contribuição predial deixou de fazer sentido face à atual configuração do ordenamento tributário. Neste sentido, onde se lê “contribuição predial”, deve entender-se como sendo essa uma referência ao IMI, como aliás resulta da própria leitura do n.º1 do artigo 122.º do CIMI. Em segundo lugar, da análise ao n.º1 do artigo 744.º do CC ressalta que a eficácia temporal do privilégio creditório face ao crédito tributário que reforça é menor relativamente à prevista no n.º1 do artigo 736.º.

Efetivamente o legislador prevê que apenas se encontrem abrangidos pelo privilégio imobiliário especial os créditos inscritos para cobrança no ano corrente da data da penhora e nos dois anos anteriores, ao contrário da previsão dos três anos anteriores aplicável ao privilégio mobiliário geral dos créditos tributários por impostos diretos.

288 O Código do Imposto de Selo foi totalmente revisto e republicado pelo D.L. n.º 287/2003, 12.11. De notar ainda que o artigo

28.º do mesmo diploma expressamente indica: “1 - Todos os textos legais que mencionam Código da Contribuição Autárquica ou

contribuição autárquica consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) ou ao imposto municipal sobre imóveis (IMI). 2 - Todos os textos legais que mencionem Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, imposto municipal de sisa ou imposto sobre as sucessões e doações consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), ao Código do Imposto do Selo, ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e ao imposto do selo, respectivamente.”

289 Cfr. SALVADOR DA COSTA, últ. ob. cit., pág. 138. O próprio n.º1 do artigo 47.º do CIS confirma esta interpretação, ao explicitar

que “ Os créditos do Estado relativos ao imposto do selo incidente sobre aquisições de bens têm privilégio mobiliário e imobiliário

sobre os bens transmitidos, nos termos do n.º 2 do artigo 738.º ou do n.º 2 do artigo 744.º do Código Civil, consoante a natureza dos bens.”

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Assim e de acordo com esta solução, se o crédito relativo ao IMI é inscrito para cobrança no ano de 2006, tendo a penhora dos bens do devedor sido realizada em 2010, esse crédito não beneficiará da proteção conferida pelo privilégio imobiliário especial aqui em apreço. Sempre se diga que atenta a natureza jurídica do privilégio imobiliário especial, os créditos tributários por ele abrangidos serão graduados em primeiro lugar face aos créditos hipotecários sobre os bens, atento o regime do artigo 751.º do CC290.

Tempo para uma última consideração desta vez sobre a cumulação de privilégios creditórios sobre o mesmo tipo de créditos tributários. Se até aqui procuramos enunciar os vários privilégios concedidos pelo CC aos créditos tributários, importa agora aferir das hipóteses em que um único crédito tributário se poderia encontrar, teoricamente, garantido por um privilégio creditório geral (como é o previsto no artigo 736.º) e simultaneamente por um privilégio creditório especial.

Nesse sentido, o n.º2 do artigo 736.º prevê a inaplicabilidade do privilégio creditório mobiliário geral conferido genericamente aos créditos por impostos pelo n.º1 do mesmo preceito, face aos créditos tributários devidos a título de IMT, IMI e Imposto de Selo, bem como a todos os demais créditos tributários já abrangidos por privilégios creditórios especiais. O interessante porém é que, como aliás infra analisaremos, o legislador atribui em vários outros diplomas avulsos, privilégios creditórios gerais a em favor de vários outros créditos tributários, contrariando a vontade do legislador expressa no já citado artigo 8.º do Diploma Preambular que aprova o CC e a solução designada no sobredito n.º2 do artigo 736.º do CC.