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Da extinção dos privilégios creditórios

CAPÍTULO II – OS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS

3. Características dos Privilégios Creditórios e do seu regime legal decorrente do Código

3.5. Da extinção dos privilégios creditórios

Sobre as causas e os efeitos da extinção dos privilégios creditórios, no artigo 752.º do CC o legislador optou por remeter o intérprete aplicador do direito para o regime jurídico previsto para o “direito de hipoteca”, ou seja, para o disposto no artigo 730.º mesmo diploma legal193. Desde logo destacamos a causa de extinção prevista na alínea a) do citado preceito - a extinção da obrigação principal – já que demonstra e realça a relação de acessoriedade por que se pauta a dinâmica entre o crédito e o privilégio. Sobre a extinção da obrigação principal como uma causa de extinção do privilégio creditório, logicamente que, para além do cumprimento da obrigação em sentido estrito, devemos também enunciar como causas de extinção das obrigações em geral a dação em cumprimento194, a consignação em depósito195, a compensação196, a novação197, a

remissão198, a confusão199 e ainda as demais causas que decorrem do decurso do tempo, como é o caso da prescrição200.

A esta parte impõem-se uma clarificação em relação à aplicabilidade das causas de extinção dos privilégios no âmbito da relação jurídica obrigacional tributária.

Ora, atentas as limitações decorrentes do princípio da irrenunciabilidade do crédito por parte do credor tributário, algumas das causas de extinção das obrigações supra enunciadas não serão aplicáveis em sede tributária201. Deste modo, não serão abordados os institutos da consignação em depósito e o da novação. Neste sentido, com a extinção da obrigação principal, o privilégio seguirá o mesmo destino, a extinção.202

193 Dispõe o artigo 730.º do CC sobre as causas de extinção da hipoteca: “A hipoteca extingue-se: a) Pela extinção da obrigação a

que serve de garantia; b) Por prescrição, a favor de terceiro adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação; c) Pelo perecimento da coisa hipotecada, sem prejuízo do disposto nos artigos 692.º e 701.º; d) Pela renúncia do credor.”

194 Cfr. arts. 837.º e ss do CC. 195 Cfr. arts. 841.º e ss do CC. 196 Cfr. arts. 847.º e ss do CC. 197 Cfr. arts. 857.º e ss do CC. 198 Cfr. arts. 863.º e ss do CC. 199 Cfr. arts. 868.º e ss do CC.

200 Cfr. arts. 300.º e ss do CC. Interessante a esta parte são as considerações de ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA sobre a

aplicação dos efeitos decorrentes da prescrição aos privilégios creditórios. Os autores sustentam que dentro dos critérios do Código, deve ser aplicada à extinção dos privilégios, bem como da hipoteca, não a prescrição, mas antes a caducidade. Cfr. a este respeito ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., pág. 771, nota 1 ao artigo 752.º do CC.

201 Cfr. neste sentido, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA , “Apontamentos….”, ob. cit., págs. 67 e ss.

202 Contudo, a lei prevê um exceção a esta regra para o caso em que a extinção da obrigação principal opera por força do recurso

ao instituto da novação. Neste sentido, prescreve o art. 861.º do CC que na falta de reserva expressa, as garantias adjacentes à obrigação extinguem-se, mesmo que concedidas por comando do legislador. Por outras palavras, estamos perante uma caso em que as partes originárias da relação obrigacional – credor e devedor – podem acordar na prevalência do privilégio creditório face à nova obrigação contraída em substituição da anterior. Esta é uma possibilidade que resulta do carácter acessório e legal do privilégio creditório, não obstante de se tratar de um caso em que a simples vontade das partes pode dar origem, em simultâneo, a destinos diferentes para o crédito e para o privilégio creditório.

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Todavia, atentas as causas de extinção dos privilégios creditórios propriamente ditas203, – alíneas b) a d) do artigo 730.º do CC - coloca-se a questão de saber quais as que se aplicam aos privilégios especiais e quais se aplicam aos privilégios gerais.

Começando pela análise do disposto na alínea b), prescreve o legislador que é causa de extinção da hipoteca – e, dada a remissão do artigo 752.º do CC, do privilégio creditório – a prescrição. Como referimos supra, a prescrição em causa diz respeito ao privilégio creditório em si mesmo e não ao direito de crédito que este visa garantir. Quanto ao beneficiário da verificação da prescrição do privilégio creditório, “o terceiro

adquirente” do bem sobre o qual o privilégio incide, este apenas poderá invocar a

prescrição do privilégio quando estejam decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição do bem e cinco anos sobre o vencimento da obrigação, pelo que estamos perante dois requisitos temporais cumulativos e não alternativos.

Já na perspetiva do crédito tributário, coloca-se a questão de saber se através da remissão da alínea a) do n.º 1 do art.50.º da LGT estas particularidades do regime civil dos privilégios se devem também aplicar na sua plenitude ou, ao invés, se devem ser conciliadas com os prazos previstos para a prescrição da dívida tributária e para a caducidade do direito à liquidação dos tributos.

Embora esta seja uma dúvida à qual o legislador não responde expressamente, consideramos que uma vez preenchido o prazo de prescrição de oito anos previsto no n.º1 do artigo 45.º da LGT, o crédito tributário terá prescrito e com ele os privilégios creditórios que garantiam a sua satisfação, já que estes são privilégios atribuídos em função dos especiais interesses inerentes à cobrança desses mesmos créditos tributários, pelo que, verificando-se a prescrição do direito do credor tributário à sua cobrança, o privilégio perde também a sua raison d’être.

E em relação aos bens cuja aquisição não está sujeita a registo?

É que atenta a letra do preceito supra citado, não se vislumbra uma solução para os privilégios que incidam sobre bens não sujeitos a registo. Esta é sem dúvida uma das consequências da fragmentariedade do regime legal dos privilégios creditórios, já que ao utilizar a remissão legal no artigo 752.º do CC, o legislador olvida a especificidade

203 Em França, atenta a exigência de registo do privilégio creditório, as causas de extinção da figura compreendem, naturalmente,

um leque mais alargado do que o que se verifica no ordenamento jurídico português. Contudo, o artigo 2488.º do CCF referente às causas de extinção dos privilégios creditórios e das hipotecas indica: “Les privilèges et hypothèques s'éteignent : 1° Par l'extinction

de l'obligation principale sous réserve du cas prévu à l'article 2422 ; 2° Par la renonciation du créancier à l'hypothèque sous la même réserve ; 3° Par l'accomplissement des formalités et conditions prescrites aux tiers détenteurs pour purger les biens par eux acquis ; 4° Par la prescription.(…)”.

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do objeto do privilégio creditório face ao da hipoteca. A seguir-se ipsi verbis a solução prevista na aliena b) do artigo 730.º do CC, a prescrição não poderá produzir os seus efeitos em relação aos privilégios creditórios mobiliários que incidam sobre bens móveis e ainda, sobre bens imóveis não hipotecáveis.204

Prosseguindo a análise das causas extintivas dos privilégios creditórios e da hipoteca, na alínea c) do n.º1 do artigo 730.º do CC, o legislador indica que é também causa extintiva do privilégio creditório e da hipoteca, o perecimento da coisa sobre a qual incide a garantia, sem prejuízo do direito de preferência sobre o valor da indemnização a favor do dono da coisa e ainda do direito do credor hipotecário/privilegiado exigir ao devedor o reforço ou substituição do bem205. Todavia, de acordo com o disposto no artigo 752.º do CC, o direito de credor privilegiado exigir ao devedor o reforço ou substituição do bem objeto da garantia pode levantar algumas dúvidas, já que se por um lado o legislador expressamente confirma a aplicabilidade do direito de preferência consagrado pelo artigo 692.º do CC aos privilégios creditórios, o mesmo não se verifica em relação à regra decorrente do artigo 701.º do CC206.

Coloca-se porém a seguinte questão: pode o credor privilegiado alargar o âmbito desta garantia excecional, exigindo ao devedor o reforço ou substituição do bem ou bens objeto da mesma, mas que não estejam previstos pelo legislador? Ao aplicar-se o disposto no artigo 701.º do CC aos privilégios creditórios, é facultada às partes a possibilidade de modificarem o objeto sobre o qual o privilégio incide, como que fazendo tábua rasa da imperatividade que caracteriza o regime jurídico dos privilégios creditórios.

Assim, é nosso entendimento que a resposta à questão acima colocada é negativa, atento por um lado, o carácter excecional dos privilégios e por outro, a própria imperatividade das normas que compõem o seu regime jurídico207, em particular as relativas à determinação do objeto sobre o qual o privilégio incide. Na nossa perspetiva sempre se diga que adotar uma solução contrária poderia resultar na criação um

204 Cfr. o disposto nos artigos 204.º e 688.º e do CC relativamente aos bens que podem ser objeto de hipoteca.

205 Cfr. artigos 692.º e 701.º do CC. Estas soluções apresentadas pelo legislador para os casos em que se verifique o perecimento

do bem objeto da hipoteca como que suspendem a produção automática do efeito extintivo das mesmas. Ademais, de acordo com a remissão do artigo 753.º do CC, ao credor privilegiado assistem os direitos previstos no artigo 692.º

206 Sobre esta questão, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, últ. ob. cit., págs. 771 e 772, explicam que “(…) O artigo 701.º, referido

na alínea c), é, porém, inaplicável aos privilégios, dada a relação necessária destes com certos bens do devedor. É a mesma razão que justifica a doutrina do artigo 709.º quanto às hipotecas legais previstas nas alíneas e) e f) do artigo 705.º. Que é esta a solução pretendida pelo legislador, mostram-no, ainda os artigos 665.º e 678.º, em confronto com o artigo 753.º. Naqueles, em relação à consignação de rendimentos e ao penhor, cita-se o artigo 701.º, o que não acontece com o artigo 753.º. A intenção da lei é, pois, manifesta. (…)”

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expediente para que as partes pudessem determinar que bens poderiam ser objeto de privilégio ou não, além de ser uma solução que parece desde logo contrariar a vomtdade do legislador aquando da instituição da figura no nosso ordenamento.

Por fim uma breve alusão à renúncia do credor ao privilégio como uma causa de extinção do privilégio, de acordo com o disposto na alínea c) do artigo 730.º do CC. Prevê o legislador que o titular de direito de crédito garantido por hipoteca possa renunciar à garantia do seu crédito208, desde que cumpra os necessários requisitos e procedimentos legais relacionados com a publicidade do ato, possibilidade que é também alargada para os credores privilegiados, atenta a remissão decorrente do já citado artigo 752.º do CC, o que nos permite afirmar ainda que o âmbito da renúncia à garantia pode abranger a totalidade do seu objeto ou apenas parte desse, verificando-se nestes casos uma renúncia parcial.

Já no que diz respeito ao crédito tributário e suas garantias, atentos os limites legais em torno da atividade de cobrança das receitas fiscais e a natureza pública das mesmas, a renúncia a garantias creditórias revela-se contra natura, isto é, contrária aos princípios e normas em torno do crédito tributário, pelo que será de se rejeitar liminarmente a sua aplicação no seio da relação jurídica tributária.