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Espécies de Privilégios Creditórios

CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

4. Espécies de Privilégios Creditórios

Muita da análise e estudo da figura do privilégio creditório se prende com a distinção entre privilégios gerais e privilégios especiais, do âmbito da qual emergem outros problemas, como é o caso da natureza jurídica da figura, sobre a qual já nos debruçamos

supra. Deste modo procuramos desvendar um pouco mais sobre este instituto jurídico,

abordando ainda as problemáticas inerentes ao objeto da mesma, agora através da conjugação dos dois critérios distintivos, a saber, a distinção entre privilégios especiais e privilégios gerais e, em segundo lugar, entre privilégios mobiliários e imobiliários.

4.1 – Os privilégios mobiliários e os privilégios imobiliários

A distinção entre privilégios mobiliários e imobiliários decorre do disposto no artigo 735.º do CC. O legislador estabelece a distinção recorrendo a um critério baseado na natureza jurídica dos diferentes tipos de bens abrangidos pelo privilégio creditório. No fundo, atendendo a este critério distintivo empregue pelo legislador, o privilégio creditório (seja geral ou especial), assume a própria qualificação dos bens sobre os quais incide. Assim os privilégios mobiliários serão os que versam sobre o produto da venda dos bens móveis215 existentes na esfera patrimonial do devedor à data da penhora ou de ato equivalente.

Porém esta distinção não se concretiza apenas na diferenciação dos bens que podem ser objeto de privilégios creditórios, já que é uma distinção que afeta os efeitos jurídicos associados a cada categoria de privilégio. Se por um lado a experiência e vivência do tráfego jurídico nos demonstra a existência em maior número, de bens mobiliários do que bens imobiliários.

214 Prescreve o artigo 746.º do CC: “Os privilégios por despesas de justiça, quer sejam mobiliários, quer imobiliários, têm

preferência não só sobre os demais privilégios, como sobre as outras garantias, mesmo anteriores, que onerem os mesmos bens, e valem contra os terceiros adquirentes.”

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A verdade é que tal facto não culmina com uma maior força garantísitica dos privilégios mobiliários face aos imobiliários. Isto pois, como já tivemos oportunidade de concluir anteriormente, o privilégio mobiliário geral não possibilita ao titular do direito de crédito perseguir os bens que o privilégio abrange e que existam na esfera patrimonial de terceiros que não o devedor, ou seja, não lhe está associado qualquer direito de sequela, daí que não seja qualificado pela generalidade da jurisprudência e doutrina nacionais como um verdadeiro direito real de garantia.

No âmbito da relação jurídica tributária, a remissão presente na alínea a) do n.º1 do artigo 50.º da LGT impõe que façamos uma breve enumeração de alguns dos privilégios creditórios mobiliários associados a créditos tributários. Desde logo destacamos o privilégio mobiliário geral atribuído aos créditos do Estado e das autarquias locais para a cobrança das quantias devidas a título de impostos indiretos e ainda, pelos impostos diretos216, inscritos para cobrança217 no ano corrente na data da penhora, ou ato

equivalente, e nos dois anos anteriores218. Por sua vez os privilégios imobiliários serão

aqueles cujo objeto se traduz no produto da venda dos bens imóveis existentes na esfera patrimonial do devedor, à data da penhora219, ou de ato equivalente.

São exemplos deste tipo de privilégio creditório os presentes nos artigos 743.º e 744.º do CC e ainda, os previstos no artigo 205.º do CRCPSS e nos já referidos artigos 111.º do CIRS e 108.º do CIRC.

4.2 – Os privilégios creditórios gerais e os privilégios creditórios especiais

A distinção entre a natureza do privilégio assenta, como vimos, na natureza dos bens sobre os quais incide. Todavia, centramos agora a nossa análise em um outro critério distintivo dos privilégios, baseado no grau de especialidade e determinação dos bens que são objeto do privilégio.

216 Impostos indiretos serão os impostos instantâneos ou de obrigação única, por outras palavras, aqueles em que a relação fonte

da obrigação fiscal é desencadeada por uma relação instantânea e que dá lugar a uma obrigação de imposto isolada, ainda que o seu pagamento possa ser efetuado em prestações. São exemplos deste tipo de imposto o IVA, os Impostos Especiais sobre o Consumo ou ainda, o IMT. Por seu turno, os impostos diretos visam a tributação de uma realidade factual continua, isto é, situações prolongadas no tempo, verificando-se uma renovação anual sucessiva da obrigação de pagar o imposto. São exemplos, o IRS e o IMI. Para uma análise mais aprofundada sobre a distinção, veja-se, por exemplo, PARDAL RODRIGUES, “Os Privilégios

Creditórios segundo o Código Civil”, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 102, pág. 11; e ainda, CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., pág. 68.

217 O conceito de “imposto inscrito para cobrança” diz respeito aos tributos cuja cobrança não depende da prática de qualquer ato

tributário (e.g. o ato de liquidação do tributo) por parte da Administração Tributária, mas depende outrossim do recebimento da quantia exigível. Para uma noção mais aprofundada, cfr CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., págs. 308 e 309.

218 No mesmo sentido os artigos 111.º do CIRS e 116.º do CIRC consagram privilégio mobiliário geral a favor da Fazenda Pública,

relativamente aos créditos tributários devidos a título desses mesmos impostos, respetivamente.

219 O problema da determinação do momento jurídico-temporal em que o privilégio creditório imobiliário se torna eficaz, já foi por

nós abordado no ponto 2.1 do presente capítulo. Trata-se de uma matéria essencial para melhor compreender o regime jurídico do instituto e a própria constituição e efetivação dos poderes a ele inerentes.

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Na presente dissertação já concluímos que este critério distintivo é essencial para a determinação da própria natureza jurídica do instituto do privilégio creditório.

Debruçando-nos novamente sobre os privilégios, diremos que são privilégios creditórios gerais aqueles que ab initio, não vêm o seu objeto individualizado, ao invés incidindo sobre todo o tipo de bens móveis ou bens imóveis, existentes na esfera patrimonial do devedor. Daí que quando se coloca a questão da natureza jurídica da figura, a doutrina220 e a jurisprudência prevalentes neguem ao privilégio creditório geral a classificação de direito real de garantia, sustentando que apenas se verifica a determinação e individualização dos bens cujo produto da venda servirá para satisfazer o crédito privilegiado, pelo que não está satisfeita uma das características essenciais de qualquer direito real, inerentes ao princípio da especialidade: a determinação concreta do objeto do direito.

No fundo os privilégios creditórios gerais serão meros direitos de preferência sobre o valor do produto da venda221 dos bens do devedor, cuja eficácia dependerá de um ato de

apreensão judicial. Esta é ainda uma questão que realça um importantíssimo ponto em comum entre os regimes jurídicos dos privilégios gerais e dos privilégios especiais, isto é, a determinação dos efeitos e consequências que o ato de apreensão judicial - vulgarmente a penhora - dos bens assume face à necessidade de um momento concretizador da eficácia do privilégio.

220 Em sentido contrário, na doutrina MIGUEL LUCAS PIRES, últ. ob. cit., págs. 431 e ss., sustenta que o privilégio creditório geral

tem uma natureza híbrida, consoante seja analisado no momento do nascimento do direito de crédito privilegiado ou no momento em que se torna efetivo, através da penhora. Assumindo-se num primeiro momento como uma mera preferência legal e no segundo momento, já depois da penhora dos bens do devedor, como um verdadeiro direito real de garantia, atenta a especificação dos concretos bens sobre os quais incide esse privilégio. Esta posição tem por base uma comparação entre o carácter de garantia real inerente aos privilégios creditórios gerais e os efeitos jurídicos decorrentes do ato de penhora de bens, de acordo com o disposto no artigo 819.º do CC. Será através da qualificação da penhora como um direito real de garantia que o autor subscreve o entendimento que o privilégio beneficia do direito de sequela associado à penhora dos bens do devedor. Salvo o devido respeito, embora possamos concordar com a qualificação do privilégio geral como uma garantia real, não podemos subscrever o entendimento do autor em relação aos efeitos da penhora dos bens em processo executivo e consequente atribuição da sequela para qualificar o privilégio geral como um direito real de garantia. De facto, o próprio artigo 749.º do CC não afasta a possibilidade de os direitos de crédito de terceiro constituídos anteriormente ao privilégio creditório geral prevalecerem sobre. Mais se diga que o próprio devedor/executado continua a poder alienar os bens a terceiros, não obstante a ineficácia desses negócios face ao exequente, para além dos casos em que direitos de crédito não cedem face à penhora e venda do bem, como é o exemplo dos direitos do arrendatário que tenha celebrado contrato de arrendamento com o executado antes do registo da penhora do imóvel. Sobre este aspeto, cfr. o Ac. do STJ de 27/03/07, disponível em CJ/STJ, 2007, Tomo I, pág. 146.

221 Na jurisprudência veja-se, a título de exemplo, as conclusões do Ac. do TRG de 21/05/13, referente ao processo n.º

4142/11.9TBGMR-A.G1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b6034631cad44e8980257b89004a7f31?OpenDocument. Destacamos um breve trecho da fundamentação da decisão “ (…) Na sequência do citado acórdão do Tribunal Constitucional, o

Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, veio alterar a redacção do artigo 751.º do Código Civil, o qual passou a dispor que «Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.». Esta nova redacção do artigo 751.º do Código Civil veio, assim, estabelecer, de forma clara e inequívoca que o regime de sequela e prevalência dos privilégios imobiliários apenas se aplica aos que forem “especiais”. Só os privilégios imobiliários especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações. (…)”.

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Porém, uma vez “despertada” a sua eficácia através da apreensão judicial222 dos

bens, os efeitos jurídicos assumirão contornos diferentes consoante o tipo de privilégio em causa, especialmente no que diz respeito à eficácia face a direitos de terceiro, como resulta dos artigos 749.º (para os privilégios gerais) e 750.º e 751.º (para os privilégios especiais), todos do CC.

A esta parte centramos a nossa atenção para a problemática em torno da existência de privilégio creditórios imobiliários gerais no nosso ordenamento jurídico, visto que o artigo 8.º do diploma preambular que aprova o CC223se pronuncia pelo não reconhecimento de privilégios creditórios criados em legislação avulsa, salvo os concedidos a créditos públicos. Se por um lado o n.º3 do artigo 735.º do CC (na versão do texto legal que decorre do D.L. n.º 38/2003, de 08.03), explicita que os privilégios creditórios imobiliários previstos nesse diploma “são sempre especiais”, por outro lado, parece-nos que a vontade do legislador relativamente à criação de novos privilégios para além dos existentes no CC, não tem sido tida em conta nas recentes alterações sobre esta matéria, atenta a proliferação de privilégios imobiliários consagrados em legislação avulsa, em especial os privilégios imobiliário gerais.224

Neste sentido, em consonância com a vontade do legislador do CC expressa no já citado artigo 8.º do diploma preambular que o aprova, consideramos que o legislador se

222 Contudo a esta parte impõe-se a alusão à distinção entre a natureza do ato de penhora consoante o processo executivo em

apreço. Se por um lado no seio da teoria geral do processo a apreensão de bens a que nos referimos no texto só pode ser decretada por um Tribunal, daí nos referirmos a ato “judicial”. Já o mesmo não se verifica no processo de execução fiscal, lide executória no âmbito da qual a competência para a penhora cabe ao órgão da execução fiscal, pelo que a penhora assume na execução fiscal uma natureza administrativa e não propriamente judicial. Assim, o processo de execução fiscal distingue-se do processo de execução da ordem judicial na medida em que a competência para a prática de atos é distribuída pelo órgão da execução fiscal e pelos tribunais tributários. Daí que subscrevemos na íntegra as considerações do professor JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, “Lições….”, ob. cit., pág. 341, quando afirma que a execução fiscal se configura como um processo de natureza “administrativo-jurisdicional”. No mesmo sentido, vejam-se ainda a posição de CASALTA NABAIS, “Direito Fiscal”, ob. cit., págs. 310 a 315.

223 Dispõe o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 47 334, de 25/11/66, sob a epígrafe ‘Privilégios Creditórios e Hipotecas Legais’: “1. Não

são reconhecidos para o futuro, salvo em acções pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial. 2. Exceptuam-se os privilégios e hipotecas legais concedidos ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, quando se não destinem à garantia de débitos fiscais.”

224 Antes da alteração do texto do artigo 751.º do CC imposta pelo D.L. n.º 38/2003 de 08.08, na doutrina e jurisprudência

nacionais discutiu-se se era aplicável aos privilégios imobiliários gerais não previstos no CC o disposto no artigo 751.º ou se, por outro lado, lhe era aplicável o regime do artigo 749.º desse diploma. Se em um primeiro momento a jurisprudência do STJ foi clara em sustentar a posição que o artigo 751.º do CC era também aplicável aos privilégios imobiliários gerais constituídos em leis avulsas ao CC, como aliás resulta do Ac. do STJ de 29/05/80, disponível no Boletim do Ministério de Justiça n.º 297, págs. 298 e ss., e ainda, no Ac. do STJ de 17/11/81, publicado no Boletim do Ministério de Justiça n.º 311-358. Esta posição tinha como consequência a aplicação do disposto no artigo 751.º do CC aos privilégios imobiliários gerais, culminando com a atribuição de um verdadeiro direito de sequela e ao reforço do carácter real desses privilégios, enquanto instrumentos garantísticos do crédito, em detrimento nos credores hipotecários e dos credores comuns. A problemática da inconstitucionalidade desta interpretação do artigo 751.º do CC chegou ao Tribunal Constitucional, tendo a mesma sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, decorrente do artigo 2.º da CRP, no Acórdão do TC n.º 362/2002, de 17/09/02, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020362.html. Em sentido contrário, pronunciando-se pela não inconstitucionalidade da interpretação do artigo 751.º do CC, no sentido de que o privilégio creditório imobiliário geral conferido pela alínea b) do n.º1 do artigo 12.º da Lei n.º 17/86, de 14.06 (entretanto já revogada) aos créditos salariais decorrentes do não pagamento pontual das retribuições prefere à hipoteca, veja-se as conclusões do Ac. do TC n.º 498/2003 (disponível em

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deve abster de criar novos privilégios cuja aplicação seja reconduzida exclusivamente a relações jurídicas privatísticas, atentos os diversos problemas que se colocam aos agentes privados no seio do comércio e tráfego jurídicos.

Mais se diga que no seio de uma disciplina jurídica que se pauta pelo dinamismo e versatilidade como é o caso do Direito das Obrigações, os problemas e dificuldades decorrentes do carácter oculto do privilégio creditório são obstáculos a um sistema garantístico mais transparente, mais certo e acima de tudo, mais confiável para os diversos agentes do tráfego jurídico.

De facto, o privilégio creditório enquanto ónus oculto que é, dificulta e por vezes chega mesmo a impossibilitar os credores comuns de verem o seu crédito satisfeito, frustrando assim as legítimas expectativas dos agentes privados que recorrem aos mecanismos de cobrança judicial dos seus créditos, pelo que deve o legislador tem em conta a especialidade do privilégio creditório enquanto garantia creditória, em face das restantes garantias especiais das obrigações, razão pela qual consideramos que este tipo de instituto apena deva ser aplicável quando estejam em causa créditos públicos, atenta a relação dos mesmos com a satisfação do interesse público.