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CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

1.2. O Código de Napoleão

A conceção unitária da figura do privilégio creditório decorrente do Direito Romano viria a ser afastada pela jurisprudência francesa anterior ao fenómeno da codificação.

Explica-nos a esta parte o saudoso professor CARNEIRO PACHECO112 as razões por detrás desta deturpação do conceito de privilégio, “(…) a antiga jurisprudencia

francêsa alargou a aplicação da hypotheca legal e tacita, que no direito romano andava ligada a alguns privilégios, aos créditos privilegiados que se lhe affiguravam dignos do mesmo favor.” Atentas as características do regime notarial em França – onde

predominava a forma notarial dos atos - o uso da figura do privilégio difundiu-se e multiplicou-se, como que fazendo esquecer o verdadeiro motivo da afetação do bem, passando esta característica a fazer parte do próprio conceito de privilégio, como que consumindo em si a hipoteca.

Como resultado da interpretação errónea pela jurisprudência francesa dos conceitos do Direito Romano, um novo instituto de garantia do crédito emerge, o “privilégio real”. Esta nova figura jurídica distingue-se das garantias que assumiam características análogas às dos privilegium exigendi, pois passa a incidir sobre bens imóveis e bens móveis, perfeitamente determinados. A par dos privilégios que assumiam características semelhantes às do instituto de Direito Romano, a nova figura dos privilégios reais passa a ser considerada como uma verdadeira garantia real, conferindo aos titulares dos créditos por esta tutelados uma preferência de pagamento em face dos créditos garantidos por hipoteca.113.

Em consequência, a maioria dos privilégios viria a assumir um carácter real, perdendo o seu carácter excecional114 e aproximando-se cada vez mais da figura das

hypothecas privilegiadas do Direito Romano, todavia, com uma assinalável diferença

como nos explica o professor GULLÓN BALLESTEROS115, “la garantia real ya no es

una instituición distinta del privilegio propriamente dito, sino uno de sus caracteres essenciales. (…) la realidad del privilegio no designa ya la naturaleza del derecho al

112 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit. pág. 35. Relata-nos o autor que a construção da jurisprudência francesa do novo conceito de

privilégio resulta da confusão entre duas figuras do Direito Romano. Para a jurisprudência francesa, privilegios pessoaes seriam aqueles onde se destacava a qualidade do credor, ao passo que os privilegios reaes se reportavam à qualidade do crédito, sendo portanto privilégios creditórios aos quais se encontrava ligada uma hipoteca.

113 Cfr. CHIRONI, “Trattato del privilegi, delle ipoteche e del pegno”,2.ª Edição, Torino, 1912, Fratteli - Boca Editori, págs.145 e ss.,

apud CARNEIRO PACHECO, ob.cit., pág. 35.

114 Como aliás fora a regra o Direito Romano, mesmo após a criação da figura da hypotheca privilegiada pela mão de Justiniano.

Ver. supra. ponto 1.1.

115 Cfr. ANTONIO GULLÓN BALLESTEROS, “El crédito privilegiado en el código civil”, Sevilha, 1958, pág. 8 do documento disponível

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quale se une, sino el carácter de garantia real que aquél tiene”. Como conclui

CARNEIRO PACHECO116, com a errónea aplicação dos conceitos desenvolvidos pelos jurisconsultos romanos, a jurisprudência francesa como que aboliu a distinção entre “privilégios reaes” e “privilégios pessoaes”, passando a figura do privilégio creditório a ser associada às antigas hypothecas privilegiadas.

Atendendo ao supra exposto, podemos afirmar que a construção jurídica da jurisprudência francesa anterior ao Código de Napoleão sobre os institutos herdados do Direito Romano - os privilegium exigendi e da hypotheca privilegiada - teve um profundo impacto na relação entre o carácter de garantia real do privilégio creditório e o direito de crédito que este tutela. O carácter real do privilégio creditório como garantia passa a ser compreendido como um elemento essencial da figura, ao invés de, como acontecia na Antiga Roma, ser percecionado como uma característica do direito de crédito ora tutelado por este.

Esta visão uniformizou-se com o Código Civil Francês de 1804117, através da

distinção operada pelo legislador francês entre os privilégios reais sobre imóveis e os privilégios reais sobre móveis118. Por seu turno a hipoteca vê o espectro de incidência

limitado aos bens imóveis, em consequência do entendimento preconizado pela jurisprudência francesa anterior ao Código.

Dada a natureza jurídica dos bens móveis e o princípio mobila sequelam non habent, a garantia oferecida pela hipoteca não poderia incidir sobre bens móveis mas apenas sobre bens imóveis119. Por esta razão, o legislador francês sentiu a necessidade de alargar o leque de abrangência do privilégio real aos bens móveis, para tal associando a figura do penhor ao privilégio que incidisse sobre bens móveis absolutamemte determinados.

Com o alargamento do espectro de incidência do privilégio real, o conceito de privilégio paulatinamente se associa ao de hypotheca privilegiada do Direito Romano.

116 Cfr. CARNEIRO PACHECO, ob. cit., pág. 35

117 O Code Civil des Français, também conhecido por Código de Napoleão, entrou em vigor em França a 21 de Março de 1804 e

surge como uma resposta perante as necessidades de uniformização e unidade do sistema jurídico francês pós-revolução. O regime jurídico dos privilégios encontra a sua previsão normativa no Título XVIII, sob a égide “Des priviléges et hypothèques”, correspondentes aos arts. 2092.º a 2203.º.

118Dispõe o art. 2099.º do Code Civil des Français: “Les priviléges peuvent être sur les meubles ou sur les immeubles”.

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